Me lembro que em algum momento entre 2018 e 2019 meus colegas de moradia estudantil e eu recebemos alguns alunos intercambistas para uma conversa na sala comum de nosso bloco1. Eram três ou quatro, vindos de Angola, pós-graduandos de Serviço Social. Aprendi muito naquela noite, falamos sobre geografia, sobre seus costumes, sobre o cotidiano de nossas vidas, sobre o Brasil, sobre a cidade de Franca, onde morávamos, sobre raça e racismo; mas sobretudo, falamos de história. Percebi rapidamente o óbvio: que pouco conhecia de história do continente africano (muito menos de história angolana). “Pouco” em um sentido amplo, “pouco” além da colonização europeia a partir do século XVI, ou “pouco” antes dessa colonização. Percebi que não conhecia de fato qualquer historiografia africana, sua cultura histórica, sua história ou seu passado, além, claro, daquelas questões que se relacionam ao Brasil pela escravidão e pela colonização.
Em um certo momento da noite, um dos colegas intercambistas proferiu uma frase que se fixou em minha memória; ele falava de sua cidade, de sua família e de sua cultura ao dizer que “em África, a magia existe, está nas ruas, nas casas das pessoas”. Por mais que ele falasse de um lugar em específico, de uma certa região de um certo país africano, sua generalização continental me deixou muito intrigado, pois pude acessar ali, por meio de sua fala, um entendimento de uma cosmovisão muito diferente da minha.
Em África, a magia existe, disse ele. Em sua fala, não houve a necessidade de incluir um “ainda existe” ou qualquer sentido de resistência ou permanência temporal, de descrença ou ceticismo moderno2, afinal, trata-se, para ele, de um fato presente, contemporâneo e historicamente centrado. Alguns anos se passaram e sinto em dizer que meu aprendizado sobre historiografia africana não avançou muito desde então, ainda que eu tenha adentrado cada vez mais na profissão de historiador (ou talvez por isso mesmo, devido a necessidade de especialização contínua que dificilmente me permitiu sair de meu tema de estudo: a história da historiografia militar brasileira entre fim do século XIX e início do XX). Meu contato com sua literatura é mínimo e não almejo qualquer autoridade na redação deste texto. Ainda assim, a leitura de O mundo se despedaça (1958), de Chinua Achebe (1930-2013), com suas personagens, culturas e localidades me ofereceu um novo entendimento nostálgico sobre aquela frase que ouvi anos atrás na sala comum daquele espaço que durante quatros anos chamei de casa.
A partir dessa leitura e dessa memória, tomo emprestado a generalização de meu colega intercambista para reafirmar que em África, a magia existe. Ela existe nesse início de século XIX descrito por Chinua Achebe, no vilarejo semifictício de Umuófia, morada do protagonista Okonkwo, ela existe antes e depois da chegada do primeiro homem branco no vilarejo vizinho de Abame.
Chinualumogu Achebe, escritor nigeriano, membro da etnia Ibo, é frequentemente citado como o autor africano mais lido no mundo e atuou como professor na Universidade de Brown, nos Estados Unidos, a partir de 1990. No decorrer de sua carreira produziu livros infantis, poesias, contos, diversos ensaios e críticas sobre temas políticos e literários, além de, claro, romances, pelos quais ficou mais conhecido, como A paz dura pouco (1960), A flecha de Deus (1964), Um Homem Popular (1966) e O mundo se despedaça, sobre o qual falo aqui.
