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Além do olhar: as artistas do Brasil

O espaço urbano como espaço de expressão feminina em Minas Gerais: Coletivos de mulheres artistas em Belo Horizonte

Erwin Panofsky, em A História da arte como disciplina humanística (1979), coloca o interesse por investigações não-práticas do passado está relacionado ao interesse por nossa realidade. Foi através da observação do cenário cultural no qual atuam os coletivos de mulheres artistas belo-horizontinas que surgiu o interesse pela discussão que entrelaça o gênero e arte, tendo como recorte espacial a cidade de Belo Horizonte, capital mineira. No livro Minha História das Mulheres (2007), Perrot aborda questões como o silenciamento vivido pelas mulheres em diversos aspectos da vida social, não só no Brasil como no mundo. Os locais públicos, até meados do século XX, não contavam com presenças femininas, vista restrição a que eram subjulgadas ao espaço doméstico. Existe, em contrapartida ao silenciamento, porém, uma excessiva discussão sobre a figura da mulher, contando com descrições, imaginações e representações, mas que não partem das próprias mulheres. Neste ponto, em sua obra, a sexualidade é um aspecto relevante, pois também aqui está presente a subjugação. A autora traz que, no século XX, serão as guerras mundiais que abrirão caminho, devido ao abalo do poder e da dominação masculina, às maiores conquistas sociopolíticas para as mulheres, através dos movimentos feministas.

Na arte ocidental, apesar de o corpo feminino ser frequentemente representado e na maioria das vezes remeter à questão da sexualidade – como acontece com a representação do nu -, a figura da mulher e a sua própria sexualidade se mantinham submissas em detrimento da figura e sexualidade masculina. Laponte (2002), ao discutir a relação entre o conceito de sexualidade em uma sociedade e sua relação com as artes e o poder, ressalta que a vigilância às mulheres artistas exercia ainda mais controle sobre suas produções. O desenho por modelos nus, por muito tempo, foi proibido às mulheres, mesmo sendo uma das práticas mais utilizadas do século XVI até o século XIX, segundo a autora.

Outra autora que discute a presença do feminino na sociedade é Flávia Leme de Almeida (2010). Almeida parte de uma discussão sobre a parcialidade da escrita histórica e da necessidade da realização de pesquisas mais aprofundadas sobre, em especial, as artistas. Ela traz exemplos de importantes artistas (pintoras, escultoras, performistas) desde a Idade Média até a contemporaneidade, em forte diálogo com Perrot. Complementando a visão sobre o século XX na Europa, Almeida nos diz que:

 

O desenvolvimento da antropologia e a ênfase dada à família, a afirmação da história das ‘mentalidades’, mais atenta ao cotidiano, ao privado e ao individualismo, contribuíram para que fosse possível, para as mulheres, saírem da sombra (…).  (ALMEIDA, 2010, p.59)

 

As tarefas, os costumes, permissões e coibições sociais dos indivíduos eram estritamente definidas pelo gênero – aspecto que gerava preconceitos e muitas limitações à educação feminina. Esta era de responsabilidade das freiras e baseava-se no aprendizado de tarefas domésticas, além dos modos de etiqueta. É com a abertura às influências europeias, que transformações começam a acontecer. O “abre-alas” para o processo de abertura às novas possibilidade da educação das mulheres foi a leitura. Em seu livro “História da gente brasileira”, Mary Del Priore (2016) discorre sobre esta questão e nos mostra como a leitura foi importante para a abertura dos espaços de opinião ao público feminino, apresentando as publicações destinadas às senhoras e elementos que denotam novas experiências de convivência social para elas, como é o caso dos cafés, antes “destinados” apenas aos homens.

Os fenômenos da industrialização e urbanização moveriam transformações não somente na Europa, como também nos Estados Unidos. Ambos acreditavam que a educação e a religião, tal como Lilian Oliveira (2008) discute, eram estratégias nas relações de poder. Segundo a autora, é com a chegada da educadora e missionária Martha Watts ao Brasil, em meados de 1881, que são promovidas as aberturas das primeiras escolas para mulheres. A educação se torna o principal impulso à mudança pois “a mulher que ora, não tinha nenhum acesso à educação, e consequentemente aos espaços públicos, agora encontra a porta aberta pela educação e religião para tal espaço, através do acesso à escola” (p.2). Com a movimentação socioeconômica, nas transformações socioculturais faz-se notável o ensejo da emancipação feminina, refletida na busca pela liberdade profissional. Na Arte, até então, a entrada das mulheres em escolas de arte era proibida, mesmo em Paris. No Brasil, os episódios mais significativos se operam a partir do fim do século XIX, segundo Eneida Queiroz (2014):

