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Ensaios e opiniões

O olhar visionário de Robert Mapplethorpe: sua vida e sua arte

 

Chelsea Hotel, cenário localizado em Nova Iorque, foi palco da gigantesca estética underground que compunha grande parte do movimento de contracultura que teve seu apogeu na década de 1960. Foi em um dos quartos desse histórico hotel que Leonard Cohen compôs Chelsea Hotel #2 para sua antiga paixão: a cantora Janis Joplin (RUNTAGH, 2016). Andy Warhol, Edie Sedgwick e Bob Dylan também são exemplos de rebeldia e devoção artística que transbordavam suas criações no cenário hippie mais intenso de Nova Iorque (SMITH, 2010, p. 114). Pode-se dizer que, consequentemente, o Chelsea Hotel foi o pulmão da arte nova-iorquina na época. O lugar que abrigava controversos artistas em troca de pinturas, esculturas, poesias ou qualquer criação meramente admirável, funcionou como uma espécie de sala de aula para Robert Mapplethorpe e, sua alma gêmea, Patti Smith, que descreve:

 

O hotel é um porto energético, desesperado, para bandos de crianças talentosas que precisam correr atrás de cada degrau da escada. Vadios com violão e bichas muito loucas em vestidos vitorianos. Poetas viciados, dramaturgos, cineastas falidos e atores franceses. Todo mundo que passa por aqui é alguém, mesmo que não seja ninguém no mundo lá fora (SMITH, 2010, p. 91).

 

Em sua obra Só Garotos, a poeta Patti Smith homenageia a vida e a arte do fotógrafo Robert Mapplethorpe, seu amigo confidente. O nova-iorquino foi entregue ao mundo em 4 de novembro de 1946, no Queens, Nova Iorque, Estados Unidos. Filho de Joan Dorothy e Harry Irving Mapplethorpe, o fotógrafo foi o primeiro e único artista entre os seis filhos do casal de ascendência britânica, irlandesa e alemã. Apesar do inesperado futuro do fotógrafo, os patriarcas criaram seus filhos com base nas doutrinas da educação católica.

O início da carreira do menino que queria ser artista se dava em Pratt Institute,[1] no Brooklyn, onde começou os estudos de Artes Gráficas. Entretanto, largou a faculdade antes de sua conclusão em 1969 quando, imediatamente, iniciaram suas primeiras produções fotográficas com uma câmera Polaroid Land 360, emprestada por uma colega de quarto do Chelsea Hotel (LUCAS, 2016).

Colagens, pinturas, esculturas, desenhos e escrita foram alguns dos materiais testados pelo artista antes de encontrar-se no formato fotográfico (SMITH, 2010, p. 20-88). Mapplethorpe via a necessidade de arquitetar uma arte centralizada nas dimensões sexuais do corpo masculino, seus limites e desejos mais sombrios. A manifestação inteiramente masculina que marcava suas produções não agredia a graça feminina que, inclusive, foram expostas em projetos simultâneos. O corpo masculino que tão pouco foi aproveitado pela fotografia erótica como espécime artístico na contemporaneidade aparece, necessariamente, como objeto de indisciplina nos retratos do fotógrafo. Assumidamente gay, Mapplethorpe é uma figura fundamental da arte homoerótica do século XX e seus retratos de múltiplos temas expõem o universo artístico que habitava em seu interior.

Engana-se quem pensa que Robert Mapplethorpe foi viciado em sexo e drogas. Apesar de seu currículo conter prostituição e uso excessivo de entorpecentes (LUCAS, 2016), sua verdadeira obsessão foi produzir arte diariamente. Segundo o próprio fotógrafo, era um desperdício passar um dia sem fazer arte. Patti Smith, ex-namorada e melhor amiga, descreve que a contradição, uma característica gritante do artista, é o caminho mais nítido para a verdade de seus trabalhos (NAVARRO, 2010). O pensamento em excesso de Robert Mapplethorpe tornava palpáveis as áreas de obscuro consenso humano. Tudo, ou quase tudo, para o fotógrafo, poderia se transformar e se consolidar em arte. Tendo em vista essa análise, através dos relatos íntimos arquivados em Só Garotos, entende-se que a ligação do artista com sua arte se mantinha além do físico.

