HH Magazine
Filosofia Popular Brasileira

Nos escombros da minha casa

 

Para Raul Haddock-Lobo e Seu Tranca Rua das Almas

 

Santo Antônio de Pemba, Caminhou sete anos
À procura de um mano, Até que encontrou!
Mas como caminhou, mas como caminhou!
Mas como caminhou, Santo Antônio de Pemba,
Como caminhou!

(Santo Antônio de Pemba)

 

Santo Antônio Pequenino, Amansador de burro brabo,
Quem mexer com Tranca Rua tá mexendo com o diabo.

Rodeia, rodeia, rodeia, meu Santo Antônio rodeia

(Santo Antônio Pequenino)

Santo Antônio de Batalha, Faz de mim batalhador,
Santo Antônio de Batalha, Faz de mim batalhador,
Corre e Gira Pomba Gira, Tranca Rua e Marabô
Corre e Gira Pomba Gira, Tranca Rua e Marabô

(Santo Antônio de Batalha)

 

 

Dia 07 de junho era aniversário de meu pai. Dia 13 de junho se festeja Santo Antônio. Nesse intervalo, escrevo e reescrevo essas páginas para homenagear meu pai, artista plástico que dava lugar a seus demônios no nanquim sobre o papel, e Tranca Rua das Almas, seu exu, que me chegou como herança em sua morte há quase dezoito anos e que foi a primeira experiência de alteridade radical que eu tive em meu corpo.

Nesse intervalo de seis dias, entre o dia de nascimento de Raul e a festa do santo cuja única imagem (de meu bisavô, vinda de Penafiel) tínhamos aqui em casa em minha infância, escrevo essas páginas para celebrar a vida e a arte desses dois espectros que me rondam, aqui, nessa casa. E a eles trago algumas impressões de meu último livro: Os fantasmas da colônia.

Voltando a morar na casa em que cresci, vejo seus fantasmas em todos os cômodos, desde a porta da casa que, quando morávamos todos aqui, foi dada a Seu Tranca para que fizesse ali seu posto, passando pela sala, pelos corredores, até meu quarto, no caminho em que se exibem os desenhos de meu pai.

No quarto onde meu pai se isolava, passando dias nos dando apenas boa noite e bom dia, enfrentando seus fantasmas e riscando eles no papel, hoje vivem meus orixás, meus santos, assentamentos e imagens, ferramentas, aparatos, e algumas lembranças de minha vida passada que retorna a cada dia.

Os fantasmas da colônia é um livro todo tocado na batida de Tranca Rua e retratado em preto e branco por meu pai. Agradecendo aos dois por seus tantos ensinamentos, invoco aqui essas duas aparições para que caminhemos, eu e qualquer leitor que queira me acompanhar, nessa jornada que começa na cancela de minha casa e que termina em frente à minha cama.

 

Esse caminhada, de pouco mais de um corredor, é minha vida.

 

 

A epígrafe, a porta

 

Há um descampado à frente. Do solo úmido parece emergir um batente, em cuja parte de cima há uma placa com uma inscrição quase ilegível. Os rabiscos crípticos deixam-se ler: trata-se de nossa epígrafe.

 

Era uma casa muito engraçada, Não tinha teto, não tinha nada

Ninguém podia entrar nela não, Porque na casa não tinha chão

Ninguém podia dormir na rede, Porque na casa não tinha parede

Ninguém podia fazer xixi, Porque pinico não tinha ali

Mas era feita com muito esmero, Na rua dos bobos, número zero.

 

A música para crianças de Vinícius de Moraes poderia ser a trilha sonora deste texto, mas também a performance do grupo musical MPB4 que tanto marcou minha infância, que, como palhaços, transitavam pela casa imaginária, sonhada. Nosso palco poderia também ser aquele de Dogville, por sobre o qual a cena da crueldade de Lars Von Trier se desenha. Não se trata aqui de uma casa em ruínas, essa que vemos emergir por sobre o descampado, não se assemelha a uma cidade fantasma em cujo ápice a fortuna do ouro imperava e agora restariam tão-somente a poeira seca e as bolas de feno rolando ao vento. Não se trata da decadência de um passado presente em absoluto, em cujas marcas poderíamos rastreá-lo.

