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As Ciências Humanas e os Desafios do Século XXI

O sintoma da intolerância: A psicanálise como ferramenta das Ciências Humanas

A atmosfera liberal que atravessa nossa democracia, esse espaço onde experiências diferentes convivem lado a lado, assim como a vida é experimentada enquanto um traço singular, múltiplo e complexo, acaba sendo algo extremamente novo, uma raridade, ao menos quando se compara com os 200.000 anos que definem nossa espécie. Por conta de uma mancha de suspeita produzida por teóricos como Marx, Freud e Nietzsche, além de uma enxurrada de desconstrução, existencialismo, e tantas outras abordagens, acreditamos que a linguagem não tem nada de sólido, muito menos de correspondência, fazendo do significante uma carcaça vazia pairando dentro de um fluxo diferencial qualquer, em uma abordagem semiótica, ou, no máximo, sendo apenas um instrumento prático, frágil e provisório, como acontece em teorias pragmatistas. Aprendemos, portanto, que linguagem e mundo não se confundem, ou, como diria Foucault, aprendemos que as PALAVRAS e as COISAS perderam um vínculo substantivo, concreto, principalmente porque cada realidade tem seu próprio arranjo de significantes, seu próprio sistema semiótico. Parece maravilhoso esse mundo que acabei de descrever, esse espaço de contingências, escolhas, possibilidades, além de um campo com múltiplas aberturas, além de uma arena em que pessoas diferentes podem conviver em paz, não importa suas religiões, partidos, gêneros, etc. Claro que esse campo de possibilidades é incrível, e deve ser defendido a qualquer preço, mas esqueceram de falar do detalhe mais importante: Os custos. Os custos de entrada nesse espaço de contingência, os custos de acolher uma linguagem deflacionada (menos pretensiosa), como dizem os pragmatistas da virada linguística. Além do mais, esqueceram de contar que muitas pessoas lá fora, provavelmente nesse exato momento assistindo seus programas de Tv no conforto de suas casas, ou preparando suas comidas em suas cozinhas, consideram essa atmosfera muito sufocante, com custos muito altos, assim como riscos intoleráveis.

Nesse universo de uma democracia liberal, aquele cravado em um horizonte de diversidade, a intolerância é apresentada como um problema de caráter, um desvio produzido por pessoas cruéis, em um sentido ético, ou, talvez, por pessoas ignorantes, em um sentido epistemológico. Mas e se a intolerância não for um problema de caráter (ético), muito menos de conhecimento (epistemológico), mas de corpo (estético)? Se a linguagem é usada em seu sentido ancestral (tautológico), e clássico, ou seja, como um prolongamento espontâneo do mundo lá fora, essa mesma linguagem vai ser levada muito a sério, não sendo uma simples carcaça semiótica, mas sim um traço ontológico, uma experiência espontânea e não reflexiva com o mundo ao redor. Nesse modelo, linguagem e mundo se confundem de uma forma bem intensa, indiferenciada. Portanto, questionar a linguagem de alguém, não seria apenas questionar uma simples interpretação de mundo, um arranjo provisório de significantes, mas sim o próprio mundo, o próprio universo que se organiza em torno do indivíduo.

