As comidas vendidas nas ruas entregam muito do que a cidade come – e como se come. No carnaval não é diferente. Na paisagem dos carnavais de rua dos grandes centros, como Rio de Janeiro, Recife e Salvador, foliões e blocos disputam o espaço com vendedores de comidas e bebidas, tanto aqueles que vivem o ano todo disso, quanto aqueles que veem nos festejos a oportunidade de fazer uma renda extra.
Isso faz com que o carnaval de rua seja uma experiência sensorial múltipla, que é feito pelo som das batucadas, que ecoam e embalam o ritmo dos foliões, o brilho e o colorido que saltam aos nossos olhos, o humor – que vem cada vez mais ganhando contornos políticos nas músicas e fantasias – e, é claro, pelos aromas das comidas preparadas e servidas no compasso da festa.
No Rio de Janeiro, o tradicional churrasquinho de espeto é uma opção rápida para quem quer matar a fome e acompanhar o bloco. É comum encontrar as opções de carne (bovina), misto (carne bovina e linguiça calabresa), salsichão e partes de frango, como asa e coração. Ao cliente é dada a opção de passar o espeto no molho à campanha (vinagrete, em alguns lugares) e na farofa. Algumas barracas oferecem, ainda, a opção de servir no prato descartável como porção, acompanhando o churrasquinho, o molho e a farofa. Assim, como porção, é popularmente chamado de “pratinho”. É muito similar ao “arrumadinho” servido em outras cidades.
Outro alimento muito comum no carnaval carioca é o “podrão”, um tipo de sanduíche que, marcado pelo prefixo “X”, varia na composição de ingredientes fritos na chapa. Tem X-bacon, X-egg, X-duplo, e o mais generoso, X-tudo. Geralmente essas barracas de lanche oferecem também cachorro-quente, de salsicha ou linguiça, que são cozidas em tabuleiros retangulares com tomate, cebola e pimentão, formando um molho que é dado como opção ao cliente na montagem. Esse processo começa com a pergunta, por parte do vendedor, se o cachorro-quente vai “completo”. O cachorro-quente completo leva, além dos ingredientes cozidos no tabuleiro, milho, ervilha, queijo parmesão ralado, batata palha, ovo de codorna e azeitona verde. O desafio é não deixar o ovo cair, e por isso é prudente começar a degustação por ele.
Pipoca é uma opção sempre presente. Tem a doce, com leite condensado e coco ralado, e a salgada, feita com lascas de bacon. E tem batata frita, milho verde cozido, espeto de frango empanado frito, pastel, tapioca, crepe, caldos e outras iguarias que, não tão comuns quanto o churrasquinho e os “X”, também representam a alta gastronomia de rua do Rio de Janeiro.
No Recife, uma amiga informou que além de cachorro-quente e pastel, é possível encontrar também bolinhas de queijo (aquele salgadinho de festa) servido no espeto. O mais clássico, porém, é a macaxeira com charque. A macaxeira é servida cozida em um prato descartável, fundo, e acompanha charque frita com cebola. Em alguns lugares, me disse, acrescentam também o queijo coalho. E tem o arrumadinho, montado no prato com charque frita, arroz, farofa e vinagrete. Ela fez questão de ressaltar que o tomate é verde no vinagrete, e que tudo é bem temperado.
Em Salvador, não falta o acarajé, também conhecido como “sanduíche nagô”, que resguarda uma profunda identidade culinária e tradições culturais do povo baiano, segundo o antropólogo Raul Lody (2019). É um bolinho feito de feijão fradinho, frito no azeite de dendê fervente, recheado com molho de pimenta, vatapá, caruru, salada e camarão seco. Uma delícia! A venda de acarajé tem uma relação histórica de ocupação da rua, remonta ao período da escravidão, quando mulheres africanas e suas descendentes ocupavam as ruas com seus tabuleiros a oferecer pratos salgados, doces e bebidas artesanais. A culinária baiana, marcada pela presença e interferência africana, goza de destaque no cenário gastronômico nacional. Manuel Querino, imbuído pela vontade de reafirmar a importância da Bahia na formação sociocultural do Brasil, escreveu em 1928 que:
É notório, pois, que a Bahia encerra a superioridade, a excelência, a primazia, na arte culinária do país, pois que o elemento africano, com sua condimentação requintada de exóticos adubos, alterou profundamente as iguarias portuguesas, ressaltando daí um produto todo nacional, saboroso, agradável ao paladar mais exigente, o que excele a justificada fama que precede a cozinha Bahia. (QUERINO, 2011 [1928], p.32)
Para conhecer mais da culinária baiana, é incontornável o livro “A arte culinária na Bahia” de Querino. A contribuição dele para os estudos culinários foi tratada na publicação recente dos professores Jeferson Bacelar e Carlos Alberto Dória, no livro “Manuel Querino – criador da culinária popular baiana” (2020). Vale conferir!
Os festejos carnavalescos nesses grandes centros, com grandes eventos que atraem turistas de outros estados e países, têm grande impacto na economia local. Os dados divulgados pelo poder público dessas cidades exemplificam isso. No Rio de Janeiro, em 2020, o carnaval carioca movimentou R$4 bilhões, registrando crescimento de 8% em relação ao ano anterior. A cidade recebeu 2,1 milhões de turistas, 31,2% a mais que em 2019, sendo destes 77% brasileiros, com maioria de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, e 23% estrangeiros, a maior parte de argentinos, chilenos, estadunidenses e italianos. No último ano, com calendário atípico, o carnaval oficial carioca se estendeu por 50 dias, movimentando 10.637.007 pessoas; desse número, 7.082.090 circularam nos blocos de rua, com destaque para o Fervo da Lud (1 milhão), Cordão do Bola Preta (630 mil) e Bangalafumenga (500 mil).