 

Além da entrada de mulheres na Academia Imperial de Belas Artes, foi criado um Ateliê Livre desligado da instituição. Com o advento da República, em 1889, os velhos mestres foram aposentados – entre eles Vitor Meirelles e Pedro Américo – e uma nova geração assumiu a escola. (QUEIROZ, 2014, p.45)

 

Sobre a presença das mulheres nos cursos superiores, esta foi determinada por lei em 1879. Entretanto, esta abertura ao meio acadêmico não se deu de imediato. Ana Paula Cavalcanti Simioni (2002), de início, se atenta aos catálogos das Exposições Gerais de Belas Artes para analisar quantitativamente a presença de artistas mulheres e faz levantamentos historiográficos sobre as possibilidades da época para as mulheres que desejavam se dedicar profissionalmente à Arte:

 

A consulta aos catálogos das Exposições Gerais de Belas Artes (após 1889, chamados Salões) revela que a lei demorou a se traduzir (…). Elas [as mulheres], por algum tempo, continuaram sua formação tradicional em ateliês particulares de professores vinculados à academia ou na Académie Julién, em Paris. (SIMIONI, 2002, p.147)

 

De início, havia uma predominância das mulheres da elite, pois estas tinham a possibilidade de uso de um tempo livre para dedicar-se às artes, visto que “provinham de famílias que podiam dividir as tarefas domésticas com escravas e empregadas. ” (QUEIROZ, 2014, p.46). Sobre essa elitização, a questão das sexualidades volta à pauta, pois a construção do conceito de arte, como sabemos, muito se vincula às relações de poder. Em muitos períodos da História, a arte foi utilizada como forma de manutenção do poder sociopolítico, e isto é capaz de definir quem é o sujeito que representa e quem é o sujeito representado, bem como suas formas de representação imagética – que se reflete nas visões sobre os grupos sociais:

 

As mulheres da burguesia, como as artistas impressionistas Berthe Morisot e Mary Cassat, poderiam representar alguns locais selecionados da esfera pública, mas, afirma [Griselda] Pollock, uma linha demarcava não o fim da divisão público/privado, mas a fronteira entre espaços de feminidade. Abaixo desta linha encontravam-se o reino dos corpos sexualizados e mercantilizados das mulheres, no qual classe, capital e poder masculino entrelaçavam-se. (LAPONTE, 2002, p.288)

 

Definido por Simioni como um espaço estruturado de posições objetivamente definidas, por meios dos quais indivíduos, grupos e instituições lutam pelo monopólio da autoridade artística, o campo artístico não só define quem é ou não um artista, como também os critérios de legitimação e apreciação de suas obras. Isso envolve a consideração da trajetória do artista e da construção de sua singularidade, validada por “críticos, colecionadores, historiadores das artes, museólogos, galeristas, públicos, etc.” SIMIONI (2017, p.68). Em As consequências da modernidade, o sociólogo Anthony Giddens fala sobre o fenômeno dos desencaixes, cuja a imagem é “mais apta a capturar os alinhamentos em mudança de tempo e espaço que são de importância fundamental para a mudança social em geral e para a natureza da modernidade em particular. ” (1991, p.25) Dentro deste conceito, encontram-se duas noções intrínsecas que levam a este desenvolvimento das instituições sociais, as fichas simbólicas e os sistemas peritos; sobre as fichas simbólicas, o autor nos traz que:

 

Por fichas simbólicas quero significar meios de intercâmbio que podem ser ‘circulados’ sem ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular. Vários tipos de fichas simbólicas podem ser distinguidos (…). (GIDDENS, 1991, p.25)

 

Tomando o campo artístico como ficha simbólica, verificam-se em seu meio ações e conceitos que, desde o final do século XIX, vêm operando estas significativas aberturas e ocupações de espaços físicos de fala para as mulheres. Ainda que os sistemas peritos tenham a característica de não aceitar mudanças facilmente, isto é, sem que formas de luta e resistência em prol das mesmas se levantem. Belo Horizonte conta com muitos coletivos artísticos formados por mulheres, que advém das mais diversas áreas da arte e se encontram em um propósito específico: tornar visível a luta feminista por meio da expressão artística, ocupando o espaço urbano e levando pensamentos e ensejos quanto à igualdade de direitos e deveres entre gêneros.

