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Ensaios e opiniões

O amplo espaço teórico e a temporalização da utopia

Este ensaio trata a teoria como ferramenta emancipadora da vida e sua função no ato de reimaginação do ser humano com o passado e perspectivas de futuros possíveis. Com isso estabelecido, relaciono essas características com as do tempo moderno, especialmente junto ao conceito de Reinhart Koselleck sobre utopia. Para isso, utilizarei três obras principais como referência, que abrangem autores como bell hooks, Ricardo Benzaquen e Koselleck.

Cheguei à teoria porque estava machucada – a dor dentro de mim era tão intensa que eu não conseguiria continuar vivendo. Cheguei à teoria desesperada, querendo compreender – apreender o que estava acontecendo ao redor e dentro de mim. Mais importante, queria fazer a dor ir embora. Vi na teoria, na época, um local de cura (HOOKS. 2013, p. 83).

O trecho acima, de autoria de bell hooks, nos leva a interpretar a teoria (aqui abrangida de um modo geral, não especificamente da história) como um espaço libertador. Um lugar aonde a mente vai para buscar uma referência que nos leve a enxergar o mundo ao nosso redor de outra forma. bell hooks era machucada por procurar essa intervenção na teoria, como a própria autora expõe com sua visão sobre o seu sentimento de não pertencimento ao meio em que estava inserida. Ela busca nos impactar ao explicar o refúgio que encontrou na teoria. Esse refúgio é abordado de forma universal pela autora, possível e presente em/a qualquer pessoa. bell diz muito sobre o quão acessível a teoria se torna a qualquer um que parte em sua busca, sobre como seu espaço proporciona uma experiência afetuosa, até confortável em certas medidas, a quem a escolhe como destino. O pertencimento a teoria, ao pensamento, e a estranheza que sentira com aqueles que não a compreendiam, se torna um ponto de identificação muito forte com a autora, que parte disso para uma reflexão mais profunda acerca de como a teoria nos serve.

Com o aspecto teórico bem estabelecido, as margens para o desenvolvimento do pensamento, do subjetivo e da imaginação se abrem. Quem aproveita muito bem disso, é o professor Ricardo Benzaquen, que utiliza desse espaço para construir um debate acerca do tema que aborda a história e a narrativa. O debate em questão parte da Escola Metódica, no final do século XIX e envolve duas dimensões. A realidade que os pensadores abordados por Ricardo observavam com a sua nova concepção de História e o contraponto disso com a dimensão da literatura. Isso promove o conflito que esses pensadores disseminavam em sua época, momento em que as histórias derivadas de narrativas eram encaradas como histórias sem valor algum. Isso passava totalmente pela tentativa destes homens de valorizar a história como campo científico e acadêmico. Isso alcunha-se como a concepção moderna de História.

Como dito, esse novo conceito de história ia diretamente contra a ideia da literatura. Ia contra o imaginário próprio de um texto ficcional. Procuravam na História, neste novo conceito firmado, uma autenticidade factual em todos os aspectos da realidade. A partir desse método, a História se apresentava como um campo científico, mesmo que se distanciasse da definição tradicional do que seria ciência[1]. Essa História construída por esses pensadores parte de um pensamento metódico crítico, que busca uma ciência capaz de lidar com cada situação específica de modo isolado, distante do olhar geral antes tido da ciência. Se baseava em um método extremamente preocupado com o particular, com os detalhes. Uma ciência fragmentada, que observava e analisava esses fragmentos e que tomava pra si o fato como algo quase que sagrado.

A partir disso e dessa concepção, como escreve Benzaquen, um romancista, por exemplo, será sempre um fingidor, alguém que não se guia através de fatos e a quem não se pode confiar totalmente. A dualidade presente a esse debate retrata muito bem o período de tempo a que esses pensadores pertenciam. O século XIX, como escreve Benzaquen, mantinha “um certo padrão de organização da vida social, eminentemente burocratizada, previsível e impessoal, padrão que parece reduzir drasticamente as chances de que apareça qualquer coisa nova a partir da economia ou da política.” (1998, p. 74). Diante disso, pode-se afirmar que esse conceito moderno de História esteve no centro da formação da disciplina como um campo científico.

Tendo em vista a disciplina da História formando suas bases dentro deste contexto, historiadores como Reinhart Koselleck procuraram criar novas formas de interpretação de fenômenos históricos utilizando do espaço proporcionado pelo campo teórico para fazer isso. O trabalho de imaginação de Koselleck o levou a formulação das temporalidades.

