Antes de tudo, o livro “Feminismo para os 99%: um manifesto” foi escrito por Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, publicado no Brasil em 2019. É um manifesto, tendo uma linguagem simples, de fácil compreensão e objetiva, as autoras podem ser inseridas no feminismo-marxista, trazendo importantes discussões sobre feminismo, capitalismo e sociedade atual. É dividido em 11 teses, além do prefácio, um capítulo chamado “Encruzilhada” e posfácio. Tornando-se em um instrumento de luta não apenas para as mulheres, mas para todos os grupos minoritários e explorados pelo capitalismo.
O prefácio do livro para a edição brasileira foi escrito por Talíria Petrone, em que evoca a imagem da escritora Carolina Maria de Jesus para falar sobre a necessidade de um feminismo que englobe o número máximo de mulheres. Sendo essencialmente anticapitalista, pois é impossível ignorar os dados alarmantes de mulheres vítimas do capitalismo, sobretudo negras (como ela cita o caso da Dona Nininha). Por isso que é necessário o feminismo ser antirracista também, pois a violência do Estado atinge principalmente corpos negros e pobres, ela exemplifica com o caso de Joselita. O feminismo abarca as lutas de muitas outras mulheres, e de grupos minoritários também, de mulheres indígenas que lutam contra a expropriação de seus territórios, assim como também é um feminismo voltado para questões ecológicas, sendo ecossocialista. Além de lutar contra a lgbtfobia e contra os grupos dominantes que desde a colonização dominam o nosso país. Esse feminismo que luta por diferentes causas se faz necessário com a crise que estamos vivenciando no capitalismo, além da força perceptível em diversos lugares da extrema-direita, fazendo do feminismo uma luta não apenas de determinado país ou países, mas internacionalista. Petrone termina o prefácio relembrando de Marielle Franco, uma mulher negra e feminista que foi assassinada covardemente, a sua memória ainda desperta lutas, principalmente nas mulheres brasileiras. O feminismo discutido no livro é contra todas as desigualdades raciais, de gênero e de classe.
No tópico intitulado “Encruzilhada”, Arruzza, Bhattacharya e Fraser discutem sobre duas vertentes do feminismo, uma a favor do capitalismo e a outra que se opõe a esse sistema. O primeiro é caracterizado como o feminismo corporativo ou liberal, em que temos um discurso voltado para a conquista de grandes carreiras por determinadas mulheres, não apontando os meios necessários e reais para acabar com a desigualdade de gênero, nem de classe ou raça, além de manter uma aliança com o sistema capitalista. Já o segundo, é um feminismo combativo, de mulheres se movimentando contra toda opressão do sistema capitalista, sendo um feminismo nascido das greves e da luta das mulheres da classe trabalhadora.
Em “Tese 1: Uma nova onda feminista está reinventando a greve”, nessa tese é ressaltado a ligação das feministas com as greves, podemos entender que o marco desse novo momento das lutas feministas começou em 2016, na Polônia, em uma mobilização a favor do aborto e contra a sua proibição. Outro momento importante foi com o levante “Ni una menos”, em que as mulheres argentinas foram às ruas contra o assassinato de Lúcia Pérez, depois o movimento se espalhou para diferentes países. Posteriormente, no dia 8 de março de 2017, ocorreu uma greve geral e internacional das mulheres. Assim: “Reanimando aquele espírito combativo, as greves feministas de hoje estão recuperando nossas raízes nas lutas históricas pelos direitos da classe trabalhadora e pela justiça social” (p. 32). Lutando tanto por aquelas mulheres que trabalham mas não ganham (as exploradas em seus próprios lares), como por aquelas que ganham mas vivendo em péssimas condições trabalhistas.
Na “Tese 2: O feminismo liberal está falido. É hora de superá-lo”, a principal crítica delas é ao feminismo liberal, este que é usado pela mídia para falar de feminismo de maneira geral. O feminismo liberal permite que algumas mulheres, as que nasceram com certos privilégios, adentrem em determinados espaços possíveis apenas para a sua classe social, passando o imaginário de que são mulheres empoderadas, mas não visa uma libertação para todas as mulheres e nem um rompimento com o sistema. Esse feminismo está presente em outros aspectos da vida social, como com determinadas personalidades famosas. Portanto, as autoras destacam que: “Não temos interesse em quebrar o telhado de vidro enquanto deixamos que a ampla maioria limpe os cacos” (p. 39), pois o feminismo liberal não visa uma libertação das mulheres que estão sendo exploradas pelo sistema que elas defendem e que elas mesmo exploram, utilizando muitas mulheres em situações precárias para realizarem as atividades domésticas.