A cena que aqui se desenha apenas representa a representabilidade de toda e qualquer representação, como os rabiscos no chão do filme de von Trier ou o debochado videoclipe que marcara minha infância. Trata-se de uma encenação, de um cenário: “it’s all a tape, no hay banda. Silencio”, ecoaria Mullholland Drive de David Lynch.

Tal casa engraçada, no entanto, será aqui nossa pista, ainda que possa causar espanto o uso deste termo “engraçado”. Bem melhor certamente seria aqui, nos termos da desconstrução, “estranho”, como “essa estranha instituição chamada literatura”, em que se faria ouvir a potência do unheimlich freudiano. Mas essa casa engraçada aqui, diante de nós, convidativa e aporética como o Tribunal ao homem do campo de Kafka, tem na graça também sua Lei: o riso, a ironia como potentes traços do desenho derridiano.

Que casa seria essa? Como adentrá-la? É possível, nela, sentirmo-nos em casa, chez nous, ou apenas podemos nela passearmos como bobos, tal como o Louco do Tarot de Marseille, andando com seu cão ao lado à beira do abismo. Talvez, nossa única advertência aqui seja a de nos preocuparmos com o precipício – e não nos precipitarmos, como diz Derrida e nos ensina Fernanda Bernardo em sua bela tradução de Memórias de cego: não podemos colocar a cabeça à frente do corpo, prae caput, mas sim andarmos como as mãos à frente, antecipando o inevitável perigo, como quando andamos à noite no escuro, tateando os corredores, quase-reconhecendo o caminho.

É com esse quase-reconhecimento que até hoje caminho por sobre o solo da desconstrução, vendo certos vultos que parecem formas conhecidas, que deixam-se adivinhar em sua espectralidade, “como se” eu desde sempre fosse delas e deles íntimo. E caminho assim, entrando novamente nessa casa que parece sempre a mesma, mas sempre se mostra outra, passando por essa porta que eu nunca havia percebido, e que agora parece ter sempre estado ali, anunciada a mim, entreaberta.

 

 

 

A antessala

 

À meia-luz, o espectro parece cada vez mais se dissipar e, sob o efeito de viseira, que é como sempre podemos ver os fantasmas, aponta ele para seguirmos em frente e deixarmos a antessala, pois todo e qualquer cômodo, por sua estranheza, pode se tornar ele próprio, sempre, o cômodo principal. O efeito de viseira, de Hamlet, Shakespeare e Derrida, ver sem ser visto, não seria herdeiro da sabedoria do Mariwo que Ogun nos ensina? A folha do dendezeiro não faz parte do feitiço do Orixá da guerra para poder, ele próprio, se espectrar?

Mas como é a motivação errática que aqui nos guia, precisamos avançar e decidir que rumo tomar diante dos “caminhos que se bifurcam”, qual Jardim de Borges.

Diante de uma encruzilhada devemos sempre saudar Exu, deus dos caminhos e descaminhos, orixá do corpo, do movimento e, nesse sentido, também da espacialidade, da indeterminação de lugar que apenas uma outra coreografia dá conta. Tal saudação deveria ser feita, como nos ensina Zaratustra, com cantos e danças, e vale lembrar o que o pobre Édipo passou ao desafiar o empasse que a encruzilhada lhe determinou…

Mas, ainda que sem canto, sem dança, nossa escrita precisa fazer marcar aqui o absoluto respeito pelos cruzamentos, e, feito o padê, Exu parece indicar nosso caminho: a própria encruzilhada é, ela própria, o lugar privilegiado.

Como perseguir o entrecruzamento? Como persistir no descaminho desse “entre” que não configura, de modo algum, um terceiro lugar? Escrever cruzando os espaços, como a defumação que terreiriza os territórios, como dizem Simas e Rufino: “Encruza, encruza, encruza terreiro encruza”, soam os atabaques, para a tarefa de que também a filosofia seja terreirizada.

Mas é aqui o próprio Derrida, habitante da encruzilhada mediterrânea, quem nos convida a passear pelos corredores da casa, não por esse ou aquele cômodo, mas pelas margens. E é às margens que, literalmente, caminharemos agora.