A partir da metade do século XX, imaginar futuros possíveis se tornava uma tarefa difícil. A transformação no conceito histórico que a humanidade sofreu no decorrer do século XIX, a concepção moderna de História, fazia com que cada vez mais o exercício de imaginação se ampliasse, mas os acontecimentos do século seguinte reduziram drasticamente as opções que o futuro poderia reservar. O horizonte temporal que se formava, se diferia integralmente da antiga crença do “homem moderno” na razão e no progresso. As reflexões de Koselleck, que partiam originalmente de suas experiências com as guerras, sugeriam que o mundo contemporâneo herdaria da modernidade uma aceleração do processo de desenvolvimento humano, o que revelaria um potencial de autodestruição iminente a humanidade, algo que antes era observado exclusivamente a partir da ótica divina. A redução dessas perspectivas fez com que Koselleck retomasse temas antes “esquecidos” para a tentativa de abertura de novos horizontes e (re)imaginação de futuros possíveis. Presente em sua obra Estratos do Tempo, o capítulo “A temporalização da utopia” trata a temática com mais potencialidade.

O tema principal do autor é a invasão do futuro no conceito de utopia. Seu pensamento parte da incorporação da utopia dentro da filosofia e campo teórico da história. Daí o surgimento do termo: temporalização da utopia. Koselleck utiliza o romance Anno 2440 de Louis-Sébastien Mercier como forma de reforçar a base de suas reflexões, sendo a principal delas, a recepção dessa escrita como a formação de um novo gênero literário. O alemão reitera a importância da obra de Mercier, especialmente durante o período moderno, quando as experiências pelas quais a humanidade passava naquele momento, os faziam olhar para o futuro com esperança. Com a obra literária de Mercier, a utopia ganhava um novo significado.

Mas no que se refere a esse significado, segundo Koselleck, é um conceito limitado. Mercier, ao escrever sobre a Paris de sua obra, ainda toma a Paris do século XVIII como referência de organização política e social. Sua tentativa de imaginação de um futuro distante ainda se limitava pela sua experiência temporal naquele momento. Isso é algo que Koselleck afirma:

O que o futuro oferece é, em poucas palavras, a compensação da miséria atual, seja ela de natureza social, política, moral, literária ou qualquer outra que o coração sensível ou a razão esclarecida possam desejar. Expressado de outra forma: a perfeição fingida do contra mundo até então espacial é temporalidade. Com isso, a utopia se insere diretamente nos objetivos dos filósofos iluministas (KOSELLECK. 2014, p. 126).

O que se pode absorver das reflexões de Koselleck é que seus diagnósticos sobre a utopia e sua temporalização se afirmam reais. Utopias derivadas do impulso inicial de Mercier podem resultar em cenários que se diferem ao extremo de sua “previsão” original. O futuro imaginado por pensadores do século XIX sucumbiu diante dos acontecimentos do século XX e utopias como a de Mercier, mesmo que despretensiosamente, abriram margens para a formulação de idealizações de realidade onde o aspecto negativo do terror é representante dessas expectativas, como formulado na utopia de Carl Schmitt. A temporalização da utopia é uma ferramenta importantíssima na tomada de consciência de futuros possíveis, especialmente quando analisamos acontecimentos históricos onde essa temática se tornou tão importante como no decorrer do século XX. Koselleck destaca uma ênfase especial à reformulação das expectativas com o futuro, dado o contexto de guerra pelo qual o escritor atravessou durante sua vida, onde o autor se coloca em uma direção certa para voltar a reimaginação o futuro para além do caos e da destruição.

Por fim, reitero aqui a importância do espaço teórico e sua abertura às possibilidades de criação, imaginação e interpretação de fenômenos históricos, das temporalidades, além das problematizações vindas através das provocações causadas pelos diversos autores utilizados na construção do texto. Observar o passado para imaginar o futuro é uma ferramenta essencial nos estudos da História e a teoria nos oferece um espaço propício a essas análises, o que agrega um valor imensurável ao estabelecimento da disciplina e suas funções.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

BENAZEN, Ricardo. História e narrativa. In: Ilmar Rohloff de Mattos. (Org.). Ler & Escrever para Contar: Documentação, Historiografia e Formação do Historiador. 1ed.Rio de Janeiro: Access Editora, 1998, v. 1, p. 221-258.

hooks, bell. teoria como prática libertadora. In.: Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins fontes, 2013, p. 83-104.

KOSELLECK, Reinhart. A temporalização da Utopia. In.: Estrados do Tempo: Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014, p. 121-138.

RODRIGUES, Thamara de Oliveira. Dos futuros passados aos futuros possíveis: uma leitura de Reinhart Koselleck e Ewa Domanska. 2021. Disponível em: <https://academia.edu/resource/work/84891218>.

RODRIGUES, Thamara de Oliveira. Introdução: Reinhart Koselleck: uma latente filosofia do tempo. In.: GUMBRECHT, Hans; RODRIGUES, Thamara (org). Reinhart Koselleck. Uma latente filosofia do tempo. São Paulo: Unesp, 2021.

 

 


NOTAS:

[1] O sistema da época privilegiava a definição de ciência como algo físico-matemático. Uma ciência capaz de apontar exatidão em seus estudos, produzir leis e identificar regularidades.

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: A obra de Reinhart Koselleck como antídoto à vergonha. Estado da Arte, 2020.

 

 

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