O primeiro coletivo a ser aqui apresentado é o Minas de Minas Crew, que teve início em 2012 por iniciativa das street artists Viber (Lidia Soares), Nica (Nayara Gessica), Krol (Carolina Jaued) e Musa (Louise Libero), que desejavam produzir suas obras juntas. A expressão através da arte do graffitti foi o que tornou o coletivo famoso nacionalmente. Sua forma de atuação, que visa o enaltecimento feminino na arte, é ampla e vai do street art à participação em eventos sobre o tema do feminismo, e a divulgação de outras artistas mineiras, em geral. O projeto está presente em redes sociais, pelas quais mantém um contato mais próximo com o público. O canal do grupo no Youtube é, inclusive, rica fonte para um melhor conhecimento da cena artística feminina em Belo Horizonte, pois são realizadas entrevistas com as artistas, sempre contando com a pauta política que diz respeito ao feminismo.

A Fanfarra Feminina Sagrada Profana, projeto formado inteiramente por mulheres, é um dos diversos coletivos atuantes na capital mineira, e apresenta sua essência e objetivo através da descrição: “Lutamos pela voz e vez das mulheres através da música, da arte. ” A frase em questão é a descrição encontrada na página do grupo na rede social do Instagram, sendo esta uma das principais formas de comunicação do grupo com o público. Conhecidas pelo repertório musical fortemente voltado para obras que tragam em suas letras a luta pela liberdade e igualdade femininas, sobretudo nas celebrações do carnaval em Belo Horizonte, a luta política das mulheres, como traz Naroca, faz parte dos ideiais do coletivo, aliando-se à luta das mulheres artistas pelo seu reconhecimento no campo artístico. Em entrevista para o quadro “Quem são Elas? ” do canal do Minas de Minas Crew, uma das fundadoras do coletivo, Nara Torres (também conhecida pelo apelido, Naroca), fala um pouco sobre a história da Sagrada Profana. Formada em Música e exercendo o ofício há cerca de 10 anos, Nara conta que a pouca presença das mulheres no cenário musical em Belo Horizonte foi um dos principais fatores que levaram à formação da Fanfarra, em meio à emergência do movimento feminista, percebido mais fortemente no Brasil a partir de 2015. A partir do desejo de contribuição a este momento, a criação do bloco de carnaval surgiu como uma forma de ativismo através da arte, como conta a musicista. Após uma estreia muito positiva nas ruas da cidade em 2017, a Sagrada Profana teve seu projeto de atuação expandido, contando atualmente com a Fanfarra de carnaval, uma banda – que atua no restante do ano em eventos pela cidade – e, ainda, com a oferta de oficinas de formação musical para meninas.

Outro bloco carnavalesco feminino a se destacar é o Baque de Mina. Seu início se deu em 2013 e desde então o coletivo sai às ruas no Carnaval com um repertório que traz o instrumental único do maracatu somado ao objetivo de fortalecer o movimento feminista. O baque virado do grupo é comandado pela percursionista Daniela Ramos. O Baque de Mina tem como influências musicais ritmos como a Ciranda, o Coco, o Ijexá e o Congo Mineiro, e está ligado a outros dois grupos musicais: o Grupo Trovão das Minas e o Maracatu Nação Raízes da África. A questão da música afro-brasileira é outra bandeira do grupo, que atua também fora do período do Carnaval, em eventos e realizando oficinas para mulheres. A ligação com o carnaval, dentre esses coletivos, se mostra muito significativa pois, esta festividade é um momento em que se tem maiores possibilidades de expressar e enaltecer o ideário feminista.

Criado por um grupo de amigas de Campina Grande em 2012, o Bruta Flor Coletivo Feminista nasceu de uma necessidade que remete diretamente a pautas sociopolíticas: a falta de espaço para discussões acerca que questões sobre feminismo e de gênero. O coletivo promoveu, então, o 1º Fórum da cidade que tinha como fim essas discussões. A ideia inicial era que o evento fosse anual; entretanto, o grupo sentiu que era preciso levar mais adiante as ações, buscando realizar encontros e outras atividades mais vezes ao ano. O grupo conta, atualmente, com atividades de formação realizadas em escolas através de parcerias, além de oficinas, palestras, workshops e participa ativamente de atos públicos. Um evento promovido pelo Bruta Flor que se tornou muito conhecido é o Samba das Vadias, evento de música que busca arrecadar fundos para o coletivo. Em Belo Horizonte, o Bruta Flor se destaca, sobretudo, com seu bloco de carnaval, fundado em 2015 e que reúne, no Carnaval das Mina, outros blocos formados por mulheres.

