Lembremos sempre disto: normas sociais não criam sujeitos, elas os dividem.
(Vladimir Safatle, A era de crise psíquica fabricada)

No livro Os Estabelecidos e Outsiders (1965), Norbert Elias e John Scotson estudaram a comunidade de Winston Parva, povoado de nome fictício situado em uma área industrial de Leicester. A comunidade foi dividida pelos autores em três zonas. Na primeira e na segunda zonas viviam os autodenominados “aldeões”, moradores que habitavam a região desde a época em que as primeiras construções foram erguidas. Já na terceira, conhecida como “loteamento”, residiam famílias que haviam se instalado na área mais recentemente.
No livro, as famílias das zonas 1 e 2 são caracterizadas como matrifocais, ou seja, formam um núcleo familiar expandido em que os moradores dessas zonas tendem a casar entre si, o que reforça o senso de coesão grupal. Os autores demonstraram que os vizinhos das zonas 1 e 2 nutriam um alto grau de proximidade e afinidade, manifestado, por exemplo, na seguinte prática: era comum que as mães, ao saírem para o trabalho, deixassem suas crianças na casa de um vizinho conhecido. Essa possibilidade, no entanto, não existia na zona 3, onde o grau de solidariedade, afinidade e coesão entre vizinhos era quase inexistente. Contribuíam para isso, a alta rotatividade das famílias residentes na zona 3 e a ausência de lideranças suficientemente fortes para mobilizar e canalizar interesses comuns.
Os autores notaram que, apesar da pequena diferença de renda, classe e ocupação, os moradores estabelecidos desde longa data cerraram fileiras contra os novos residentes. “Cerrar fileiras”, nesse contexto, significa estigmatizá-los e excluí-los do convívio social. Ao ocupar espaços como a associação de moradores e ao nutrir valores e regras de convivência comuns, os “aldeões” passaram a se enxergar como um grupo coeso e lograram atribuir, para si mesmos, natureza e valores julgados superiores. Ato contínuo, os do loteamento foram concebidos como inferiores.
Não raramente, os “aldeões” referiam-se aos recém-chegados como “sujos”, “maltrapilhos”, “delinquentes” e “causadores de problemas”. Por meio de uma arma poderosa como a fofoca, vedavam o acesso dos novos moradores a espaços de sociabilidade e para a difusão de sua má reputação. Para os outsiders, era difícil adequar-se ao modelo esperado já que não obtinham sucesso em socializar com os estabelecidos, empenhados, por sua vez, em manter seu poder e status. Por exemplo, se um morador do loteamento, tentando melhorar sua situação, ousasse frequentar “A Águia” — pub frequentado pelos “aldeões” —, ele era prontamente boicotado e ignorado. Em um círculo vicioso, os habitantes de Winston Parva naturalizaram características que nem sempre tinham fundamento na realidade. Por exemplo, entre os recém-chegados, apenas uma minoria se enquadrava nos rótulos atribuídos. Entretanto, no melhor estilo “parte pelo todo”, essa minoria era tomada como modelo representativo e definidor dos recém-estabelecidos. A caracterização construída e difundida pelos “aldeões” atribuía propriedades grupais a um conjunto de pessoas que não compartilhavam características suficientemente coesas para serem definidos como um grupo homogêneo. O estigma, a desconfiança e o desprezo direcionados pelos estabelecidos aos outsiders eram, na verdade, reflexo da inadequação ao modelo idealizado pelos “aldeões”. Os autores indicam que os próprios habitantes do loteamento internalizavam o estigma e passaram a acreditar que, de fato, o local era habitado por pessoas de categoria inferior.
Na introdução ao livro, é evidente que, embora se trate de um estudo sobre uma comunidade específica, as conclusões dos autores abordam um tema universal. Afinal, não é raro que indivíduos, ao submeterem outros, se concebam como superiores e, por contraposição, enxerguem os demais como inferiores. A relação entre metropolitanos e colonizados, homens e mulheres, senhores e escravos, brancos e negros seguiu essa lógica. Contudo, as relações de poder baseadas nessas dinâmicas não são naturais, mas naturalizadas, já que a inferioridade não é inata, mas construída ao longo do tempo a partir de julgamentos sobre diferenças culturais e fenotípicas instrumentalizadas, por sua vez, para justificar relações de poder e dominação.
O último Pub, filme de Ken Loach guarda semelhanças com o fenômeno observado por Elias e Scotson. Na projeção, uma comunidade majoritariamente composta por famílias de mineradores em Durham, no norte da Inglaterra, recebe uma leva de refugiados sírios que escaparam do conflito em seu país natal. Os moradores locais manifestam sua insatisfação logo na chegada dos imigrantes. Tanto na obra de Loach quanto na análise de Elias e Scotson, os outsiders são migrantes forçados: assim como os sírios, que fugiram da guerra civil, muitas das famílias recém-chegadas a Winston Parva não se conheciam previamente por serem de diferentes bairros londrinos e se instalaram na região após a destruição de suas casas pelos bombardeios alemães durante a Segunda Guerra Mundial.