“Tese 3: Precisamos de um feminismo anticapitalista – um feminismo para os 99%”, as autoras defendem que o feminismo para os 99% abarca diferentes mulheres em sua causa revolucionária, sendo uma esperança para todos os sujeitos que são vítimas diariamente das opressões do capitalismo. Tal feminismo visa mudanças sociais que garantam liberdade para todas as mulheres, vítimas de diferentes opressões e de violências dentro de sua própria casa, em locais públicos e onde trabalham também, por isso é necessário que existam programas sociais e econômicos que visem a libertação dessas mulheres.
“Tese 4: Vivemos uma crise da sociedade como um todo – e sua causa originária é o capitalismo”, elas falam sobre a crise que vivemos graças a exploração do capitalismo em diferentes setores, como na destruição da natureza e na exploração dos sujeitos que trabalham mas não recebem por isso, o capitalismo ocasiona a sua própria destruição, assim como a nossa. Mas, no meio dessa crise, podemos ter mudanças sociais também, pois: “Em tempos de crise, as massas críticas da população retiram seu apoio a quem detém o poder” (p. 47).
“Tese 5: A opressão de gênero nas sociedades capitalistas está enraizada na subordinação da reprodução social à produção que visa ao lucro. Queremos subverter as coisas na direção certa”. A opressão de gênero, no sistema capitalista, ganha novas definições, principalmente as atrelando ao trabalho de reprodução social e submetendo-as a diferentes formas de exploração no trabalho assalariado. O trabalho de produção de pessoas é essencial para que o capitalismo continue, tendo sua importância para a manutenção biológica do corpo, como para a manutenção da força de trabalho. Esse trabalho, o da reprodução social, não é pago e nem valorizado, submetendo as pessoas que trabalham nele (a maioria que desempenham essas funções são as mulheres), e as mulheres negras são as que mais sofrem com isso. Ademais, a reprodução social é usada para os interesses capitalistas, incentivando a manutenção do “[…] binarismo de gênero e da heteronormatividade” (p. 53).
Na “Tese 6: A violência de gênero assume muitas formas, sempre enredadas nas relações sociais capitalistas. Prometemos combater todas elas”. Um grande número de casos de violência de gênero são praticados por companheiros íntimos, como maridos ou namorados. Algo consolidado no sistema capitalista, pois temos uma mudança na estrutura familiar, a família nuclear heterossexual se constitue em um número menor de pessoas que a compõem, o homem é o ser dominante, ocasionando violência de gênero no setor mais privado. Mas as mulheres não sofrem apenas em suas casas, são vítimas no trabalho, escolas, hospitais, em que acabam sendo submetidas a tais situações por questões financeiras, além de outros fatores. São violências que visam o controle, como podemos exemplificar com as violências sexuais que as mulheres negras escravizadas foram vítimas, além das violações aos corpos das mulheres que foram usadas como tática em períodos de guerras. Não podemos separar as violências que ocorrem no âmbito privado e outras no público, muitas vezes as duas estão correlacionadas. As soluções para combater a violência de gênero não é com as propostas de um “feminismo carcerário” e nem do “feminismo burocrata”, mas devemos combater a raiz que é o capitalismo.
“Tese 7: O capitalismo tenta regular a sexualidade. Nós queremos libertá-la”. As autoras falam que existem dois lados quando falamos de sexualidade: o “reacionarismo sexual” e o “liberalismo sexual”. O primeiro quer preservar a boa moral e os bons costumes, o segundo tem um discurso de garantir a liberdade para todos. Mas os dois estão ligados à lógica do sistema capitalista, sendo que este se aproveita de algumas pautas para benefícios próprios.