Mapplethorpe investiu sua criação em conceitos que, atualmente, ainda estão em pauta. Tulips, Hyacinth e Leaf, obras que se iniciam aproximadamente em 1978 e permanecem ao longo da década seguinte, no projeto Flowers (SMITH, 2014), expõem ao espectador, que pouco traduz a linguagem dessas imagens, a inequívoca comparação do corpo humano aos seres da natureza. Segundo Patti Smith:

 

A exposição, ousada e elegante, misturava motivos clássicos com sexo, flores e retratos, tudo com uma apresentação equivalente: imagens despudoradas de anéis penianos ao lado de arranjos de flores. Para ele, eram a mesma coisa (SMITH, 2010, p. 199).

 

Essa série, tão incompreendida, poderia ser traduzida anos depois de seu próprio falecimento em 1989. Entende-se que, por ter falecido devido ao irremediável HIV, Mapplethorpe necessitava transformar fortemente os sinais da doença que arruinava paulatinamente suas funções vitais em arte (MEICHES, 1997, p. 116-125).

Percebe-se, nas escolhas artísticas do fotógrafo, uma interrogação existencial nas imagens produzidas. Sem respostas possíveis a respeito de seus questionamentos, Mapplethorpe lapidava a luz e transformava, com precisão, suas inquietações em frutos enriquecedores e esclarecidos, não somente sobre si mesmo, mas, sobre variados grupos sociais marginalizados no contexto nova-iorquino de sua atuação enquanto artista. Entre esses variados grupos de pessoas, o fotógrafo encontra no BDSM[2] a resposta para muitas de suas indagações.

Através de suas criações, o artista foi alvo de diversas críticas e censuras, o que não foi o suficiente para interromper o seu processo de criação. Em uma vida onde a procura pela perfeição era o seu principal objetivo, Mapplethorpe deixou seu legado como prova de sua existência e genialidade no mundo. Contudo, não apenas marcou a história da fotografia e arte contemporânea, como também é um dos principais nomes históricos para a comunidade LGBT e sua importância jamais será questionada. Seu nome e suas criações representam subculturas, gêneros artísticos e milhares de pessoas que o admiram. A persistência em suas crenças foi um exemplo explícito e lúcido de devoção, orgulho e resistência. Com prazer, Robert Mapplethorpe.

 

 

 


REFERÊNCIAS

LUCAS, Isabel. O fotógrafo que tentou domar a luz. Público, 2016. Ípsilon. Disponível em: https://bit.ly/34ah383. Acesso em: 25/setembro/2019.

MEICHES, Mauro Pergaminik. Uma metáfora possível da morte?. Revista USP, n. 33, p. 116-125, 30/maio/1997.

NAVARRO, Luis Hernándes. Patti Smith: De Rimbaud à madrinha do punk. Carta Maior, 2011. Disponível em: https://bit.ly/2X9TIRB . Acesso em: 02/novembro/2019.

RUNTAGH, Jordan. How Leonard Cohen Met Janis Joplin: Inside Legendary Chelsea Hotel Encounter. Rolling Stone, 2016. Disponível em: https://bit.ly/2pmVjXG. Acesso em: 20/setembro/2019.

SMITH, Patti. Robert Mapplethorpeb: Flowers. Alemanha: Schirmer/Mosel Verlag, 2014.

SMITH, Patti. Só Garotos. 1. ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 40-88.

 

 

 


Notas

[1] 4Pratt Institute é uma instituição privada de ensino superior localizada no Brooklyn, Nova Iorque, EUA.

[2] Sigla utilizada para exemplificar práticas sexuais BDSM. BD: Bondage e Disciplina; DS: Dominação e Submissão; SM: Sadomasoquismo.

 

 

 


Créditos na imagem: Self Portrait (detail; 1980), Robert Mapplethorpe. Solomon R. Guggenheim Museum, New York © Robert Mapplethorpe Foundation.

 

 

 

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