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Ensaios e opiniões

O Tibete deve resistir!

O movimento “Rhodes Must Fall”, que começou na Universidade da Cidade do Cabo em 2015, inicialmente apelou à remoção das estátuas em homenagem a Cecil Rhodes, mas rapidamente se tornou um símbolo global de resistência ao racismo institucional e ao legado colonial. No centro destes debates estava o ato de nomear e renomear territórios, uma ferramenta crítica do controle imperial. A remoção de nomes coloniais passou a simbolizar a descolonização e os esforços para corrigir a violência epistêmica dos governantes coloniais.
Nos últimos anos, a China também utilizou a mudança de nome como uma ferramenta de apagamento imperial, particularmente no Tibete, onde procurou substituir o nome mundialmente reconhecido “Tibete” por “Xizang”, o termo usado na China para designar Região Autônoma do Tibete e Tibete do Oeste. Apesar das afirmações da China de que o Tibete sempre fez parte da sua nação, o nome “Tibete” evoca a imagem de um país distinto e não de uma região da China. Esta discrepância alimenta a ansiedade de Pequim relativamente às percepções internacionais. Mesmo no Paquistão, um aliado próximo da China, o “Tibete” está associado a uma entidade distinta de montanhas nevadas e pureza ambiental, e não à China. Os esforços insistentes de Pequim visando remodelar estas associações mostram que, pelo menos para as autoridades chinesas, Shakespeare estava errado: o termo “Xizang” não tem o mesmo perfume quando comparado com qualquer outro nome.
Foi esta ansiedade que levou a China, nos últimos dois anos, a lançar uma campanha para pressionar empresas, editores e cartógrafos estrangeiros a adotarem o nome “Xizang” em vez de “Tibete”. Atualmente, quando políticos ou dignitários estrangeiros – especialmente de nações endividadas e dependentes da ajuda chinesa – visitam a China ou o Tibete, a mídia chinesa mostra-os usando o termo Xizang para se referir ao Tibete nas suas declarações públicas: a palavra Tibete foi cancelada. Tais atos ritualísticos de conformidade humilham estes visitantes e normalizam a substituição do Tibete por Xizang no discurso global. Tais atos de conformidade também estão surgindo agora no Ocidente. Por exemplo, o Musée du Quai Branly em Paris rotulou os artefatos tibetanos como provenientes de “Xizang”, enquanto o Musée Guimet recategorizou suas coleções tibetanas como originárias do “mundo do Himalaia”. Até mesmo o Museu Britânico, no catálogo da sua exposição em curso sobre a Rota da Seda, refere-se a Lhasa como localizada no “Tibete ou na Região Autônoma de Xizang”. No passado, a China exerceu pressão direta sobre instituições internacionais para cumprirem os seus requisitos de nomenclatura – notoriamente, em 2023, Pequim exigiu que um museu em Nantes omitisse quaisquer referências a Genghis Khan e ao Império Mongol numa exposição (o museu rejeitou essas exigências) – mas nestes casos mais recentes, as instituições ocidentais parecem estar apressadas em aplacar a China antecipadamente, mesmo sem sofrerem pressão direta para o fazer.
A preocupação da China em renomear o Tibete não é nova. Na década de 1990, Pequim determinou a utilização da frase “China’s Tibet” em publicações inglesas – uma tentativa desajeitada de legitimar a sua governação na região. O processo de renomeação e recaracterização estendeu-se à cultura popular, como pode ser visto na edição chinesa de Tintin no Tibete, que foi renomeada como Tintin no Tibete da China. Mas o tiro só saiu pela culatra, atraindo o ridículo no exterior em vez de aumentar a legitimidade da reivindicação da China sobre o Tibete.
A atual pressão para substituir “Tibete” por “Xizang” afirma ter uma justificação mais cerebral do que apenas afirmar a propriedade. Os seus proponentes argumentam que a palavra “Tibete” é um termo estrangeiro imposto como resultado do colonialismo ocidental. A evidência histórica mostra o oposto, no entanto. O termo “Tibete” evoluiu a partir do uso local, séculos antes do colonialismo ocidental chegar à Ásia. Todas as explicações acadêmicas sobre a origem da palavra a atribuem a nomes de lugares locais, com a maioria sugerindo que a segunda sílaba da palavra “Tibete” se originou do termo tibetano indígena “Bod”, que os chineses da dinastia Tang transliteraram como “Tubo”. Ao longo dos séculos, as interações com as culturas turcas e chinesas vizinhas transformaram o “Tubo” no “Tibete”, refletindo os intercâmbios interculturais históricos da região. Durante a dinastia Yuan, o termo “Tubo” persistiu em títulos oficiais, como “Comissário de Pacificação do Tubo”. Por outro lado, “Xizang” surgiu muito mais tarde, durante a dinastia Qing, possivelmente como uma transliteração incorreta da frase manchu “Wargi dzang” (Tibete do Oeste). Os documentos Qing ocasionalmente usavam “Weizang”, derivado do termo tibetano U-Tsang (Tibete Central), mas “Xizang” gradualmente se tornou o termo padrão nos registros oficiais da china.
Nos seus primeiros anos, o Partido Comunista Chinês (PCC) utilizou endônimos tibetanos como “Bod” e “Bodpa” num esforço para obter o apoio tibetano. Em Gyarong, uma região oriental do Tibete, na década de 1930, o PCC estabeleceu o que então chamava de “República Popular de Bodpa”, porque viam o termo “Xizang” naquela época como um legado do feudalismo Qing. No entanto, depois de chegar ao poder, o PCC voltou ao termo Qing e determinou o seu uso no chinês moderno. Esta mudança exemplifica a estratégia de longa data da China de utilizar a nomeação como ferramenta de controle político.
A exigência da China de que a comunidade internacional adopte “Xizang” reflete as práticas coloniais de renomeação de territórios para afirmar o domínio. Ao substituir nomes locais ou amplamente reconhecidos por nomes imperiais, as potências coloniais apagaram as identidades e histórias indígenas. Da mesma forma, o esforço de mudança de nome da China visa incluir a identidade tibetana numa narrativa centrada no Han, apagando o significado cultural e histórico distinto da região e marginalizando as vozes tibetanas, a sua herança e a sua soberania.
Internacionalmente, a palavra “Tibete” tornou-se um símbolo de uma identidade única com um significativo “poder suave” cultural, que é agora visto na China como evocando um sentimento de separação que mina a reivindicação de Pequim sobre a região. A campanha chinesa para impor o “Xizang” a indivíduos e instituições estrangeiras invoca o elevado nível moral da descolonização, ao mesmo tempo que procura tornar a comunidade internacional cúmplice das reivindicações de soberania da China e das suas práticas de apagamento cultural – embora, de fato, o nome “Tibete” não seja uma imposição ocidental, mas um termo enraizado no uso indígena, que data de interações entre os tibetanos e os seus vizinhos há mais de um milênio.
Se a China mesma quisesse descolonizar o Tibete, pelo menos promoveria e celebraria os nomes e as línguas indígenas do Tibete, em vez de impor a nomenclatura e a língua chinesas ao povo tibetano, e agora também aos estrangeiros. Reconhecer o nome “Tibete” como um produto da própria história e especificidade da região seria o menor passo que poderia dar no sentido de respeitar a soberania cultural tibetana.

 

 


Créditos na imagem de capa:

O Palácio de Potala, local sagrado para os budistas tibetanos (USAID U.S. Agency for International Development/Flickr)

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