Em O mundo se despedaça, pilar central de sua trilogia sobre alteração colonial no território nigeriano, essa magia acima citada, centrada em uma cultura de crenças e práticas específica de uma cultura inspirada na etnia Ibo, guia não apenas a vida dos personagens, mas também a própria ordem da narrativa e de seu entendimento histórico. Achebe organiza seu livro em três partes, e mesmo que enrede seu roteiro ao redor do personagem Okonkwo, o faz de uma maneira pouco linear, especialmente nas duas primeiras partes. Sua narrativa não se organiza pelos acontecimentos narrados, mas pela memória compartilhada pelo protagonista e seu povoado. Okonkwo pensa, se lembra e é constantemente lembrado de eventos, práticas, tradições e outros personagens, que guiam o leitor pela história narrada. Sua infância é marcada pela incompetência do pai, que serve apenas de exemplo negativo: foi tudo que Okonkwo não deveria ser, símbolo de uma masculinidade falha e preguiçosa. A partir daí, os símbolos masculinos negados ao pai são exercitados pelo filho por meio de sua força física, por sua dedicação ao trabalho, pela participação ativa na guerra, pela prática da violência e pela atuação de liderança política nos temas da comunidade. Assim, Okonkwo conseguiu o que seu pai nunca sequer almejou: foi um homem respeitado em Umuófia, sua região. Dentro das lógicas estabelecidas pelo livro, Okonkwo reúne o que é mais valorizado na vida de um homem: conquistou o respeito de seu povoado pelas próprias mãos, construiu e manteve sua família pelo caminho que considerava correto, distanciando-se de práticas femininas e ancorando-se em sua macheza, que em muitas ocasiões implica em violência. Violência doméstica, em especial. Okonkwo é um homem irritadiço e recorrentemente agressivo. E essa agressividade acarreta uma virada na narrativa, levando-o a um exílio de sete anos no povoado da mãe após cometer um crime considerado “feminino”, pois quando um filho comete um erro, busca refúgio nos braços maternos.
A partir do exílio, o mundo começa a despedaçar. A vida de Okonkwo é adaptada em uma busca por redenção e retorno. “Sentia-se como alguém que tivesse de aprender a ser canhoto na velhice” (ACHEBE, 2009, p. 162). Sua experiência de tempo é afetada, e assim passa a organizar cada ato seu pela expectativa de que em breve, no futuro, sua vida volte a ser como era no passado. Okonkwo projeta ao fim dos sete anos de exílio seu retorno, não apenas físico, mas também político.
Mas a quebra de expectativa é forte e inaugura a terceira e última parte do livro, pois o prometido retorno de Okonkwo coincide com a marcante chegada do homem branco. Até esse momento da narrativa, a existência desse ser era quase mítica, fadada à dúvida e aos boatos de uma suposta escravidão em terras distantes. Mas dessa vez a realidade de sua presença foi devastadora. Simbolicamente, Okonkwo finalmente retorna ao seu povoado ao mesmo tempo em que a primeira igreja é construída, e para esse momento retomo rapidamente a cena descrita por Michel de Certeau em seu prefácio à 2ª edição de A Escrita da História. O historiador francês analisa o quadro de Jan van der Straet, em que a personagem conquistadora de Américo Vespúcio se encontra diante de uma mulher indígena nua, chamada América. Diz Certeau (2011, p. 11) que, pela cena, “o conquistador irá descrever o corpo do outro e nele traçar a sua própria história”. A colonização, exemplificada em O mundo se despedaça pela presença cada vez mais latente da igreja inglesa nas terras do vilarejo de Okonkwo, é uma conquista também historiadora, como fica evidente pelo abrupto final do livro, onde assistimos um comissário branco refletir sobre como as últimas e trágicas cenas deveriam ser registradas em texto, em um livro que planejava escrever sobre sua luta pela civilização de regiões africanas.
A história desse homem que matara um guarda e depois se enforcara daria um trecho bem interessante. Talvez rendesse até mesmo um capítulo inteiro. Ou, talvez, não um capítulo inteiro, mas, pelo menos, um parágrafo bastante razoável. (ACHEBE, 2009, p. 249)
A história desse homem, que acompanhamos durante os trajetos selecionados de sua memória, seria resumida em poucas linhas em uma história da “pacificação das tribos primitivas do Baixo Níger” (ACHEBE, 2009, p. 249), indexada a um movimento violento de colonização e conquista imperial, diminuída em um exemplo de homem de uma “tribo primitiva”, pouco mais que uma curiosidade anedótica desse capítulo de história não africana ou nigeriana, mas europeia e cristã.
“É a escrita conquistadora”, diz Certeau (2011, p. 11) claramente. Ainda que seu exemplo seja a América e não a África. Escrever história, em seus termos, é fazer um corpo escrito; dominar, pacificar, controlar este corpo, este quadro em branco que o colono encontra em uma terra que não é a sua. Essa escrita não apenas localiza esse homem e essa história, como dito por Sanjay Seth (2013, p. 180), “a escrita da história não é simplesmente um “ofício” que se aplica a um objeto pré-existente, natural; ao contrário, e como qualquer disciplina, a escrita da história concebe e constrói o seu objeto”. No livro de Achebe, essa conquista é representada pelo tempo, ou melhor dizendo, por um marcador temporal específico. Como dito, ao retornar para Umuófia após sete anos de exílio, Okonkwo se encontra desconectado temporalmente de seu vilarejo. A presença dos padres e do cristianismo em seu vilarejo pautou uma crise desconfortável em seu corpo, a nível coletivo, por meio de sua participação política, e a nível familiar, pela conversão de seu próprio filho à fé estrangeira.
