Por ocasião da realização da IV Semana Fluminense do Patrimônio (IV SFP) em Paraty, 2014, apresentei breves considerações sobre tema debatido na Mesa Redonda intitulada Grandes eventos como instrumentos de promoção e valorização do patrimônio material. O eixo temático foi subdividido em dois tópicos: a) “Como a realização de grandes eventos pode contribuir para dar maior visibilidade ao patrimônio material (construído e natural) de uma cidade ou região e promover sua valorização e preservação?”; b) O caso da cidade de Paraty. A retomada dessa reflexão, mesmo que distante no tempo, parece ainda ser pertinente e atual.
Vou me deter inicialmente na primeira questão, deixando a segunda para o desfecho deste ensaio. Cabe acrescentar logo de início que não é próprio do sociólogo responder questões sobre “como um evento pode contribuir…”; “como fazer para…” – ou outras questões dessa ordem – pois, não se propõe aqui invocar alguma razão instrumental no métier sociológico. Contudo, é próprio do nosso ofício esclarecer a sócio-lógica desses eventos e tentar responder de que modo se realizam, ou não, as promessas propaladas e/ou os objetivos difundidos no funcionamento da máquina celebrativa ou festiva. Cabe pesquisar sobre os impactos diretos ou indiretos, conscientes ou inconscientes, promovidos pelo complexo de empreendimentos e ações agenciados para a realização de tais eventos públicos.
Ajustado então os termos da proposição, vamos tentar responder à expectativa geral sobre alguma avaliação possível no domínio de uma sócio-técnica aplica aos megaeventos. Nessa direção, creio ser útil traçar um paralelo com a realização da Copa do Mundo de 2014. Através de tal aproximação talvez possamos avançar além das obviedades que estariam implícitas; operando como obstáculos ao nosso entendimento.
É patente que todo “evento”, grande ou pequeno, tem importância social evidente, pois é a manifestação de nossa existência, é a prova de que estamos vivos, chamando a atenção de todos, seja cidade, estado, nação, etc. Portanto, não vamos questionar se vale ou não o investimento em realizar eventos. Por outro lado, precisamos refletir de modo crítico sobre os discursos dos promotores e agentes organizadores: o que se propagou do evento, e como se defendeu e elaboraram suas finalidades: em nome do quê, e de quem, em proveito ou benefício de quem, realizam-se tais eventos?
No caso da Copa do Mundo de Futebol (FIFA) muito se falou dos diversos benefícios implícitos e explícitos da realização desse “megaevento” em nosso país; assim como da Olimpíada de 2016. Mas podemos dizer que um dos legados mais importantes, muitas vezes apontado como central é o propalado incremento do turismo no país – ainda muito baixo considerando suas potencialidades globais. Com o fim do evento, encontramos exaltações entusiasmadas, a ponto de se sugerir que o Brasil poderia se tornar em breve a “Meca do turismo mundial” (ARIAS, 2014), mudando a história de índices de fluxos turísticos mais fracos do mundo e mais baixos da América Latina.
Como se sabe o Brasil responde por um fluxo anual de apenas 6 milhões de turistas. Só no período de um mês foram mais de um milhão de turistas que aportaram o país durante a Copa; turistas provenientes de 203 países diferentes. Desse milhão de turistas, 61% não conhecia o Brasil. Para nosso regozijo, registrou-se em pesquisas realizadas 95% dos estrangeiros vindos para assistir aos jogos, afirmaram: “desejam voltar”!
Porém, concordemos seis milhões de visitas por ano é pouco, muito pouco. 85 milhões visitam a França; 53 a Espanha, 30 a Itália… Alguns desses países são até dez vezes menores que o Brasil, em termos de sua extensão geográfica. Os Estados Unidos recebem a cada ano 60 milhões de visitantes; o Canadá, 35; e a China, 55. E no nosso continente, por exemplo, México, Peru e Argentina recebem mais turistas que o Brasil. Então, seis milhões continua sendo irrisório para este imenso país com tanta riqueza artística, natural e humana.
O que ocorre nesse cenário global em que o Brasil se insere de modo muito tímido? Como reverter tais índices, tão desfavoráveis? São perguntas feitas por todo político e cidadão interessado na melhora desses dados. Mais uma vez os problemas do “como”. Mas afinal o que um sociólogo poderia falar sobre o assunto? No nosso caso aqui, mesmo não sendo um turismólogo, mas sociólogo da cultura é possível dizer algumas palavras interpretativas, considerando aspectos que fogem a dimensão puramente econômica. Pois é evidente que aqui predomina a ideia de que o turismo é uma “indústria” ao qual cumpre fazer circular determinado tipo de mercadorias atrativas, necessitando de um bom agente promotor para que resultem tais investimentos na melhoria de vida de muitos brasileiros. No entanto, quais mercadorias são essas? Por que se privilegia a circulação de determinadas mercadorias em detrimento de outras, vinculadas a outras dimensões da vida humana?