No campo religioso, os evangélicos, de maneira geral, são vistos como intolerantes pela esquerda, como se não enxergassem o óbvio, como se não observassem o fato de que o mundo é contingente e cada um tem seu modo único de lidar com a realidade. Mas partindo da ideia de que a intolerância é um traço estético, envolvendo aqui o corpo, é possível também falar dela enquanto um SINTOMA. Isso significa que a intolerância não é um desvio de caráter, muito menos uma falta de conhecimento, mas um mecanismo de defesa diante de um mundo incerto demais, instável demais. Segundo Žižek, se referindo aos fundamentalistas religiosos, o problema desses grupos é que eles levam a religião muito a sério, ao contrário da atitude liberal que entende a postura religiosa como uma escolha subjetiva, como uma roupa ou um acessório em que cada um carrega o seu. Aprendemos a reduzir a pretensão da nossa linguagem, assim como da nossa experiência; aprendemos que SIGNIFICANTE e SIGNIFICADO entram apenas em uma dança arbitrária, o que faz da religião algo contingente e incerto, e não uma esfera ontológica, como estrutura da própria realidade. O custo de adotar essa forma deflacionada (reduzida) de experiência, e consequentemente essa forma de religião, é muito alta, o que pode produzir um certo desconforto, no mínimo, ou, no máximo, reações intolerantes e violentas. A intolerância, nesse sentido, é um sintoma de uma experiência profunda (ontologia) que foi comprometida, ameaçada. Quanto mais firme esse horizonte ontológico, quanto mais a sério o indivíduo leva sua religião, mais intolerante ele se apresenta quando descobre o outro, o diferente.

Sem dúvida, não podemos “tolerar” os intolerantes, mas não podemos também partir de um critério epistêmico, como se eles carregassem ideias, representações ou interpretações de mundo. A esfera do outro, na maioria vezes, é mais profunda do que isso, mais profunda do que abordagens epistemológicas. Exemplo: quando Damares afirma que menino veste azul e menina veste rosa, ela não apenas apresenta uma interpretação de mundo, ou representações do que as mulheres e os homens são. Esse comentário é ontológico, reflexo de uma experiência mais imediata e espontânea com um mundo ao redor, além de uma ferramenta prática que organiza sua própria vida. A sua intolerância, nesse sentido, não é um desvio de caráter, muito menos um problema de falta de conhecimento, mas um sintoma diante de uma realidade que foi comprometida. Em um mundo onde novas formas de corpo aparecem o tempo inteiro, e critérios são reformulados o tempo todo, o mundo de Damares se apresenta como sólido, firme, constante. A epistemologia da suspeita apresentada na esquerda, reflexo de um solo de possibilidades e reformulações, e que eu pessoalmente adoto em minha trajetória como professor, pode se apresentar de uma forma um pouco indigesta, desconfortável, ao menos quando se encontra pelo caminho grupos que vivem uma experiência ontológica forte. Precisamos, portanto, aprender a ouvir o corpo do outro, como a psicanálise sempre fez, por mais que seja difícil importar essa metodologia nas ciências sociais, principalmente porque nosso critério sempre foi a fala, e não a escuta. Ao invés de apresentar a intolerância como causa da ação (“fulano agiu com intolerância” ou “fulano está sendo intolerante”), talvez seja mais produtivo entender sua existência como um efeito, um sintoma. A pergunta da psicanálise não é “por que indivíduos são intolerantes?”, mas “qual o papel que a intolerância desempenha em um determinado corpo, enquanto algo que produz sentido e organiza a experiência?”

Algumas vezes cobramos além do que as pessoas podem oferecer, exigindo um mergulho em uma piscina de contingência, embora muitos não tenham sido preparados para isso, em especial aqueles que vieram de outros tempos, de outras realidades. Sem dúvida, eu, enquanto doutorando em ciências sociais, e um professor de esquerda, defendo a diversidade acima de tudo. Mas não me surpreende o fato de muitos não concordarem com isso, como aqueles que se sentem ameaçados por uma abertura de possibilidades oferecida pela esquerda. Claro que não podemos acolher esses grupos, mas nossas formas de intervenção precisam de outros contornos. Precisamos abandonar nosso critério epistemológico (de que as pessoas são ignorantes), ou nosso critério ético (de que as pessoas são malvadas e egoístas), e assumir de uma vez por todas o elemento fundamental da psicanálise: A Estética, o corpo e a dinâmica dos afetos. Até mesmo a violência que brota dentro de certos grupos, assim como seus racismos, homofobias e machismos, podem ser entendidos como sintomas, como respostas desesperadas diante de um mundo que perdeu sua solidez. Racismo, por exemplo, não pode ser uma causa explicativa de uma ação, como se fosse uma força interna que mora nas profundezas de alguém, mas um efeito, um sintoma de um corpo situado em um mundo que perdeu consistência.

