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Ensaios e opiniões

Onde ficam as Guianas?

CHURCH, Frederic Edwin_Paisaje sudamericano, 1856_(CTB.1983.15)

Em meados de 2019, motivado pelos debates sobre o aumento do desmatamento na Floresta Amazônica, o presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou que a França era um país amazônico[1]. A frase, que causou estranhamento em muita gente no Brasil, fazia referência à Coletividade de Ultramar da Guiana Francesa (antigo Departamento de Ultramar). A permanência desse último território sul-americano sob controle de um país europeu[2] faz com que a cidade de Oiapoque seja vizinha da França. Mais do que isso, o Brasil é o país com a maior fronteira territorial com esse país, superando Espanha, Itália e Alemanha.

Atualmente, as Guianas (terra de muitas águas) são compostas pelo Suriname, antiga Guiana Holandesa, Guiana, antiga Guiana Inglesa, e a Guiana Francesa. Com histórias muito particulares entre si e em relação à Europa e às Américas Portuguesa e Espanhola, essa região vem nas últimas décadas lentamente se aproximando do Brasil. A Constituição Brasileira de 1988 pode ser identificada como um dos marcos desse processo. Após sua aprovação, Roraima e Amapá passaram a ser estados plenos e criaram suas próprias universidades federais, que contribuíram para a ampliação do conhecimento sobre esta região de fronteira e de seus vizinhos em seus múltiplos aspectos.

Ainda no campo da pesquisa e educação, é importante citar que, em 2008, como parte do REUNI (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), Brasil e França projetaram uma parceria ambiciosa, com a criação de uma Universidade Binacional no Amapá, que congregaria professores, estudantes e técnicos dos dois países, em uma formação bilíngue e com diploma válido também na Europa. No entanto, o projeto logo foi abandonado, muito por conta da crise econômica iniciada justamente naquele ano.

Outros aspectos também foram importantes nesse esforço de integração. A Guiana Francesa, por exemplo, inaugurou em 2003 uma moderna ligação rodoviária entre Caiena, sua capital, e a cidade de Oiapoque, na esteira de vários protocolos de integração econômica e cultural com o Brasil. Por sua vez, Guiana e Suriname aumentaram seus laços regionais ao se associarem a organizações internacionais como a UNASUL (União das Nações Sul-Americanas) e a ALBA (Alternativa Bolivariana), centradas no subcontinente sul-americano.

Recuando no tempo, podemos identificar outros momentos de estreitamento das relações entre o Brasil e seus vizinhos ao norte. Um exemplo pitoresco foi o plano formulado em 1961 pelo então presidente Jânio Quadros para invadir e anexar a Guiana Francesa. Apesar de nunca ter sido colocada em prática, a proposta de Jânio se assentava na crença de que uma intervenção brasileira na região deveria ser realizada em algum momento. Perspectiva essa que utiliza como pretexto uma longa trajetória de eventos que remetem ao século XIX, ou até mesmo ao período colonial.

Com a fuga da família real portuguesa da Europa, em 1808, e o estabelecimento da capital do Reino em solo americano, surgiu a necessidade de algum tipo de retaliação a Napoleão Bonaparte. No final daquele mesmo ano, tropas luso-paraenses auxiliadas pelos ingleses invadiram a Guiana Francesa. Desprotegida e sem ímpeto combativo, a colônia francesa capitulou em janeiro de 1809. Nos anos seguintes, medidas como a abertura dos portos às nações amigas, o fim do exclusivo colonial e a decisão da Coroa portuguesa de manter em vigor as leis napoleônicas geraram um relativo progresso econômico na Guiana Francesa, marcado pela ampliação de suas relações comerciais com regiões do Caribe e os Estados Unidos. Essas mudanças durante os anos de domínio português fizeram com que a devolução desse território aos franceses, como parte dos desdobramentos da queda de Napoleão e dos acordos relacionados ao Congresso de Viena, fosse criticada e rechaçada por muitos guianenses.

