Lembro-me que em meu primeiro contato com os estudos decoloniais, ainda nos tempos de graduanda, senti estranhamento ao me deparar com a ausência da letra ‘esse’ entre as duas primeiras sílabas da palavra decolonizar. Inclusive, cheguei a pensar que meu interlocutor se enganara e que, por isso, corrigiria em seguida o lapso e o substituiria pelo conhecido termo descolonizar. É claro que isso não aconteceu, pois, como logo descobri, não se tratava de um equívoco, mas sim do anúncio de outra categoria de análise. Em sentido semelhante, também me recordo de observar com interesse que, em se tratando especificamente das pedagogias decoloniais, as mesmas são geralmente anunciadas no plural, isto é, findadas com ‘esse’, o que não parece comum em outros diálogos sobre questões pedagógicas que conhecia. Portanto, compreendo que demonstrar os motivos que levam, por um lado, o ‘esse’ a ser retirado para que se geste outra categoria e, por outro, o ‘esse’ a ser incluído para denotar necessária pluralidade, tem o potencial de introduzir o panorama das propostas que constituem as denominadas pedagogias decoloniais.

Tomar os ‘esses’ como o primeiro ‘xis’ da questão significa partir dos debates realizados pela linguista, pesquisadora e professora Catherine Walsh[i] (2013). Em primeiro lugar, Walsh propôs o uso da categoria decolonizar, tomando como ponto de partida os elementos que a distingue do significado de descolonizar. Para a autora, enquanto esse último se refere às lutas que culminaram no término do domínio colonial, por meio da independência política de países antes dominados por metrópoles europeias, aquele primeiro se projeta para além dessa mesma independência, pois abrange a luta contra os duradouros domínios ontológico e epistêmico advindos do colonialismo. Portanto, se por um lado descolonizar remete a um processo terminado, decolonizar diz respeito a um projeto ainda em curso. Em segundo lugar, Walsh é uma das intelectuais que mais tem se dedicado a pensar aspectos relacionados às diferentes formas de se ensinar e de se aprender, as quais, para se constituírem como decoloniais, precisam ser antieurocêntricas, pluriepistêmicas e interculturais. Por isso, as pedagogias decoloniais são gestadas em diálogo com grupos sociais situados às margens do sistema-mundo moderno.

Nesses termos, as pedagogias decoloniais se encontram inseridas no chamado grupo de estudos da modernidade/colonialidade latino-americano, que, após discordâncias com as perspectivas pós-coloniais anglófonas, inicia seus trabalhos no fim dos anos 1990[ii]. Esse grupo reúne pesquisadores[iii] que compartilham o entendimento de que a colonialidade necessariamente constituiu a modernidade, leitura contrária, portanto, àquelas realizadas pelas ciências sociais modernas, para quem a primeira teria derivado da segunda. É também comum aos membros do grupo a necessidade de perscrutar os termos a partir dos quais se configura a colonialidade, a qual, para alguns autores, se manifesta em pelo menos três instâncias: a do poder, a do saber e a do ser. Em linhas gerais, a colonialidade do poder se estrutura nas assimetrias de raça, gênero e trabalho, destinadas ao controle de um povo sobre outro. Já a colonialidade do saber se constrói no domínio epistêmico, fundado na ideia de que somente a partir da ciência moderna será possível produzir conhecimento legítimo, enquanto a colonialidade do ser se pauta no domínio ontológico, expresso pelo ato de negar ao outro seu direito de existir[iv].

Em síntese, os estudos e as pedagogias decoloniais têm contribuído no sentido de oferecerem um importante aparato teórico-conceitual que possa balizar pesquisas compromissadas em criticar e superar as colonialidades, ao mesmo tempo em que se pauta na necessidade de mobilizar práticas transformadoras da realidade, apesar de seus limites[v]. Nesse processo, ao contrário do que ocorre em outras perspectivas teóricas, a decolonialidade não é gestada apenas por acadêmicos, mas é também construída no seio das lutas dos movimentos sociais, sobretudo aqueles situados no Sul Global. No caso das pedagogias decoloniais, é possível citar o exemplo das práticas autônomas lideradas pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional no México, a partir de 1994. Trata-se de uma rede própria de escolas alternativas, nas quais atuam educadores comunitários escolhidos em centros maias de Chiapas, em acordo com o que estabelecem os Acordos de San Andrés[vi].

É também importante salientar que os intelectuais pertencentes ao grupo modernidade/colonialidade reconhecem que o pensamento e a atitude decolonial antecedem a existência do próprio grupo, pois se encontram em curso desde o ato inaugural da modernidade[vii] e desde o primeiro contraponto construído pelos indígenas, pelos africanos e por seus descendentes. Pensadores como Guamán Poma de Ayala, que escreveu, em 1615, o ‘Nueva Crónica y Bien Gobierno’, e eventos tais como a Revolução Haitiana, datada de 1791, podem ser apontados como exemplos[viii]. Em sentido semelhante, ideias e escritos contemporâneos podem ser entendidos como próximos aos decoloniais, mesmo que seus autores não necessariamente reivindiquem tal proximidade. Para citar exemplos brasileiros, é possível mencionar a pedagogia das encruzilhadas, apresentada por Luiz Rufino[ix], e a pedagogia da diversidade, elaborada por Nilma Lino Gomes[x], além do programa educativo posto em prática pela Escola Pluricultural Odé Kayodê, da Cidade de Goiás[xi]. Estudos recentes têm situado, ainda, a educação popular latino-americana enquanto pedagogia decolonial, com destaque para os trabalhos de Paulo Freire[xii].