 

 

Os corredores, às margens

 

As margens da desconstrução abrem-se com o tímpano, que, com seu imperativo de “timpanizar a filosofia”, isto é, “luxar o ouvido filosófico”, mas também “timpanizar o autismo filosófico”, derrubar a abóboda, “a unidade fechada e com volutas do palácio”[1], desmagnetiza a vertente filosófica em seu movimento sempre em direção a um centro seguro e empurra-a para seus limites e obriga-a aí instalar-se. Tal movimento, contudo, nada mais é do que fazer com que a filosofia assuma que o centro organizador e organizado não é de modo algum seu lugar, mas que, se há um lugar para o filosófico, este é o estranho lugar do limite, da margem, do “entre” que não configura de modo algum um terceiro termo.

Poderia eu aqui trazer algumas figuras com as quais já trabalhei antes, como o labirinto de inscrições ao qual Derrida se refere em Posições que, como o quadro de Téniers citado por Husserl, faz-nos pensar sobre a estranha “an-arquitetura” na qual os primeiros textos de Derrida nos encerram; ou então sobre a brisura, que, segundo o próprio Derrida em Gramatologia, seria a própria “origem da experiência do espaço e do tempo”[2]; ou mesmo sobre a figura das margens, das fronteiras, dos limites[3]. No entanto, como tomo para mim o desafio aqui de tentar andar por sobre trilhas estranhas, minha opção consiste em passear por uma senda da desconstrução sobre a qual, de certo modo, nunca tive a coragem ou o fôlego de encarar: o espaçamento.

 

 

 

Aporia, porta fechada.

 

Se Filosofia é metafísica e metafísica é sempre uma topologia ou topografia, ou seja, a indicação dos lugares precisos de cada coisa, o epistemológico será sempre ético e político – e daí a necessidade do não-lugar como resistência, a errância e os desvios espaçantes quando se trata da tarefa do pensar. Isso eu creio ter tido sempre em mente, e sempre ter permanecido atento à mudança espacial e estilística do estilete e das esporas, mas e nessa cruzada do tempo? Porque eu titubeei tanto em encarar o tempo?

Talvez esse, para mim, esse fosse o problema, talvez o meu problema ao ocupar o lugar de filósofo. Rosana Suarez, com sua elegante inteligência e perspicácia filosófica, sensivelmente percebeu esse problema desde minha defesa de tese de doutorado, em 2007. Sua única questão, questão essa que não respondi até hoje, era, em minha defesa de um pensamento úmido, como ficaria a questão do tempo nessa estrutura do nem isso nem aquilo. Esse tempo do entre sempre foi um mistério. Eu calei. Calei em 2007 e creio ter calado até hoje, quase treze anos depois.

Que tempo é esse que me assombra? Que tempo é esse que não consigo me pôr à sua frente como filósofo? Creio que não soube nunca pensar o tempo pois o tempo não é algo que, a priori, se pense. Talvez, meu problema com o tempo não seja apenas um complexo de Peter Pan ou um narcisismo de eternidade… Talvez seja o que mais sincero se possamos ter com o tempo: ter o tempo como problema, sabendo que quanto mais dele fugimos mas ele nos espreita… Pois o tempo, o tempo digno desse nome, só surge como assombramento.

O tempo do outro, dos outros, dos outros outros.

Essa questão me ressurge na retornante leitura dos espectros, mas precisamente dos espectros de Derrida, leitura que, ao mesmo tempo, me abriu para pensar ao mesmo tempo a espectralidade e a colonialidade. Mas o que eu ainda não tinha, quando, na minha tese de doutorado, escrevia sobre os espectros, e não soube responder Rosana Suarez, e que me deixa, anos depois, com vontade de respondê-la?

Derrida escreve com seus espectros, ao lado deles, conversando com eles, e escrever sobre ele é, já, ter de assumir os espectros de Derrida e os meus. Eu tinha à época, além de Derrida & seus fantasmas, Clarice, Nietzsche, Benjamin, Guimarães Rosa, e mesmo alguns espectros do sul já me assombrando à época, via Jorge Amado. O que eu não tinha ainda era uma leitura mais paciente e preocupada com a questão colonial, tal como Derrida oferece em O monolonguismo do outro nem certo “método” (palavra horrível e que ele nunca usaria), mas certas maneiras de aproximação disso que não se vê (como ele apresenta em Memórias de cego). Creio que esse livro é resultado da leitura dessa tríade que se entre-remete e se complementa, num jogo aberto e de convocação para uma outra tarefa de escrita: Memórias de cego (1990), Espectros de Marx (1993) e Monolinguismo do outro (1996).