A diversidade é a melhor opção, claro, mas ela tem custos, já que nunca anda sozinha, quase sempre acompanhada com a angústia, além da incerteza de um futuro sempre aberto e indefinido. Sugerir a diversidade como algo simples, e óbvio, é apenas simplificar um cenário complexo, mas também não compreendendo direito as resistências e os movimentos reacionários. Pedir que a religião ontológica se transforme na religião liberal, naquela em que cada um tem a sua, sendo, portanto, um produto singular e subjetivo, muitas vezes é pedir demais, é cobrar demais. Defendemos o tempo todo a diversidade, e precisamos fazer isso, sempre, mas não é tão simples assim. Existe um preço que se paga pela diversidade, um preço por se viver em um mundo onde cada um tem sua versão, onde Deus é um produto personalizado, onde a realidade não é um traço ontológico profundo, mas um fluxo contingente de crenças, gostos e sabores. Pagamos um preço por viver em um mundo onde o futuro é incerto, onde o corpo e a sexualidade não têm critério, podendo se apresentar sempre com novas alternativas. Como disse no começo, precisamos combater o intolerante todos os dias, mas não partindo do critério ético, de que ele é malvado, ou epistemológico, de que ele é ignorante. Precisamos partir de uma noção estética da intolerância, de uma noção psicanalítica, ou seja, uma abordagem que envolve corpo e afetos, além de uma ontologia de fundo. Em outras palavras, a intolerância é um sintoma de um horizonte ontológico que foi comprometido, ameaçado. A experiência da diversidade, da palavra que não se confunde com a coisa, do significante que nada mais é do que uma carcaça vazia em uma rede diferencial, é um produto que gera maravilhosos efeitos, e que deve ser defendido a qualquer preço, mas não de maneira ingênua, não como é apresentada no facebook ou em programas da rede globo, como o Encontro com Fátima Bernardes. Para ser tolerante precisamos pagar um preço, precisamos reduzir a pretensão da nossa linguagem e da nossa experiência, embora isso não seja nem um pouco fácil.

Aos que não conseguem fazer isso, precisamos de rótulos melhores do que “autoritário”, “malvado”, “fascista”. Precisamos de rótulos funcionais, e que consigam, de fato, encontrar as demandas desse outro resistente. Precisamos de uma abordagem menos essencialista, menos epistemológica ou ética, mas sim estética, sintomática, onde o corpo ameaçado de vez em quando desenvolve estratégias de sentido que se apresentam como estranhas, ou mesmo violentas e perigosas. Ao entender a intolerância como sintoma, o objetivo é menos julgar, e sim ouvir. É entender que para muitos lá fora, o custo de entrada na esfera da democracia liberal, tão defendido por nós, indivíduos de esquerda, acaba sendo alto de demais, o que reflete uma aposta muito arriscada. Até mesmo a simples e inocente defesa de um estado secular, talvez não seja tão simples como muitos sugerem por aí. Precisamos, sim, defender a diversidade, o respeito, o acolhimento, mas essas são palavras muito mais espinhosas do que parece. Precisamos defender a escuta, muito mais do que a fala, além da capacidade de ouvir o corpo do outro, principalmente quando esse corpo desenvolve formas anti-sociais de convivência. Como já disse no começo do ensaio, a pergunta principal da psicanálise não é “por que indivíduos são intolerantes?”, mas “qual o papel que a intolerância desempenha em um determinado corpo, enquanto algo que produz sentido e organiza a experiência?”. Essas duas perguntas não apenas são diferentes, como mobilizam formas distintas e até contraditórias de intervenção.

 

 

 


Créditos na imagem: Capa de “Elogio da Loucura”, Erasmo de Rotterdam. Editora Lafonte – 1ª ed.(2017).

 

 

 

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