Por fim, a cena da capital mineira apresenta também o Cio da Terra – Coletivo de Mulheres Imigrantes, formado em 2017 por mulheres artistas de diferentes áreas – artesanato, dança, pintura, dentre outras. O portal online Mulheres em Círculo (www.mulheresemcirculo.com/ciodaterra) disponibilizou um pouco da trajetória do coletivo, surgido a partir do projeto Mulheres do centro Zamni, no qual eram realizados encontros entre mulheres migrantes. O coletivo visa, principalmente, a integração destas mulheres na realidade e cultura brasileiras, vistos os desafios que se pode encontrar ao adentrarmos em um novo país – tais como: língua, trabalho e alimentação. Dentre as atividades promovidas, estão as rodas de conversa, as feiras multiculturais de artesanato e gastronomia e o Sarau Cio da Terra. A sororidade é importante conceito no coletivo, que traz a ideia de que “toda terra pode ser uma terra fértil”, isto é, as fronteiras – geográficas e mesmo socioculturais – podem ser transpostas e se tornarem espaço de cultivo para a autonomia, através da união feminina. Da mesma forma, percebe-se a importância dada à união feminina na luta pela igualdade entre gêneros. Os coletivos, através da arte, tornam mais acessíveis ao público estas ideias e as fazem circular pelo espaço urbano, contribuindo, assim, para que as novas gerações de mulheres se tornem mais autônomas, em todos os aspectos.

Belo Horizonte é uma cidade cujo cenário artístico tem se mostrado, felizmente, mais aberto à ala feminina, permitindo uma notável representatividade nas muitas vertentes do feminismo. Através de eventos como a Mostra SÊLA (festival de música integralmente organizado e realizado por mulheres, promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais em 2018) e mesmo por meios digitais (tal como o portal MAMU – Mapa de Coletivos de Mulheres, www.mamu.net.br), expande-se o espaço de troca de saberes e problematizações. Outros coletivos trazem, por exemplo, as demandas das mulheres negras, da comunidade LGBT, das mulheres com deficiências físicas/ mentais, etc. É importante que as vozes destas mulheres sejam ouvidas, que sua arte seja vista e apreciada, pois nela reside uma veia política de luta e resistência que de fomenta o empoderamento feminino e abre portas a novas criações.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Flávia Leme de. O feminino na arte e a arte do feminino: Movimentos libertários do século. São Paulo: UNESP, 2010.

BRUTA FLOR COLETIVO FEMINISTA. 4 Anos De Bruta Flor. [vídeo]. 2016, Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LBaoTx2UHuw

DEL PRIORE, Mary. Histórias da gente brasileira: volume 2: Império. São Paulo: LeYa, 2016.

EQUIPE ARTE SEM FRONTEIRAS. Conheça as grafiteiras Minas de Minas e suas artes. [online], 2016. Disponível em: https://artesemfronteiras.com/minas-de-minas-e-suas-artes/

GIDDENS, Anthony. As Consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

LOPONTE, Luciana Gruppelli. Sexualidades, Artes Visuais e Poder: Pedagogias visuais do feminino. In: Revista Estudos Feministas [online]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002.

MINAS DE MINAS CREW e Corina Moreira (prod.). Quem são Elas? – Sagrada Profana (vídeo). 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tvNgv-EiJlg

OLIVEIRA, Lilian Sarat de. Educação e religião das mulheres no Brasil do século XIX: Conformação e Resistência. In: Fazendo Gênero 8 – Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, 25 a 28 de agosto de 2008.

PANOFSKY, Erwin. A História da Arte como disciplina humanística. In: Significado das Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.19-46.

PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.

PERROT, Michelle. O gênero da cidade. In: História e Perspectivas: Uberlândia, Jan-jun de 2014, p. 23-43.

QUEIROZ, Eneida. Luz, movimento e emancipação. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: SABIN, 2014. Nº 105, p. 44-47.

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Campo Artístico. In: Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 66-68.

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti.. Entre convenções e discretas ousadias: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica feminina. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais [online]. 2002, vol. 17, nº50, p. 143-185.

 

 

 


Créditos na imagem: Minas que Fazem/ Minas de Minas Crew. In: Mulheres Viajantes.

 

 

 

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