Sabemos todos que esse esforço concentrado, com um Ministério específico para tratar desse negócio de Estado, se faz em nome do desenvolvimento. Mas o que se pretende desenvolver? E que tipo de desenvolvimento desejamos? Estamos obcecados pelo desenvolvimento. Porém, de que modo a cultura e o turismo associados se prestam para a melhora de nossos índices sociais e econômicos, isto é, para a elevação do nosso PIB? Somos tomados pela ideia de que há uma vocação “natural” para o avanço de nossas potencialidades turísticas, e a cultura e/ou a natureza, conjugadas, ou em separado, são privilegiados no Brasil; isso ninguém nega. Muito se fala que o problema é a falta de infraestrutura adequada: precário sistema de transporte, terrestre, viário, aéreo ou marítimo; dificultando os negócios. Não obstante serem pertinentes estas observações nos interessam em especial a conjunção desses recursos em tela: natureza e cultura. Quanto a natureza tudo é evidente por si, pois o mundo tropical está associado aos mitos edênicos desde muitos séculos – é fácil ativar esse imaginário e todo seu simbolismo paradisíaco no mundo atual. Mas qual é o problema da cultura? Quais as dificuldades do desenvolvimento do chamado turismo cultural?
Como se tem difundido, os turistas que se destinam ao Brasil são seduzidos pelas qualidades e belezas naturais, culturais, artísticas, gastronomia, contudo são igualmente contagiados pela simpatia de seu povo. Sobressai aqui algo que nos interessa em especial, pois adentra na dimensão intangível e subjetiva da vida sociocultural. O Brasil destacou-se nas pesquisas realizadas, como um país possuidor de “cartada única”, qual seja a carta do calor humano de seu povo. Somou-se a esse destaque a capacidade de aceitar os estrangeiros e a ausência de discriminação e fobias, existentes hoje em muitos outros países (algo que hoje parece fantasioso).
Temos então algo importante nas mãos, uma herança cultural de grande poder de “sedução”: o patrimônio afetivo, subjetivo e intangível. Um milhão de turistas reconheceram que os habitantes são simpáticos e sempre acolhedores. Mas simpatia e hospitalidade não são mercadorias vendáveis, nem atrativos mensuráveis, tampouco são quantificáveis pela lógica economicista que ainda não contabiliza essa dimensão simbólica e cultural da vida humana. Em suma, não existe um lugar para commodities dessa natureza na economia política tradicional.
Uma inquietação pode nos sobressaltar. Será que pelo fato do Brasil ter pouco fluxo turístico se preserva assim o capital “calor humano”? A simpatia, o acolhimento ao estrangeiro, hospitalidade, etc., ainda sobrevivem porque não possuímos um fluxo intenso de turismo? Podemos operar com a equação: muito fluxo turístico = atitude blasé, antipática, indiferente e hostil? Esse capital calor humano se desgasta, se consome, se perde? Haveria um tipo de erosão dessa estrutura de sentimento? (Williams, 1971). Com o aumento do fluxo turístico e do estresse resultante, os brasileiros tornar-se-ão iguais aos outros povos já saturados de turismo excessivo (Ver o caso de Barcelona[1])?
A hipótese de passarmos por um efeito blasé, – conceito trabalhado pelo sociólogo Georg Simmel (1903) no início do século XX -, em consequência da intensificação do fluxo turístico é algo a ser pesquisado a posteriori. Não obstante essa suspensão do crivo analítico circunstancial, podemos arriscar uma reflexão que considere que essa commodity subjetiva persista como uma rocha na cultura brasileira, e que os brasileiros não se deixem contaminar por essas dilapidações mercadológicas de sua alma. Tudo certamente dependerá da gestão pública desses recursos; e é o que torna essa reflexão útil em alguma medida.
Vamos ao caso de Paraty. Conforme todos sabem, esse sítio constitui atrativo histórico, cultural e natural de grande exuberância. Todavia, ainda não possui um fluxo turístico equilibrado. E é mais especificamente no desenvolvimento final da questão sugerida sobre a cidade, em relação ao problema local, que desejaria sublinhar alguns aspectos da questão, antes de concluir.
Sublinho agora o que está escrito na proposta da Mesa: “a transformação do território em uma espécie de cidade-cenário com seu centro histórico desabitado e totalmente ocupado por estabelecimentos voltados à exploração turística (bares, restaurantes, galerias, lojas de artesanato, etc).”