Poucos anos depois, a região voltou a despertar a atenção dos brasileiros. Com a proclamação da independência do Brasil, em 1822, os franceses na Guiana se desvencilharam dos compromissos com Portugal e retomaram antigas aspirações de ampliação de seus domínios em território amazônico. Com isso, surge o chamado “Contestado”, uma faixa de terra entre os rios Oiapoque e Calçoene que franqueava a entrada da bacia amazônica. Houve um impasse que levou à neutralização desse espaço em 1831, dando margem à criação de um território livre, sem jurisdição brasileira ou francesa. Para lá, migraram escravos fugitivos, criminosos, anarquistas, entre outras pessoas de diferentes nacionalidades. Em 1883, foi proclamada a “República do Cunani”, com bandeira, moeda e constituição próprias, uma tentativa de aventureiros e políticos franceses de estabelecer sua soberania no Contestado. A descoberta de ouro anos antes havia aumentado ainda mais os interesses pela região, empurrando-a para conflitos sangrentos que se encerraram apenas com as negociações diplomáticas iniciadas em 1895. Com o protagonismo do Barão do Rio Branco, o Brasil ganhou o pleito, selado pelo Laudo Suíço em 1900, que confirmou a posse brasileira desses territórios.

Não obstante esse rico passado de contatos, trocas e conflitos, as Guianas seguem “invisíveis” para a maioria dos brasileiros e também para seus historiadores, com uma produção extremamente escassa de pesquisas sobre a região. Essa invisibilidade, no entanto, contrasta com o movimento diário de garimpeiros, comerciantes entre outros trabalhadores brasileiros que se deslocam de estados como o Amapá, Roraima e Pará até as Guianas em busca de novas oportunidades.

 

Piratas, escravos, prisioneiros…

A história das Guianas desde a chegada das primeiras embarcações europeias ao seu litoral é marcada por sua complexidade e multiplicidade de atores e interesses. Sua localização estratégica, mais próxima da Europa do que locais como o México ou o Brasil, bem como o fato de estar distante dos principais centros de interesse português e espanhol na América atraíram uma série de expedições para a região, também conhecida ao longo do tempo como “Amazônia Caribenha” ou “Costa Selvagem”.

Para lá, rumaram piratas e corsários desde o século XVI em busca do Eldorado; africanos responsáveis por uma das maiores rebeliões escravas do continente, na região de Demerara, em 1823; indianos, chineses e javaneses entre outros povos europeus e asiáticos nas sucessivas tentativas de suprir a necessidade de mão de obra após a abolição da escravidão; inimigos de Napoleão III desterrados para uma das maiores prisões francesas do século XIX; militares e aviões norte-americanos durante a 2ª Guerra Mundial; garimpeiros brasileiros ilegais; líderes de seitas religiosas, como Jim Jones; cientistas e astrônomos, em direção a uma das maiores bases de lançamento de foguetes do mundo, em Kourou; entre muitos outros nos mais de quatro séculos de colonização.

Ao analisarmos o período colonial, percebemos, mais uma vez, as conexões estabelecidas com o território luso-brasileiro e, ao mesmo tempo, as especificidades locais. O controle francês sobre parte dessas terras, por exemplo, ocorreu após tentativas frustradas de ocupação do Rio de Janeiro e do Maranhão. No primeiro caso, conhecido como “França Antártica”, franceses de maioria protestante ocuparam algumas ilhas da Baía de Guanabara, em 1555. Dificuldades de se estabelecerem na região, conflitos internos e ataques de portugueses e grupos indígenas aliados fizeram com que a presença francesa no Rio de Janeiro durasse poucos anos. Em 1612, ocorreu uma nova invasão francesa no litoral brasileiro. A “França Equinocial” ocupou territórios do atual estado do Maranhão, sendo responsável pela fundação de sua capital, São Luís, antes de ser expulsa por forças lideradas pelos portugueses. Os dois reveses nos domínios portugueses na América estimularam os franceses a concentrar esforços em outras partes do continente, resultando na fundação de Caiena, em 1643.

Os Holandeses, por sua vez, se estabeleceram na região do atual Suriname ao serem expulsos dos territórios portugueses após mais de duas décadas de ocupação do nordeste brasileiro (1630-1654). Já os ingleses exploraram a região desde o século XVI, através de expedições corsárias como as lideradas por Sir Walter Raleigh em busca das riquezas do mítico Eldorado. Com os tratados firmados após a Revolução Francesa, a Inglaterra passou a ocupar territórios até então pertencentes aos holandeses, criando a sua própria Guiana.

No entanto, ainda que tentador, não podemos limitar a análise dessa região a uma associação simplista entre esses territórios e suas respectivas metrópoles europeias, com a Guiana associada aos ingleses, o Suriname aos holandeses e a Guiana Francesa aos franceses. Como exemplo, podemos observar a trajetória de Caiena, ocupada em diferentes períodos por holandeses, ingleses e franceses, além de, como mencionamos acima, ter sido tomada por soldados brasileiros a mando de Dom João VI durante o período napoleônico.