Ao longo do filme, observa-se que os personagens estabelecidos, refratários ao convívio com os imigrantes, estão imbuídos de um discurso que opera segundo a lógica do “nós” contra “eles”. “Nós”, ingleses, cristãos, falantes da língua local e, acima de tudo, legítimos moradores do próprio país. Trata-se de uma visão idealizada de si mesmos. Em uma cena, por exemplo, um escocês ofende Yara, uma mulher síria, e a manda voltar para o seu país de origem. Em outra passagem, um grupo de estudantes locais agride fisicamente um colega imigrante. Tudo indica que o motivo do espancamento foi um boato, disseminado rapidamente pelas redes sociais, de que o estudante sírio teria importunado uma garota inglesa.
Esses episódios mostram como os indivíduos estão sujeitos à rigidez e arbitrariedade das normas sociais impostas pelas pessoas e instituições à sua volta, nesses casos, aquelas que incentivam a estigmatização dos imigrantes. Escola, família, vizinhança, pubs e a internet são alguns espaços em que o indivíduo internaliza crenças e condutas cuja sua inserção social depende, em grande parte, da adesão, maior ou menor, a essas normas.
Dessa maneira, ao se dispor a ajudar as famílias recém-chegadas, a atitude do dono do pub The Old Oak contrasta com a hostilidade direcionada aos sírios pela maioria de seus vizinhos. Assim que o vínculo entre TJ — como é chamado por seus vizinhos — e Yara é percebido, a comunidade inglesa passa a discriminá-lo e maltratá-lo. Ao desrespeitar as normas grupais, que prescreviam a exclusão dos imigrantes do convívio social, o Sr. Ballantyne — como é chamado por Yara — vê seu status e sua honra rebaixados.
No livro de Elias e Scotson, há um caso semelhante. Os “aldeões” de Winston Parva ficaram chocados quando uma mulher, que desconhecia as normas tacitamente acordadas pelos moradores, convidou um lixeiro para tomar chá em sua casa em um dia frio. A notícia do convite se espalhou rapidamente por meio das redes de fofoca, e o fato contribuiu para reforçar a má reputação dos moradores do loteamento. Assim, a proximidade com um indivíduo reconhecido como pária e a transgressão das normas sociais impactaram direta e negativamente no status social e na reputação individual dos envolvidos.
Os pubs são espaços de sociabilidade centrais tanto no filme de Loach quanto no livro de Elias/Scotson: “Como em outras comunidades inglesas, os ‘pubs locais’ figuravam entre as instituições centrais da vida comunitária de Winston Parva”. Não é fortuito, portanto, que um personagem do filme afirme, mais de uma vez, que gostaria de “beber sua cerveja em paz, sem ser incomodado” e demonstre desconforto quando um ou mais árabes estão no The Old Oak. No livro, a divisão entre o pub dos recém-chegados, chamado A Lebre e os Cães, e o A Águia, frequentado pelos moradores estabelecidos “para tomar uma bebida em paz e sossego”, é claramente demarcada. No pub The Old Oak não é diferente, pois embora já tenha conhecido dias melhores, permanece como o ponto de encontro masculino por excelência. Por outro lado, o salão de beleza desempenha o papel de ponto de encontro feminino, onde a imigrante Yara consegue se inserir minimamente. É nesse espaço, reservado às mulheres, que a síria é acolhida para fotografar, conversar e tomar chá com a equipe e as clientes do salão.
A comunidade retratada por Ken Loach conta com numerosos habitantes que foram mineradores. As greves do passado são motivo de orgulho para PJ que pendurou dezenas de fotos dos grevistas na parede de seu estabelecimento. Apesar de ser apenas uma fotografia na parede, as greves e lutas sindicais fazem parte da memória e identidade daquele povoado. Isso não quer dizer que não exista conflito: há uma cena em que um personagem condena, por ter furado a greve, o pai de um colega. Como se trata de uma região mineradora, a comunidade estabelecida provavelmente conheceu de perto a realidade do trabalho nas minas, seus numerosos acidentes e o impacto dos mortos e feridos nas famílias. É nesse sentido que se deve entender as cenas conclusivas do filme, uma vez que se verifica a compaixão motivada pela morte do pai de Yara e a comoção de alguns moradores locais suscitada pela perda de uma figura masculina.
O comparativo apresentado nesse texto mostra dificuldades de inserção enfrentadas por indivíduos que se veem lançados em um espaço cujas normas socias desconhecem. As novas moradias, situadas em áreas decadentes da cidade, foram designadas para eles e não proveniente de suas vontades próprias. As guerras forçaram seus deslocamentos e impuseram um novo local de moradia determinado por instâncias estatais. Como consequência, tem-se o choque entre sistemas de crenças, valores e comportamentos cuja comunidade estabelecida está inclinada a respeitar sem questionar-se sobre sua pertinência. O sistema de crenças da “Aldeia” se apresenta aos indivíduos quase como uma segunda natureza e faz sentido, para eles, respeitá-las a qualquer custo. Por outro lado, para quem não convive ali e não está exposto ao mesmo sistema de crenças o respeito às normas carece de qualquer sentido.

 

 


Referências:

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000
O ÚLTIMO PUB. Direção: Ken Loach. Reino Unido/França/Bélgica, 2023. Filme.

 

 


Créditos na imagem de capa:

Festival de Cannes/Divulgação