Suas certezas, sua experiência, e enfim, seu mundo, se despedaçaram. Sua memória não guia mais a narrativa, suas experiências pessoais não mais se conectam com as práticas de seus antepassados. Sete anos foram suficientes para afastar seu conjunto de símbolos e crenças da realidade que encontrou em Umuófia. Sete anos que simbolizam uma brecha na experiência temporal, como desenvolvido por François Hartog (2013, p. 22), a partir de Hannah Arendt: “estranho entremeio no tempo histórico, onde se toma consciência de um intervalo no tempo inteiramente determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda”. O afastamento de Okonkwo pode ser interpretado como uma suspensão do tempo histórico, marcado posteriormente pelo embate com a nova realidade, que quebra sua experiência e lança novas possibilidades de futuro, das quais Okonkwo não fará parte. Essa é a colonização.
Ainda assim, um regime de historicidade não substitui o “anterior” em sua totalidade, experiências culturais permanecem em um (cada vez mais) novo espaço de experiência. Mesmo Hartog admite dificuldades em definir o presentismo como um regime pleno ou “apenas” by defaut3 em relação ao moderno. Portanto, ainda hoje é possível que um intercambista angolano me afirme que a magia (ainda) existe em África, com exemplos muito próximos destes apresentados por Achebe em sua obra. A colonização e a escrita da história conquistadora são processos de domesticação, de controle e violência. Processos que buscam incluir este corpo estranho em uma epistemologia lógica e racionalizada, ocidental e europeia.
Quando os historiadores ocidentais escrevem sobre o “seu” próprio passado, eles encontram as pessoas que acreditavam em bruxas, e às vezes até mesmo queimavam-nas, e aqueles que acreditavam em um Deus que intervia diretamente nas questões humanas. Mas essa parte inegável do passado é (vista como) parte do mesmo passado que, em seguida, deixou de acreditar em bruxas, e que retirou de Deus a sua atividade na história. (SETH, 2013, p. 178)
Okonkwo e Umuófia são transformados em linhas, parágrafos e páginas nas historiografias ocidentais que se querem modernas e racionalizadas, mas a permanência cultural é visível, em África ou mesmo no Brasil. Cabe, então, questionar esses meios de representação, naturalizados como racional e universal, do passado, acomodados pela historiografia. Cabe questionar de que modo diferentes povos se relacionam com seus diferentes passados. Concluindo, mais uma vez, com Sanjay Seth (2013, p. 187) repensar esse gesto de escrita imperialista “não significa abandonar o raciocínio; […] não é defender o fim da crítica. Mas é, sim, defender uma reconsideração daquilo que pensamos estar fazendo quando redescrevemos o(s) passado(s) dos povos em termos que lhe são alheios”.
Notas
[1] Resenha apresentada como requisito de avaliação para a disciplina “História, Temporalidades e Textualidade em África” ofertada no segundo semestre de 2023 pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e ministrada pelo Prof. Dr. Stefan Helgesson.
[2] Dialogo aqui com a afirmação de que a historiografia ocidental moderna “nasceu a partir de certas separações fundamentais que a constituíram como prática racional, e essas separações desabonam a possibilidade de escrever a história incluindo o papel ativo de deuses e deusas” (Seth, 2013, p. 177) ou outras crenças consideradas cada vez mais como irracionais, como, nesse caso, a magia citada.
[3]Questões apresentadas no prefácio “Presentismo pleno ou padrão?” de Regimes de Historicidade: presentismo e experiências de tempo.
REFERÊNCIAS
ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2011.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: Presentismo e experiências do tempo. São Paulo: Autêntica, 2013.
SETH, Sanjay. Razão ou Raciocínio? Clio ou Shiva? História da Historiografia: v. 6, n. 11, p. 173-189, 29 abr. 2013.
Créditos da imagem: Alegoria da América, Jan van der Straet, Domínio Público, https://pt.wikipedia.org/wiki/Johannes_Stradanus#/media/Ficheiro:Stradanus_America.jpg