Trata-se de uma constatação crítica preocupante. E podemos tornar mais aguda a reflexão se a aproximarmos das equações colocadas mais acima. Admitindo que o patrimônio afetivo (simpatia, acolhimento, calor humano) são bens e valores de grande atração no mercado turístico – tornando-se nosso diferencial e potencializando nossa inserção tardia no mercado mundial – de que maneira nós estamos destruindo e perdendo esse capital, antes mesmo de angariar seus melhores frutos – ao deixarmos os centros urbanos antigos de nossas cidades tornarem-se sítios fantasmas, sem sociabilidade, sem vida em comum?
Como encontramos salientado no tema da Mesa: o sítio está “totalmente ocupado por estabelecimentos voltados à exploração turística (bares, restaurantes, galerias, lojas de artesanato, etc.)”; uma constatação clara, objetiva e inconteste.
Como tem salientado Ermínia Maricato (2013) privilegiamos a circulação de mercadorias tangíveis, carregadas de pesados custos sociais na promoção dos megaeventos em curso. Mudar a órbita desses privilégios, mudar a lógica das políticas urbanas e culturais, requer uma mudança no enfoque da importância da produção coletiva e na formação subjetiva dominante. Algo que não é tarefa fácil e foge a qualquer empreendimento pedagógico pontual do tipo “educação patrimonial ou ambiental”; tão difundidos. É preciso enfrentar algo mais complexo e que diz respeito as ideologias que nos dominam e tornam “naturais” aquilo que tem escopo sócio-histórico profundo; além de dizer respeito a interesses econômicos evidentes.
Por fim, retomando as indagações iniciais propostas, consideramos que a preservação e valorização do patrimônio biocultural (CORRÊA, 2008) não pode estar dissociado de uma reflexão mais geral sobre a ideia de desenvolvimento, dominante na atualidade; nem do processo de constituição e fundação das sociabilidades que nos é inerente. Nossos melhores esforços deveriam seguir na direção de se explicitar um projeto de país, de nação – uma inteligência brasileira – nos capacitando a atingir novos patamares nesse domínio. Se nos alienarmos desses processos – verdadeiros “patrimônios afetivos-subjetivos-intangíveis” – perderemos efetivamente a chance de reverter um quadro desfavorável.
Paraty, tal como todos os outros centros urbanos antigos do país, tem passado por processos cíclicos de gentrification, todavia estes sítios precisam ser repovoados e devolvidos à população, seus verdadeiros habitantes. Desse modo, se garantirá de fato a conservação, preservação e valorização de bens patrimoniais de valor universais, já perdidos em vários países: simpatia, acolhimento, hospitalidade, ou numa só expressão: calor humano.
Como destacava o sociólogo francês Marcel Mauss, na obra Ensaio sobre o Dom (1925), tais valores fundamentais, os quais escapam a moral venal dominante, constituem-se nos verdadeiros bens simbólicos e culturais a serem preservados; atrativos essenciais num mundo cada vez mais esvaziado de sentido e afeto.
REFERÊNCIAS:
ARIAS, Juan. Brasil, a mina de ouro: poderia o país se transformar agora em uma nova Meca do turismo mundial? El País. 3 AGO 2023: <http://brasil.elpais.com/brasil/2014/07/17/opinion/1405556480_738008.html>.
CORRÊA, Alexandre Fernandes. Patrimônios bioculturais: ensaios de antropologia do patrimônio cultural e das memórias sociais. São Luís: EdUFMA, 218 p., 2008.
MARICATO, Ermínia. Megaeventos são álibi para aprofundar modelo de cidade excludente. Entrevista – 2013. <https://erminiamaricato.net/2013/08/27/megaeventos-sao-alibi-para-aprofundar-modelo-de-cidade-excludente/>. Acesso 3 AGO 2023.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre o dom. In, Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
SIMMEL, G. [1903]. “A metrópole e a vida do espírito”. In: FORTUNA, C. (org.). Cidade, cultura e globalização. Oeiras, Celta. 1997.
NOTAS:
[1] Why Barcelona locals really hate tourists: <https://www.independent.co.uk/travel/news-and-advice/barcelona-locals-hate-tourists-why-reasons-spain-protests-arran-airbnb-locals-attacks-graffiti-a7883021.html>. Acesso: 3 AGO 2023.
Créditos na imagem: Reprodução: Vista da cidade de Paraty, Rio de Janeiro (Luciana Whitaker/LatinContent/Getty Images/VEJA). Editora Abril, 2012.
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Alexandre Fernandes Correa
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