As diferenças em relação aos processos de ocupação das Américas Portuguesa e Espanhola persistem ao longo do tempo. Eventos como a independência, o Estado oligárquico do século XIX, o “populismo”, as ditaduras militares nos anos 1960-1970, as aberturas políticas nos anos 1980 e o neoliberalismo nos anos 1990 se aplicam de maneira limitada às Guianas.

Uma comparação entre os processos de independência é reveladora a esse respeito. No século XIX, enquanto praticamente todo o território sul-americano rompeu laços com Portugal e Espanha, as Guianas permaneceram como colônias europeias. No caso da Guiana Francesa, a região passou a abrigar um gigantesco complexo penitenciário que, em pouco menos de um século (1850-1945), encarcerou cerca de 70 mil pessoas, fazendo com que a região passasse a ser conhecida como “guilhotina seca”[3].

A ruptura com as metrópoles europeias e a criação do Suriname e da Guiana só ocorreram cerca de 150 anos após o restante da América do Sul. Na Guiana Inglesa, desde a primeira metade do século XX havia se firmado uma sólida tradição sindical, que ganhou novos contornos no pós-2ª Guerra Mundial. Sob liderança do indiano Jeddi Chagan, e do afro-guianense Forbes Burnham, fundou-se o Partido Popular Progressista (PPP), de inclinação comunista, que hegemonizou o sistema político da colônia. Crescendo cada vez mais, esse partido chegou a ser, no início dos anos 1960, a maior força independentista da região, com um projeto socialista inspirado tanto nos soviéticos quanto na então recente Revolução Cubana. Com isso, Londres deu carta branca para a intervenção norte-americana, através de sindicalistas aliados, peace corps e do próprio Departamento de Estado. O PPP acabou rachando e a independência foi pactuada com o partido de Burnham, que se aliou aos antigos colonizadores.

Entre 1966 e 1970, a Guiana recebeu créditos da Aliança para o Progresso, o que não aplacou a força do discurso socialista na sociedade local e o descontentamento com os rumos do país recém-criado. Em 1970, Burnham denunciou os acordos e refundou o Estado, doravante batizado de República Cooperativa da Guiana. O então presidente se aproximou ao Movimento dos Países Não Alinhados, ao Mercado Comum do Caribe (CARICOM) e às diplomacias soviética e cubana. Com isso, a Guiana se tornou uma bëte noire, até a morte de seu líder, em 1984, que marcou o retorno gradual do país para a órbita norte-americana. Atualmente, descobertas de enormes reservas de petróleo despertaram nova atenção sobre a região. Estimativas anteriores ao início da pandemia de Covid-19 apontavam que a Guiana seria o país com maior crescimento econômico do mundo em 2020, com um aumento de cerca de 86% do seu PIB[4].

Já o Suriname protagonizou um processo de independência bastante distinto. A partir da 2ª Guerra Mundial, surgiram partidos ligados às denominações religiosas, dificultando a formação de forças políticas em torno de temas mais amplos. No início dos anos 1970, com a crise internacional do petróleo, uma severa recessão se abateu na sociedade surinamesa, impulsionando greves e conflitos sociais. No parlamento holandês, cristalizou-se a diretriz da independência surinamesa, enquanto no interior da colônia se temia que a retirada do “guarda-chuva” da soberania holandesa pudesse fomentar guerras religiosas ou mesmo interétnicas. Em novembro de 1975, a independência foi concedida, com o governador colonial tornando-se o primeiro mandatário da nação recém-criada.

Mesmo após a ruptura, a Holanda continuou extremamente influente na economia local, ao conceder uma série de empréstimos ao novo país. Chamado de “aperto de mãos douradas”, esses laços econômicos passaram a ser conhecidos entre os opositores surinameses como “algemas douradas”. Por outro lado, a antiga metrópole facultou a cidadania holandesa para todos que para lá migrassem até 1980, gerando uma sangria de mão de obra qualificada que temia a falta de oportunidades locais e o fechamento migratório.

No plano simbólico, as cores da bandeira, as datas pátrias, o hino nacional e a língua oficial foram campo de intensas disputas, em razão do passado distinto de indonésios, javaneses, africanos, indianos entre outros grupos que formavam o país. Para além dessas divisões, o Suriname também é marcado pela existência de sociedades seculares no interior da mata, chamadas de bush negros ou marrons. Fruto de fugas na época da escravidão, essas comunidades mantêm até hoje ampla autonomia em seu território e tradições bastante distintas do restante do país. Ou seja, um povo, ao fim e ao cabo, de difícil inserção nos parâmetros do Estado nação ocidental.

