Para começar este texto, vale um relato pessoal. Nos últimos anos, tenho me dedicado a estudar diversos aspectos da vida rural, especialmente no município mineiro de Diamantina. Como objeto de minhas pesquisas durante o mestrado (2018-2020), abordei a sindicalização de trabalhadores rurais e a trajetória histórica dos trabalhadores na conquista de direitos em áreas como saúde, previdência, educação, entre outros. A temática das aposentadorias se sobressaiu, dada a sua importância entre os trabalhadores do espaço rural dessa região.

Desde lá, pude acompanhar diversos reclames sobre descontos indevidos nas aposentadorias desses trabalhadores e, inclusive, alertar e acompanhar alguns casos. Desde a procura por uma agência do INSS até orientações sobre o acesso aos sistemas eletrônicos da instituição, foram ações que desenvolvi. Isso nunca me foi um problema; afinal, os trabalhadores rurais sempre foram muito além de “objetos de pesquisa”, mas sujeitos com os quais me identifico, aprendo e escrevo história.

O caso é que fui procurado diversas vezes para abordar questões relacionadas a esses descontos. Identificava, em vários casos, descontos feitos por associações ou entidades que não possuíam qualquer sentido funcional, cultural ou classista com os trabalhadores. Por exemplo, descontos realizados por entidades pesqueiras, o que nada tem a ver com a realidade profissional e social desses trabalhadores. Dentro dos meus limites de qualificação e entendimento, colaborei com diversos cancelamentos de descontos dessa natureza, alguns por telefone, outros diretamente nos postos de atendimento do INSS. A questão é que nunca consegui que me explicassem a natureza desses descontos, nem mesmo ao fazer ligações para as entidades envolvidas.

Outro aspecto relevante é que, ao questionar e resolver os problemas, muitos trabalhadores indicavam outros que também estavam na mesma situação, relatando sofrer com esses descontos. Assim, diante da polêmica recente, que acusa o INSS de fraude, e de uma investigação que chega a alarmar em relação aos valores arrecadados e desviados, algumas reflexões pessoais, de alguém que atua junto aos aposentados, foram sendo construídas e quero compartilhá-las.

Esse escândalo revela muitos aspectos sobre a condução do nosso Estado, a segurança dos dados pessoais e a mentalidade medíocre que nos cerca e, em boa medida, faz parte de nossa história. Em primeiro lugar, podemos fazer uma leitura típica de uma prática patrimonialista, que, conforme apontado por Lilia Moritz Schwarcz (2019), é antiga na nossa história: as artimanhas na máquina pública em benefício de particulares é algo que vem marcado em nossa prática política. O erro, a corrupção e a negligência já nem causam mais tanto espanto; como na concepção de Jessé de Souza (2017, 2019), esses comportamentos são quase naturalizados em nosso sistema, retomados muitas vezes apenas no discurso, como por exemplo a falácia de “acabar com a corrupção”.

Com isso, percebe-se nos discursos populares a ausência de uma indignação verdadeira ou de um inconformismo, pois a convivência com escândalos públicos de grande escala já deixou de ser algo surpreendente. Em um cenário marcado por polarizações e disputas políticas de cunho individualista e de imagem, o discurso construído rapidamente vira pauta partidária. Não há um esforço eficiente e reconhecido de apontar os contextos de um Estado que, em vários aspectos, apresenta-se falho.

Outro ponto que merece atenção é a segurança dos dados pessoais. Em um país onde golpes digitais estão cada vez mais frequentes, o que se espera do Estado e de seus agentes é que esses dados sejam tratados com rigor e cautela. Ainda que exista uma legislação específica, como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), estamos em um contexto bastante sensível em relação à nossa individualidade. E isso ficou claro ao verificarmos que associações e diversas entidades tinham posse de informações pessoais, das quais não se é possível ter garantias de limites de uso ou de exposição desses dados, especialmente por serem entidades privadas.

A CNN Brasil e outros veículos de notícias no país divulgaram que aposentados da zona rural têm sido as maiores vítimas dos descontos indevidos. E o que isso também pode nos revelar? Entre várias hipóteses, uma delas, com forte fundamentação, é que se trata, principalmente, da continuidade de um olhar limitado e preconceituoso sobre os espaços rurais — uma mentalidade que os vê como sujeitos desavisados, atrasados, receosos e vulneráveis, muitas vezes sugestivamente frágeis. Essa concepção pode sugerir uma espécie de racionalização bastante questionável na arquitetura do projeto em questão.

Outro aspecto relevante é o modo como a população tem lidado com essa situação. Como de costume, as redes sociais produzem diariamente novos “memes” e piadas rápidas. A seriedade do problema é transformada em escárnio popular. E não estou aqui criticando quem faz as piadas ou quem as consome, mas, mais uma vez, ao citar Jessé Souza, ressalto que o sistema político, em geral, vem gradualmente caindo em descrédito. Diante dessa baixa confiabilidade, o que nos resta é transformar o tema em entretenimento. Embora existam outras vias — especialmente aquelas que, como mencionei, funcionam como palanque para fazer política, autopromoção, disputa partidária e outros interesses que já saturamos —, essa parece ser a realidade.

Acredito que não seja preciso estender muito aqui sobre o impacto direto disso na vida de quem realmente importa: os aposentados. Nos últimos dias, temos visto diversas manchetes nos jornais defendendo os direitos desses idosos e demais categorias de assegurados— o que, de certa forma, era de se esperar, pois são sujeitos que contribuíram com a nação e atualmente enfrentam um sistemático desrespeito a seus direitos. Boa parte deles vivem com proventos aquém do necessário para uma vida digna e acabaram reféns de um sistema que deveria, literalmente, os proteger. Mas, ao invés disso, eles estão servindo de escada para a construção de fortunas particulares. E o que dizer desse Brasil?

 

 

 


REFERÊNCIAS

 

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. 1ª ed. São Paulo,  Companhia das Letras, 2019.

SOUZA, Jessé A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Ed. Revisada. Rio de janeiro: Estação Brasil, 2019.

 

 

 


Créditos da imagem da capa: Jornal Contábil. Disponível em: https://www.jornalcontabil.com.br/noticia/fraude-no-inss-descontos-ainda-estao-suspensos-e-vitimas-cobram-rapidez/. Acesso a imagem em: 23/05/2025.