Neste texto, procuraremos, de modo despretensioso, lançar algumas notas para pensar a trajetória das gerações de pesquisadores docentes de história após a ditadura militar brasileira, como contribuição a acrescentar no esforço de entender o momento de inflexão ao qual chegamos em 2018. Hoje, a exemplo dos anos 1970, os professores progressistas de história foram colocados na defensiva, limitados em sua margem de ação, vigiados em sua liberdade de cátedra e inconformados com as políticas curriculares para a escola que reduzem drasticamente a presença e a importância do saber. Ao final, argumentaremos sobre a importância de uma associação específica de professores e pesquisadores dedicados ao ensino de História, sem menoscabo das demais entidades representativas e acadêmicas existentes. É importante destacar que trata-se de notas e reflexões pessoais, que não vinculam necessariamente os demais membros da ABEH.

Embora seja possível uma arqueologia do ato de refletir sobre o ensino de História no Brasil, chegando até o século XIX, a identificação dos atuais pesquisadores e ativistas da área é com a produção, as pessoas e os contextos que surgem no fim da ditadura militar brasileira (1964 – 1985), no processo em que se pensa e se faz a história ensinada como um elemento fundamental da reconstrução da democracia brasileira. No momento atual, em que jovem democracia brasileira enfrenta o seu maior desafio desde então, é possível, pensar alguns aspectos dessa caminhada. A impressão que temos é que retornamos, de alguma forma, àquele momento histórico em que a ditadura ainda não tinha ido embora totalmente, e a democracia ainda não estava de todo presente, como em uma espiral no tempo pela qual voltamos, mais adiante, a tocar um território que havíamos deixado para trás.

No começo dos anos 1980, a situação política e social era de efervescência, mas no sentido contrário ao que se vive em 2018: íamos das restrições para a liberdade, e as perspectivas de democratização da sociedade, das entidades representativas e da escola iam em maré montante. Tanto lá como cá, a marca é a da crise econômica profunda que combina um caráter desmotivante com uma necessidade de mobilização, pela simples questão da sobrevivência, seja física, seja de ideias, posturas políticas, profissões. Nos anos 80, é nesse quadro que se forja uma nova identidade laboral de professores progressistas que trabalham pela valorização de suas carreiras, das escolas, dos estudantes, mas não apenas em uma militância política, sindical e social, mas também acadêmica. Entre os professores progressistas, interessa-nos o subgrupo dos professores progressistas de história, sem ilusões de estar descrevendo um grupo homogêneo, mas que, em suas diferenças, eram professores à esquerda, pela própria oposição à ditadura militar, claramente de direita, apesar de suas múltiplas nuances. Não nos referimos, por exemplo, aos professores progressistas que ficaram mais próximos ao marxismo, mais ou menos ortodoxo, como foi o caso de amplas parcelas dos que se associaram à denominação “pedagogia histórico-crítica”, comum entre pedagogos, mas presentes também entre professores de história.

O posicionamento político dos que se foram agregando a essa identidade laboral não conduzia a uma postura doutrinária e nem doutrinadora. Pelo contrário, contrapunha-se à doutrinação de segurança nacional, presente também nas políticas educativas da ditadura, e projetava uma educação democrática, em que o estudante e seus saberes passavam a ocupar um lugar central no processo educativo.

Tratava-se de uma coletividade em crescimento e consolidação, que se pautava em princípios que eram ao mesmo tempo, reivindicações: superação das distinções e oposições entre escola e universidade, teoria e prática, pesquisa e ensino, saberes do professor e saberes do aluno. Essa postura resultava, em grande parte, do influxo do pensamento de Paulo Freire, da experiência da esquerda católica nas comunidades eclesiais de base, da prática do novo sindicalismo (contrário ao controle sindical por parte do Estado que vinha desde o presidente Vargas), enfim, uma esquerda não-marxista (ainda que em diálogo com o marxismo) que assumiria a democracia não como tática ou estratégia de chegada ao poder, mas como valor universal.

No diálogo com a universidade, na formação inicial ou em serviço, ou na atuação como docentes universitários, esse coletivo se aproximará e procurará se apropriar criticamente de vertentes historiográficas que, embora já não fossem novas naquele momento, haviam ficado represadas, seja pela vigilância ditatorial na universidade, seja pela resistência de remanescentes da ortodoxia marxista: a Nova História francesa, as contribuições dos historiadores reunidos na Nova Esquerda inglesa, e outras contribuições na mesma sintonia. Esse conjunto de contribuições, em sua diversidade, colaborava com um princípio fundamental a orientar essa coletividade: a concepção da relatividade e historicidade dos conhecimentos historicamente produzidos ou, dito de outra forma, o entendimento de que os saberes na cultura e nas ciências sociais não são objetivos ou universais, mas referenciados a um determinado tempo, espaço e grupo social.

Essa recuperação histórica acima foi necessária para fundamentar um argumento importante deste ponto em diante: para os docentes pesquisadores progressistas do ensino de História dos anos 80 e das gerações que se seguiram, um problema fundamental é o dos conteúdos a ensinar: sua necessidade, legitimidade, utilidade. Assim, essa coletividade nasceu em confronto com o cânone ocidental e eurocêntrico dos conteúdos históricos escolares, inclusive a versão tradicional da história nacional, cujo desenho essencial foi constituído ainda no período imperial brasileiro, sob o beneplácito da nobiliarquia nacional.