Daí vem minha hipótese  de que os fantasmas são manifestações de um cultura, de um povo, de uma certa comunidade, e dizem muito sobre essa comunidade. O fantasma é sempre político. Ele é a própria política.

Eles nos aparecem na nossa língua e, no nosso caso, nosso mesmo, meu e de Derrida, de uma certa experiência colonial. Sim, os fantasmas da colônia são diferentes dos fantasmas das metrópoles, sobretudo dos Impérios. Foi a leitura e os cursos que dei sobre o Monolinguismo que permitiram que os espectros reaparecessem para mim, através de meus fantasmas, dos fantasmas dos alunos e amigos que dividiam seus assombros nas aulas, e que, então, eu fosse obrigado a uma reescritura dos espectros, me permitindo um maior assombramento que me levou a lugares que nunca imaginei.

Somando-se isso, preciso marcar o impacto em mim da leitura de Fogo no mato – a ciência encantada das macumbas, de Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. O livro que mais invejei nos últimos anos, aquele que me deu tamanho ressentimento por não tê-lo escrito (o que me leva, sempre ao amor paródico), e que me deu forças para pensar a filosofia encantada, contra o desencantamento da modernidade, e retomar um desejo meu dos últimos dez anos de mostrar que existe, sim, uma filosofia brasileira, que não está na academia nem na universidade, mas que vige nas ruas, em suas leis e seus tempos.

Uma filosofia popular brasileira.

 


 

A fresta na porta, o olhar de esguelha…

 

Retomar minha inquietação sobre filosofia brasileira foi assumir meus fantasmas, sobretudo minha relação com a umbanda em minha infância, que se dá muitos anos antes de eu sonhar fazer filosofia, meu aprendizado como abiã no Candomblé, e meu retorno a Umbanda nos últimos dezesseis anos.

Aliás, é o ensinamento de Mãe Concheta, falecida mãe de santo do Centro espírita Caboclo Pena Verde, na rua São Luiz Gonzaga em São Cristóvão, uma Umbanda de Caboclos (com traços de Omolocô e com um – também falecido – Ogã que tocava em nossa casa e num Terreiro de Angola), que me guia nessas e outras escritas. Aliás, creio que a máxima de Mãe Concheta, que ela bradava aos médiuns em desenvolvimento, parece ter me guiado desde sempre, sendo o que me fez filosoficamente sensível ao outro, aos espectros, ao acolhimento e ao acontecimento: Deixa vir quem tem que vir, dizia ela.

E isso pra mim, hoje, é o que significa pensar.

Esse livro talvez seja o mais sincero que já escrevi, embora sempre tenha tentado ser o máximo honesto e coerente com meu pensamento em minha escrita. Porque ele é honesto comigo mesmo.

Ele é também escrito em uma brisura: escrevo dois livros ao mesmo tempo: este que aqui acabo e um outro sobre o pensamento de Preciado. Creio que no fundo são parte de um mesmo projeto meu, que vê a relação inseparável entre desconstrução da metafísica, desconstrução da heteronormatividade e desconstrução do monoteísmo. Os dois livros se escrevendo, ao mesmo tempo, e tirando filosoficamente vários fantasmas do armário: minha sexualidade, minha religiosidade, num golpe que ao mesmo tempo é duplo e o mesmo.

Para mim, uma tarefa de fôlego foi reler meu trabalho dedicado a Lévinas e meus três trabalhos dedicados à desconstrução: Da Existência ao infinito, Derrida e o labirinto de inscrições, Para um pensamento úmido e Experiências abissais. O que pode parecer, de certo modo, alguma continuidade (pois certamente não vejo uma ruptura em meus atuais ensaios) nesse percurso na alteridade (hoje nem sei se o termo alteridade me serve, pois prefiro os cruzamentos, os encontros, as encruzilhadas) é que no último livro já se desenha uma espécie de flerte com a noção de experiência, por quanto impossível, mas a mais possível de todas: a loucura, a morte, a tradução.