Em fevereiro de 1980, o Suriname vivenciou um golpe militar sui generis, pois direcionou o ainda jovem país ao socialismo, com reformas internas e estreitamento das relações com Cuba. Descontentes, os Estados Unidos, então sob a presidência de Ronald Reagan, prepararam uma invasão militar evitada pela intervenção do governo brasileiro. O então presidente Figueiredo enviou vários diplomatas e militares para a capital local, Paramaribo. Entre eles, encontrava-se o General Danilo Venturini, responsável por negociar um plano de ajuda econômica e militar ao país em troca do afastamento dos surinameses da influência de Fidel Castro.

Na Guiana Francesa, o pós-2ª Guerra Mundial propiciou não só uma nova consciência política, mas também a implementação de medidas associadas ao chamado Estado de bem-estar social, com campanhas de vacinação, combate à mortalidade infantil e montagem de uma estrutura burocrática com altos salários para os servidores públicos. A partir de 1945, a região perdeu o status de colônia e se tornou um Departamento de Ultramar. Em 1960, a cidade de Kouru foi escolhida como local para a construção de uma grande base para lançamento de foguetes espaciais não tripulados, com fundos da comunidade econômica europeia, que atou ainda mais o destino do lugar à França. Mesmo passando por importantes movimentos independentistas nos anos 1970, com greves e mesmo atentados, a sociedade guianense não se tornou independente. Em 1982, o governo socialista francês de François Mitterrand concedeu uma série de medidas que ampliaram a autonomia administrativa local, desmobilizando parte das forças independentistas.

 

Tão próximas e tão distantes

Por fim, é importante observarmos que mesmo existindo muitas particularidades nas histórias desses três territórios, podemos identificar alguns elementos em comum. Entre eles, estão as sucessivas expedições europeias que fracassaram durante séculos na tentativa de se estabelecerem na região, uma economia marcada pelo trabalho escravo e a exportação de produtos como o açúcar e a mineração, o caráter multiétnico de suas populações (com forte presença de hindus, javaneses e chineses, atraídos especialmente após a abolição), sua ocupação litorânea e a estreita conexão com o Caribe, em detrimento dos laços com o restante da América do Sul[5].

Essas características, somadas a outros aspectos, como as diferenças linguísticas, ajudam a explicar o desconhecimento sobre essa região entre os brasileiros. Como símbolo dessa paradoxal proximidade distante, podemos citar a ponte sobre o rio Oiapoque. Mesmo pronta, a ligação entre o extremo norte brasileiro e a Guiana Francesa ficou fechada por seis anos, sendo inaugurada apenas em 2017. Mesmo assim, continua subutilizada, especialmente pelos brasileiros, que devido à burocracia e à cobrança de taxas, continuam preferindo outros meios – muitas vezes, ilegais – de atravessar a fronteira.

Esperamos que, com esse texto, bem como com o episódio #05 do Podcast Hora Americana do qual ele originou[6], possamos contribuir no ainda embrionário esforço de combater o profundo silêncio existente no Brasil sobre a fascinante história dessa região.

 

 

 


NOTAS

[1]economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2019/09/23/franca-e-uma-nacao-amazonica-diz-macron.htm Acesso em 18/07/2020.

[2] Além da Guiana Francesa, a França ainda mantém na América o controle sobre as ilhas caribenhas de Martinica e Guadalupe.

[3] Prisão que serviu de cenário para o romance Papillon, publicado em 1969 por Henri Charrière e adaptado duas vezes para o cinema. É curioso observarmos que a região também foi utilizada como prisão pelo Brasil no início do século XX, o que reforça a imagem de local que, por seu isolamento, clima e vegetação, seria propício para inimigos da ordem pública purgarem seus delitos.

[4] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51118055 Acesso em 19/07/2020.

[5] É curioso observarmos que essa proximidade com o Caribe e relativo distanciamento com o restante da América do Sul fica visível até mesmo em aspectos como o futebol. As três seleções da região não disputam os torneios sul-americanos, mas a Copa do Caribe.

[6] Podcast quinzenal sobre a História das Américas disponível em horamericana.com.br e em várias plataformas de áudio e vídeo. O episódio sobre as Guianas será lançado em 07/08/2020.

 

 

 


Créditos na imagem: Frederic Edwin Church. South American Landscape (1856).

 

 

 

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