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Além do olhar: as artistas do Brasil

Ofélia, hoje

Essência vitoriana e excelência da pintura pré-rafaelita, a Ofélia de John Everett Millais, pintada em meados de 1851, é a obra mais lembrada deste período da História da Arte. Representa o momento que se segue após Hamlet matar o pai de Ofélia na obra de William Shakespeare e, assim, ela se deixa cair no rio e permite-se afogar. Shakespeare descreve o local em que Ofélia estava como repleto de flores, além de um salgueiro, e Millais, que tinha grande interesse pelos temas botânicos na pintura, propõe sua visão da cena e a expande. Sobre a especificidade botânica, Millais é um artista que leva Ruskin a sério.

A natureza tem um tipo de poder espiritual e não cabe aos artistas a interferência na obra divina, e neste ponto Millais foge à tradição acadêmica ao buscar retratar o mais fielmente possível o que imagina acerca da cena descrita por Shakespeare. Ao pensarmos na pintura europeia que ensaiava este tipo de ruptura com os padrões acadêmicos, geralmente pensamos no fim do século XIX, na pintura francesa, no impressionismo, mas os ingleses pré-rafaelitas já trabalhavam este ponto ainda na metade do século. Millais encontrou um lugar muito parecido com o que Shakespeare descreveu, mas não tão pitoresco quanto o autor propunha no livro. O pintor, por sua vez, irá realizar a obra ao ar livre, lidando com as frustrações e dificuldades da pintura plein-air: insetos, clima, animais e etc.

Os pré-rafaelitas geralmente representavam mulheres solitárias, que reprimiam seus desejos e frustrações e neste caso, até da perda da razão, tamanha a desilusão sofrida por Ofélia. A modelo contratada por Millais posou por aproximadamente quatro meses e logo depois se tornou esposa e musa de Rosetti: Elizabeth Siddal. Segundo pesquisas sobre a história da obra, Millais teria comprado um vestido especialmente para a ocasião, bordado em prata e cujo tecido leve e esvoaçante se misturasse à água ao redor da figura humana. A obra fora elogiada também pela precisão botânica do pintor. O salgueiro caído, cujas raízes imitam o movimento dos braços da modelo, soma-se às muitas flores que podemos identificar e que carregam, cada uma, um propósito simbólico específico: as papoulas trazem a ideia da morte; as não-me-esqueças, a doce memória e as violetas, a fidelidade. Estas últimas também estão presentes no colar de Ofélia. As flores servem ainda ao propósito do pintor de facilitar esta identificação entre a pintura e o livro. Outros detalhes, como a luz que surge ao fundo no canto à esquerda e ilumina as plantas que crescem na água, demonstram a intensidade das cores e ambas as características representaram, em grande medida, novidades para os espectadores vitorianos. Por fim, a água está ligada às próprias emoções humanas; se deixar levar pelo rio reflete a intensidade da tristeza da personagem. O fato de os pré-rafaelitas abraçarem cenários mais claros foi um passo importante para o desenvolvimento de novas e técnicas e conceitos pictóricos, que surgiriam rapidamente ao longo de todo o século XIX e adiante.

Ofélia flutua, com as palmas das mãos viradas para cima, ainda com os olhos abertos sobre o rio. Mas quem é Ofélia? Como está representada a figura feminina na pintura de Millais e na literatura de Shakespeare? Algumas palavras nos voam rapidamente pela cabeça ao buscarmos entende-la: delicadeza, doçura, inocência. Ofélia se vai após uma desilusão, deixa seu corpo seguir as águas. Por uma questão de identificação pessoal, a fragilidade não nos vem à tona num primeiro momento, embora não seja possível não falar disto. Afinal, para se ter um coração puro, é preciso ter coragem. Mas nem sempre essa coragem é vista por todos como é de fato. Acreditamos que interpretar a delicadeza e a inocência como fragilidade é o primeiro erro; as pessoas mais fortes que conhecemos são justamente as mais doces. O segundo ponto diz respeito ao modo como a representação chega ao público: Ofélia remete facilmente à loucura, à fraqueza de espírito às quais a mulher se submete para ter um amor, segundo as visões masculinas – Millais e Shakespeare. Ofélia é, antes de tudo, fiel ao que sente, mas é uma mulher cuja narrativa superficial ultrapassou o seu significado mais profundo, que é a existência da sensibilidade em meio aos espinhos. A expectativa do amor não correspondido se encarrega de desencadear a loucura, esta sim, vista exacerbadamente pelo público. Mas a loucura de Ofélia também não deve ser restringida apenas ao amor, ou à obra de Shakespeare. As dores de se manter um coração sincero estão sempre presentes em nosso dia-a-dia, e estão sujeitas a serem vistas como fragilidades por quem já deixou de se importar com a própria essência.