Desde o dia em que as letras ‘esses’ se tornaram, para mim, o primeiro ‘xis’ da questão, os estudos e as pedagogias decoloniais têm sido parte importante de minha caminhada como pesquisadora e como professora. Nos últimos anos, tenho me dedicado a investigar estratégias para o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana em uma perspectiva decolonial. Parto do entendimento de que a Lei 10639/2003[xiii], bem como as ‘Diretrizes Curriculares Nacionais’ dela decorrentes, consistem em ferramentas capazes de descolonizar os currículos formais, pois reinvindicam protagonismo para os africanos e seus descendentes. No entanto, apenas os agentes das escolas, mais particularmente os professores, têm o potencial de decolonizar as salas de aula. Para se construir uma pedagogia decolonial, não basta abarcar uma série de temas que antes não constavam nos documentos curriculares. Dentre outros aspectos, é necessário dialogar com as comunidades tradicionais e com os movimentos socias, assim como é essencial incentivar a leitura de autores indígenas, africanos e descendentes, ao mesmo tempo em que é imprescindível propor a análise de fontes históricas que não necessariamente se encontrem entremeadas pela perspectiva dos colonizadores[xiv]. Nada mais urgente em um país que escolheu dar a um protofascista a presidência.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o Giro Decolonial. In: Revista Brasileira de Ciência Política, nº11. Brasília, maio – agosto de 2013, pp. 89-117.

BARONNET, Bruno. Autonomías y educación em Chiapas: Prácticas políticas y pedagógicas en los pueblos zapatistas. In: WALSH, C. (Org.). Pedagogias decoloniais: práticas insurgentes de resistir, (re)existir e (re)viver. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013.

DUSSEL, Enrique. 1492: O encobrimento do outro, a origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.

LANDER, Edgardo (Org.) A colonialidades do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

MALDONADO-TORRES, Nelson. Transdisciplinaridade e decolonialidade. In: Revista Sociedade e Estado, V 31, N. 1, Janeiro/Abril, 2016.

RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.

SANT’ANNA, Jonathas Vilas Boas de.; SUANNO, João Henrique. Tessituras em redes contra hegemônicas: práticas interculturais e transdisciplinares no interior de Goiás. In: Anais do IX Seminário Internacional Redes Educativas e Tecnologias. Rio de Janeiro, de 05 a 08 de junho de 2017.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

WALSH, Catherine (Org.). Pedagogias decoloniais: práticas insurgentes de resistir, (re)existir e (re)viver. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013.

 

 

 


NOTAS

[i] Docente da Universidad Andina Simón Bolívar, situada no Equador.

[ii] Sobre a formação do grupo modernidade/decolonialidade, leia BALLESTRIN (2013).

[iii] Os intelectuais do grupo modernidade/colonialidade são, além de Catherine Walsh: Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Santiago Castro-Gómez, Nelson Maldonado-Torres, Ramón Grosfóguel, Edgardo Lander, Arthuro Escobar, Zulma Palermo, Fernando Coronil, Boaventura de Souza Santos, Immanuel Wallerstein (BALLESTRIN, 2013).

[iv] Para compreender de forma mais aprofundada os conceitos de colonialidade do poder, do saber e do ser, consulte as coletâneas SANTOS e MENESES (2010) e LANDER (2005).

[v] Luciana Ballestrin (2013) elenca alguns dos limites dos estudos decoloniais latino-ameticanos.

[vi] Sobre as escolas iniciadas pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional, leia BARONNET (2013).

[vii] Enrique Dussel (1993) entende que Cristovão Colombo teria sido o primeiro homem moderno, pois, ao ser o primeiro europeu invasor do território que se convencionou chamar de latino-americano, inaugurou a ideia de Europa Ocidental como centro da história e do mundo.

[viii] Para uma análise mais detalhada da obra de Guamán Poma de Ayala, leia WALSH (2013); sobre a Revolução Haitiana, consulte MALDONADO-TORRES (2016).

[ix] Luiz Rufino (2019) ressignifica o significado de pedagogia a partir do saber em encruzilhadas. Para o autor, ‘(…) a noção de pedagogia aqui proposta se vincula diretamente à emergência de novos seres/saberes, esses paridos pela dinâmica encruzada e conflituosa das travessias atlânticas. A pedagogia como a reinvidico compreende-se como um complexo de experiências, práticas, invenções e movimentos que enredam presenças e conhecimentos múltiplos e se debruça sobre a problemática humana e suas formas de interação com o meio. É nessa perspectiva que a educação, fe nômeno humano implicado entre vida, arte e conhecimento, torna-se uma problemática pedagógica’ (p. 74)

[x] Nilma Lino Gomes (2017) demonstra como os movimentos negros brasileiros têm atuado como agentes educadores da sociedade, propiciando a construção de uma pedagogia da diversidade.

[xi] Para saber um pouco mais sobre a Escola Pluricultural Odé Kayodê, que está atrelada ao Espaço Cultural Vila Esperança, consulte SANT’ANA e SUANO (2017).

[xii] Para compreender melhor a correlação entre a educação popular latino-americana e as propostas do grupo modernidade/colonialidade, sugiro a leitura de MOTA NETO (2016).

[xiii] Associada à Lei 10639/2003, temos também a Lei 11645/2008, tão importante quanto à primeira e que institui a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura dos indígenas nas escolas.

[xiv] Em minha tese de doutorado, intitulada ‘A cultura material como fonte para o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileiro: por uma pedagogia decolonial’ (2018), proponho o uso da cultura material como fonte para a construção de um ensino de História compromissado com as propostas da pedagogia decolonial.

 

 

 

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