“Tese 8: O capitalismo nasceu da violência racista e colonial. O feminismo para os 99% é antirracista e anti-imperialista”. A questão racial é um ponto crucial durante a crise do sistema capitalista. A violência se estende com grupos supremacistas brancos, com a polícia e o sistema carcerário contra a população negra e imigrantes. As primeiras feministas não reconheciam como a questão racial é importante, as mulheres negras eram constantemente discriminadas dentro desses movimentos. Mas o feminismo para os 99% se contrapõe a isso, enxergando que o principal problema a ser enfrentado é o capitalismo. As mulheres negras e as imigrantes também sofrem com trabalhos mal remunerados e em péssimas condições de trabalho.
“Tese 9: Lutando para reverter a destruição da Terra pelo capital, o feminismo para os 99% é ecossocialista”, não podemos discutir capitalismo sem ligar com a questão ecológica, já que é um sistema que pressuõe o uso de todos os recursos disponíveis da natureza para proveito e enriquecimento da classe dominante, mas não busca renovar as fontes, o que gera uma crise ecológica e do capitalismo também. Pois se não tem renovação, onde vão explorar? As mulheres constituem uma das principais vítimas da crise ecológica, por isso elas também estão lutando e combatendo isso.
“Tese 10: O capitalismo é incompatível com a verdadeira democracia e a paz. Nossa resposta é o internacionalismo feminista”, a atual crise do capitalismo é indissociada do campo político. A população está cada vez mais decepcionada com os partidos políticos, pois estes constituem marionetes nas mãos do capital, de grandes empresários e banqueiros; por exemplo, com medidas neoliberais e fracassando no enfrentamento de problemas. O capitalismo é o oposto de democracia, todas as decisões tomam para beneficiar uma determinada classe, além de apoiarem um imperialismo geográfico, em que determinados países possuem vantagens em cima de outros. O capital se aproveita do poder público quando quer, mas também o ameaça, utilizando a força para a derrubada daqueles que o contrariam (promovendo golpes de Estado, por exemplo). As mulheres, novamente, são as mais afligidas por isso, sendo separadas do direito de participar do poder público e as violências que sofrem são inseridas no setor privado. Ademais: “[…] as mulheres são as primeiras vítimas da ocupação colonial e da guerra” (p. 91), pois os seus corpos são violentados, são escravizadas, desapropriadas de suas terras e do direito de viver com quem amam. Mas não é porque uma mulher está em um cargo importante que todas as mulheres estão avançando, muito pelo contrário, elas defendem e fazem parte da classe dominante, sendo a favor do imperialismo e das guerras.
“Tese 11: O feminismo para os 99% convoca todos os movimentos radicais a se unir em uma insurgência anticapitalista comum”, o feminismo defendido do livro não está separado das demais lutas dos grupos minoritários, defendendo a união de todos eles contra o sistema que os oprimem. Afastando-se do “capitalismo reacionário” e do “neoliberalismo progressista”, chamando a classe trabalhadora e os grupos minoritários para o combate, reconhecendo as nossas diferenças e promovendo um companheirismo pela nossa classe social. O feminismo para os 99% busca ser um movimento internacional de subversão, sendo anticapitalista e antirracista.
No posfácio, as autoras inicialmente falam sobre a inspiração que tiveram no Manifesto Comunista de Marx e Engels, ao mesmo tempo que isso se torna um desafio, principalmente por causa das transformações históricas que estamos vivendo, diferente das do período de Marx e Engels, até mesmo com o capitalismo que se moldou. Na cena política, as feministas são ludibriadas com a ideia de que existem apenas dois caminhos: um neoliberalismo progressista ou um neoliberalismo reacionário. O manifesto tem a iniciativa de que nenhum desses caminhos é a solução, dando outra alternativa. Depois, as autoras retomam algumas discussões já realizadas ao longo do livro, como a questão da crise do capitalismo que estamos vivendo, no qual não podemos delimitá-la apenas como econômica, mas também corresponde contradições ecológicas, políticas e de reprodução social. Salientam novamente o que é o trabalho de reprodução social e a sua atual crise, pois mesmo o capitalismo dependendo desse trabalho, não o valoriza. Além disso, apontaram novamente a importância da defesa de um feminismo para os 99%.
REFERÊNCIAS
ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. Tradução de Heci Regina Candiani. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2019.
Créditos da imagem da capa: Reprodução.
Maria Dariana de Lima Bessa
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