A artista brasileira Regina Parra pegou para si este desafio de falar de Ofélia enquanto uma mulher cuja subjetividade esteve apagada nestas visões anteriores. A exposição “Eu me levanto”, de 2018, teve como fio condutor a seguinte questão: “Um corpo potente e lascivo e, ao mesmo tempo, vulnerável. O erotismo e a vulnerabilidade aqui são sinais de resistência. Uma estrutura capaz de superar limitações e transcender. Diante disto, a indagação: como transformar e adaptar esses movimentos?”

Dentre suas referências para a concepção das obras, estão o poema “Still I Rise”, de Maya Angelou, e a própria Ofélia de Shakespeare. O século XIX é marcado por divisões baseadas no gênero, tais como poder masculino x força feminina; para a artista, a obra do escritor inglês mostra claramente o poder masculino, refletido nas esferas sociais e políticas, por exemplo, mas traz a figura feminina como desprovida de quaisquer atributos semelhantes, mesmo a força, que então dizia respeito a um poder limitado ao âmbito doméstico. Para Ofélia, é deixada apenas a beleza idealizada. Não por acaso, os trabalhos de Parra se dedicam a explorar o corpo feminino enquanto poder e autonomia, colocando em diálogo – ou conflito – as hierarquias de poder, limites, controle e mudanças de limites culturais. A performance cuja imagem ilustra este texto, por exemplo, é intitulada Ofélia e consistiu em

frases ambíguas, que evocam resistência e protesto, mas também alienação e submissão, e que aparecem no texto como vestígios do destino inexorável que espera Ofélia. As artistas pintam suas palavras em painéis de madeira sustentados por estruturas mínimas e geométricas de ferro, sustentadas como signos de protesto por mulheres que, circulando pelo espaço expositivo, evocam uma procissão ou um evento e criam uma relação corpo-a-corpo com o visitante.

 

Realizada também em parceria com a artista Ana Mazzei no Padiglione d’Arte Contemporanea na Itália, a performance ocupa os espaços em que é realizada, com mulheres diferentes entre si. Frases como tanto maior é o meu engano, tenho medo que sim, mais afiado ainda – e mais cego e não penso nada passam pelos corredores do local da exposição e por entre os espectadores com calma e discrição, mas provocam a sensação do inesperado, daquilo que ainda está oculto e só é visto totalmente por quem carrega bagagem semelhante. Reinvenções como a de Parra são necessárias para que a História da Arte não pare em um lugar apenas; neste caso, para que a obra não seja interpretada apenas do mesmo ponto de vista idealizado e superficial por a séculos a fio. O eu de hoje transmuta e deixa visível a sua resistência, sem se envergonhar pela inocência que se mescla à coragem.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Regina Parra. In: Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Acesso em 07 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.premiopipa.com/pag/artistas/regina-parra/

Regina Parra explora o corpo feminino em “Eu me levanto”. In: Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Acesso em 07 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.premiopipa.com/2018/12/regina-parra-explora-o-corpo-feminino-em-eu-me-levanto/

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Ofélia – Performance di Ana Mazzei e Regina Parra. In: PAC – Padiglione d’Arte Contemporanea. Milão. Disponível em: http://www.pacmilano.it/events/performance-di-ana-mazzei-e-regina-parra/

 

 

 

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