Recife registrou, em 2020, 2 milhões de foliões pelas ruas da cidade, com 226 mil turistas. No mesmo ano, o carnaval de Salvador girou R$1,8 bi, 16,5 milhões de pessoas, sendo 854 mil turistas. A capital baiana recebeu forte turismo interno, que se expressa pelo número de 435 mil turistas oriundos do interior do estado. 330 mil turistas vieram de outros estados, prevalecendo São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Minas Gerais e Distrito Federal. Entre os estrangeiros, que somaram 86 mil, se destacam argentinos, franceses, estadunidenses, alemães, espanhóis e ingleses.
Neste ano, por conta da pandemia de Covid-19, algumas capitais cancelaram ou adiaram o carnaval para o meio do ano. A expectativa é que com a vacinação, que segue ainda em ritmo lento por ineficiência política dos governos, nos próximos meses o cenário mude. Nesse contexto de crise sanitária, a suspensão do carnaval é essencial, sem dúvida. Considera-se, entretanto, que o país vai deixar de movimentar 8,1 bilhões de reais, com grande impacto no mercado turístico. E, por isso, a impossibilidade de realizar os festejos carnavalescos tira do horizonte de perspectiva de milhares de pessoas a opção de, na festa, buscar uma renda extra. A situação se agrava com o desemprego batendo na casa dos 14,6% no 3º trimestre de 2020, atingindo 14,1 milhões de pessoas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Mensal (PNAD Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O estado do Rio de Janeiro já registra 19,1% de desempregados; a Bahia tem 20,7% e Pernambuco, 18,8%. Essa condição econômica do país só reforça a opção do trabalho informal como uma forma de produzir renda.
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A comercialização de produtos diversos pelas ruas é um recurso para sobrevivência de muitas famílias, que no carnaval, além dos tradicionais adereços e fantasias para ornar os foliões, a venda de comida e bebida aparece sempre como uma boa opção. E a corrida pela autorização para comercialização desses produtos no carnaval começa meses antes do evento, com medidas de credenciamento por parte do poder público que visam regular esse segmento que é de suma importância para o funcionamento dos festejos. Em 2020, segundo reportagem da Folha de São Paulo (6/2/2021), 16 mil ambulantes se cadastraram para trabalhar no carnaval carioca. Desses, a metade conseguiu a credencial. E isso gera conflito na medida em que nem todos que pleiteiam a autorização a conseguem, e que mesmo assim se aventuram nas ruas das cidades para vender seus produtos. A repressão desses vendedores pelas forças repressivas do poder público, sobretudo guarda municipal, é constante.
Vender comida na rua é uma forma criativa de buscar meios de sobrevivência, de manter e financiar projetos pessoais e familiares, de driblar as estatísticas nada otimistas. O carnaval, pela importância econômica que tem para os grandes centros, atraindo milhares de turistas e fazendo girar bilhões de reais, é sem dúvida uma grande oportunidade para essas pessoas, tanto para quem já vive disso, quanto para quem busca uma renda extra.
A comida oferecida nas ruas traz as marcas da cultura alimentar da cidade, que se apresenta no tempero, nos ingredientes, na forma de preparo, na apresentação, e em alguns casos até mesmo quem faz. A antropologia da alimentação tem chamado a atenção para como os hábitos alimentares ultrapassam o ato de comer em si, uma vez que isso está articulado com dimensões sociais, culturais, e reitera identidades diversas (CANESQUI; GARCIA, 2005). Além dos pratos típicos da culinária regional, mesmo aqueles que guardam certa semelhança expressam suas diferenças no modo de fazer e comer. O cachorro-quente completo do Rio de Janeiro tem acréscimos no pão com salsicha que se diferencia bastante em relação a outras cidades. A macaxeira com charque e o arrumadinho recifense, embora apresente guarnições parecidas, difere do “pratinho” de churrasquinho carioca. Considera-se, por exemplo, o tomate verde do vinagrete, ressaltado por minha amiga do Recife, e que no Rio, no molho à campanha, não é uma exigência. E mesmo que seja possível encontrar barracas de acarajé nas ruas do Rio ou no Recife, é em Salvador que comer acarajé da baiana é quase uma obrigação moral para quem visita a cidade.
Creio que uma boa forma de conhecer uma cidade é comendo o que ela tem a oferecer. Comida comunica, de forma gostosa, histórias pela boca. E uma cidade não oferece sua cultura culinária apenas nos restaurantes. Parte disso se experimenta na rua, nas esquinas, nos pontos de ônibus, nas praças, com pessoas que fazem da comida uma fonte de renda. É uma forma de, na rua, experienciar a cidade pelos seus cheiros: da fumaça do churrasquinho, da charque na chapa, do acarajé no dendê, dos “X”, e tudo mais que na rua se oferece. E no carnaval de rua, cada uma a seu modo, não é diferente. Come o que se tem para comer.
REFERÊNCIAS
CANESQUI, Ana Maria; GARCIA, Rosa Wanda Diez (orgs). Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005.
FOLHA DE SÃO PAULO. Cancelamento de festas do Carnaval faz país deixar de movimentar R$8,1 bilhões. São Paulo, Mercado, On-line. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/02/cancelamento-de-festas-do-carnaval-faz-pais-deixar-de-movimentar-r-81-bilhoes.shtml. Acesso em: 12 de fevereiro de 2021.
LODY, Raul. Kitutu: histórias e receitas da África na formação das cozinhas do Brasil. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2019.
QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011.
Créditos na imagem: Marcos de Paula | Prefeitura do Rio de Janeiro.
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Rodolfo Teixeira Alves
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