Numerosos membros dessa coletividade de docentes pesquisadores do ensino de História passaram aos poucos a desenvolver estudos pós-graduados, e se integraram aos quadros profissionais das universidades públicas. Neste espaço foi ficando claro que várias dicotomias persistiram, entre outros motivos, porque grande parte dos historiadores docentes nos cursos de formação de professores fechavam-se em sua dedicação à pesquisa histórica stricto-sensu sem dar a devida atenção aos aspectos didáticos de seu próprio trabalho. Desta forma, permaneceram referenciados ao padrão da discussão pedagógica de quando haviam sido estudantes, e permaneceram alheios ao debate sobre conteúdos a ensinar, desenvolvido em várias vertentes pelos professores pesquisadores do ensino de História, em intenso diálogo com a área da Educação.

Nessas décadas, os professores pesquisadores do ensino de História desenvolveram linhas de ação ao mesmo tempo no sentido de desenvolver e aprofundar o campo de investigação acadêmica referente ao ensino de História quanto de intervir na prática escolar do ensino de História, seja através da formação de professores, de projetos junto às escolas, ou ainda de interlocução e intervenção nas políticas públicas educacionais, como as curriculares e de avaliação, compra e distribuição de livros didáticos por parte do governo federal. Deste modo, acumularam uma expertise teórico prática sobre o seu campo, que se expressou na criação de congressos específicos, como os encontros nacionais Perspectivas do Ensino de História e Pesquisadores do Ensino de História, bem como a articulação do Grupo de Trabalho em Ensino de História, dentro da Associação Nacional de História (ANPUH), e finalmente a fundação da Associação Brasileira de Ensino de História.

Os movimentos descritos acima resultaram na manutenção de distâncias com o pensamento e as concepções dos historiadores stricto-sensu, apesar dos esforços em contrário de pessoas de ambas as partes. Isso, entretanto, não prejudicou que os historiadores stricto-sensu fossem convocados ou se dispusessem a opinar e intervir em políticas públicas educacionais, o que, não raro, foi feito desconsiderando todo o corpus empírico, conceitual e a expertise em políticas públicas construídos pela comunidade de professores pesquisadores do ensino de História.

O caso mais recente que permite analisar esta dicotomia foi a discussão da Base Nacional Comum Curricular, desenvolvida inicialmente pelo Ministério da Educação do governo da presidenta Dilma Roussef, e concluído pelo governo Temer após o polêmico impeachment/ golpe parlamentar de 2016. A primeira versão apresentada pela comissão constituída pelo MEC para a área de História recebeu ataques de todos os lados, começando pelo próprio ministro da Educação de então, Janine Ribeiro. A proposta terminou sendo derrubada, tanto por fatores políticos devido à mudança no governo federal, quanto pelo peso opressivo das críticas que recebeu. A parte dos historiadores nesta avalanche crítica foi, em sua maior parte, uma crítica demolidora, no sentido de que tendia a rechaçar a proposta em sua totalidade, e não corrigir as suas – evidentes – deficiências (afinal, tratava-se de uma versão preliminar feita em um intervalo de tempo restrito). Suas principais características eram uma decisiva redução dos conteúdos de História Antiga e Medieval e demais conteúdos relevantes para uma narrativa eurocêntrica, e a concentração em estudos da História do Brasil, incluindo a perspectiva indígena, bem como a História Africana e afro-brasileira.

No intenso confronto que se seguiu, a ANPUH terminou sendo um interlocutor privilegiado do Ministério da Educação, e terminou por representar mais decisivamente a voz dos historiadores stricto-sensu. Nenhuma surpresa nisso, e nenhuma crítica ao encaminhamento dos diretores: os professores pesquisadores do ensino de história representam a menor parte dos associados da ANPUH; até mesmo para respeitar democraticamente os critérios de representatividade da Associação. Por outro lado, esse fato apontou os limites da representação dos professores pesquisadores do ensino de História pela ANPUH e reforçou a necessidade do fortalecimento de uma associação específica, como forma de complementar a representatividade deste grupo. Esse é um dos argumentos em favor do papel da ABEH. E não deve significar uma contraposição entre as entidades. Muito pelo contrário, a grande maioria dos filiados da ABEH é e pretende continuar filiada à ANPUH, entidade na qual ocorreu a incubação e o desenvolvimento de grande parte dos debates, movimentos e lutas que constituíram a comunidade de professores pesquisadores do ensino de História. Afinal de contas, o momento é de manter as mãos dadas, reestabelecer as pontes, aprofundar o diálogo, rever os pontos falhos em nossa trajetória e, assim, preparar a contribuição dos profissionais da História na retomada do caminho democrático, que, acreditamos, virá.

Outros pontos que adicionam argumentos à importância da ABEH: a situação atual em que os professores são perseguidos por movimentos de extrema direita, com amplo apoio político e mesmo popular; entre os professores, os mais visados são os de História; a permanência, em novas bases, da dicotomia entre escola e universidade, agora um problema também dos professores pesquisadores do ensino de História; a necessidade de uma interlocução especializada sobre o ensino de História com as várias instâncias do poder público; a necessidade de discutir e estabelecer coletivamente os parâmetros éticos da profissão de professor de História; a agenda de disseminar as conquistas das últimas décadas de pesquisa na área como princípios práticos e viáveis na academia, nas escolas e no poder público, para enfrentar a relativa estagnação do ensino de História em critérios superados, entre vários outros. Não se trata de tarefas a serem cumpridas exclusivamente pela ABEH, mas seu papel é dinamizar e fortalecer estas pautas, estabelecer aliados e colaborar na promoção de tais avanços. Mas esses são tópicos para textos futuros.

Créditos da imagem: Laboratório de Ensino de História (LEHIS) – UFOP

 

 

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