Creio que desde então, há um certo apelo empirista em meus escritos, talvez impactado pelo empirismo radical queer de Preciado, que prefiro pensar como um assombramento do pensamento pela experiência das ruas, e que aprendo a cada dia mais nos cruzos com Simas e Rufino e com tantos outros mestres da experiência que são Wanderson Flor do Nascimento, Marcelo José Derzi Moraes, Fábio Borges-Rosário, com meus orientandos, amigos e alunos que sabem mais das ruas do que eu.

Esse é, portanto, livro experimental, em todos os sentidos. Para experimentar a impossibilidade e tentar retratá-la, escritas outras devem ser experimentadas e não só textos, mas imagens, músicas, cores, palavras, sussurros, sonhos, delírios devem ser também incorporados à escrita. Tentei, aqui, deixar vir quem tem que vir e agradeço a todas essas pessoas e muitas outras não mais vivas, que ajudam nessa tarefa de escrita invocadora.

 

 

Ouvir o rangido das portas…

 

Isso que deveria ser uma introdução, já se estendeu demais, adiou, perjurou, não disse nada, e disse tudo ao mesmo tempo. Continuo, temendo e tremendo, mas cada vez mais certo ao mesmo tempo. Certo de que, nesse perder-me, estou encontrando tanta coisa que a certeza de que isso vale a pena é a única flecha que posso, aqui lançar.

 

Lá na porteira eu deixei um sentinela

Lá na porteira eu deixei um sentinela

Eu deixei seu Tranca Rua tomando conta da cancela

Eu deixei seu Tranca Rua tomando conta da cancela…

 

Me afasto da casa que sempre pareceu familiar, apesar de estranha, acendo a vela na tronqueira e olho de longe a construção. A casa, que parecia muito engraçada, porque era impossível, embora feita com muito esmero, se mostrou muito mais fantasmática do que eu pensava ao iniciar esse texto que começa com um destino e termina com outro.

De longe, vejo que a casa engraçada, sem teto sem nada, se parece muito com a casinha pequenina, no alto da colina, e agora tudo parece fazer tanto sentido…

 

Vocês tão vendo aquela casinha pequenina, lá no alto da colina?

A Mulambo mandou fazer,

É lá que o Tranca Rua mora, que o malandro chora, e você não vê!

 

Mandada por Mulambo, rainha divina, a deusa encantada, a casa abriga o dono das portas e aquele que só pode chorar quando ninguém vê, senão a malandragem perde seu efeito. Lá, aquele que é dono da gira e que diz aleluia, e aquele que toma cuidado com a canoa e que não pode maltratar o coração de uma mulher, vivem sob a égide da força do feminino, que mereceu ganhar o que ganhou, e que, apenas esse feminino, pode erguer a casa da hospitalidade incondicional que acolhe aqueles que seriam, em qualquer acepção higienista ou  princípio de hospitalidade, inabrigáveis.

Essa casinha pequenina, no alto da colina, é a vida, onde nós, povos de rua, nos encontramos, só alguns que não querem ver.

 

As almas já acenderam o candeeiro

As almas já acenderam o candeeiro

 

Canta Dirce Solis, filósofa-sereia, como que para nos dar a força que precisamos, todos, para escrever contra o carrego colonial. precisamos de força, da bênção das águas, e da amizade. Mas ela explica: o jogo já começou, já estamos nesta batalha e não somos poucos: as almas somos nós.

 

 

+ + + + + + +

 

 

Última nota: Escrevo e termino esse livro tendo voltado a morar na casa que cresci, onde habito com meu companheiro, meus quatro gatos e muitos fantasmas. Essas paredes que guardam minha memória, a memória de minha mãe, a memória de meu pai, com seus desenhos de nanquim, a memória de tantas entidades, deles, minhas e outras que nem sequer sei de quem são. Tudo isso faz parte e assina essa escrita também: meus medos, meu amor, minhas rezas, minhas saudades.

 

 

Rio de Janeiro, 02-02-2020

dois de fevereiro, dia de Iemanjá

 

 

 


NOTAS

[1] DERRIDA, J. Margens da filosofia, p. 16.

[2] DERRIDA, J. Gramatologia, p. 80.

[3] Sobre isso, remeto a meu livro Derrida e o labirinto de inscrições, mas especificamente ao capítulo intitulado “A an-arquitetura da desconstrução”, a subseção “A brisura” do capítulo “O projeto gramatológico” e ao capítulo “Margens, fronteiras, limites”.

 

 

 

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