CLEVES, Félix Raúl Martínez. Pensar la historia para no volvernos zumbis. Medellín: Lá Carreta Editores E.U, 2018.

Félix Raúl Martínez, historiador da Universidad Nacional de Colombia, tem investigado o pós-humanismo e as formas de produção de conhecimento no mundo contemporâneo. No seu livro de 2018 publicado por Lá Carreta Editores, “Pensar la historia para no volvernos zumbis”, Martínez reflete sobre as relações entre historiografia, ensino de história e experiência.

Um dos méritos do trabalho é abordar, através da literatura, arte, televisão e outros produtos culturais, diferentes aberturas para o passado e através delas a representação da história e da historiografia.  É importante pontuar que a obra não se resume a um rico repertório voltado apenas à desconstrução da historiografia moderna. O texto vai além e apresenta um conjunto de propostas fundamentadas na experiência para o ensino e escrita da história. Essa resenha não procura esgotar todos os elementos do livro, mas seguir três temas que o autor considera elementares para o historiador, a saber, a representação historiográfica, as formas de acesso ao passado e o ensino de história.

A partir da análise de três quadros de René Magritte, procura demonstrar como na representação da história também ocorre um jogo entre ilusão, engano, certeza e paixão. A ilusão surge através da imagem de totalidade, um panorama geral, construído de fragmentos. Esse procedimento permite criar sentidos totalizantes através do efeito ilusório de realidade como contexto total e coerente. Logo, engana-se aquele que acredita que uma forma pura e fidedigna de narrativa seja possível, a mesma é uma projeção e reconstrução do passado, um simulacro e não o passado em si.

Entende-se que parte da concepção do engano encontra-se na certeza. Ela obscurece a interpretação e clausura outras possibilidades da narrativa. Martínez explica que é preciso dar espaço a dúvida e a outras interpretações, para isso destaca o caráter remediador da ironia. O convite de Martínez para múltiplas interpretações do leitor através da ironia tem o importante papel de iluminar a diversidade de existências possíveis de uma obra ou evento histórico. Para ele uma leitura criativa acompanhada de uma boa dose de ironia possibilita diversificar os sentidos e ter uma relação irônica com a ilusão assentada na certeza.

O autor relaciona a figura de Pigmaleão ao historiador. Assim como o escultor mitológico apaixonou-se por sua obra e desejou que tomasse vida, também podemos nos apaixonar por nossos efeitos de real e desejar que sejam fiéis a um passado único, que é apresentado como um morto-vivo ao mundo. É preciso um pedido de participação, romper com status contemplativo de Pigmaleão e se aproximar de interpretações alheias. Portanto, assim como não se pode fumar no cachimbo de “Ceci n’est pas une pipe”, Martínez defende a ideia de que a imagem é apenas uma representação da realidade, desse modo, historiografia é representação de passados possíveis, e não o próprio passado reapresentado em uma inteireza e coerência que nenhuma realidade humana possui.

É importante deixar claro que o autor não faz uso de um reducionismo ao definir a história como narrativa e representação. Para melhor explorar o caráter narrativo da historiografia, utiliza a obra “Respiração Artificial” de Ricardo Piglia, escrita e publicada durante a ditadura argentina. Através da história de um jovem que troca cartas com o tio, Piglia expõe a violência e os horrores do autoritarismo de forma disfarçada. A troca de correspondências na obra representaria uma utopia anacrônica. Como Piglia explica, as cartas são enviadas não só espacialmente como temporalmente, trata-se de anular o presente, pois através delas o futuro é o único lugar de diálogo. Ao recebê-las ou enviá-las se fala com um correspondente que não está realmente lá. Segundo Martínez, a obra de Piglia representa um jogo entre o “topos temporal y espacial planteado en la utopía.” (MARTÍNEZ, 2018, p.48).

Dessa forma, demonstra-se que o significado atribuído ao passado parte de uma proposta de restauração da experiência através do sentido.  Assim como as cartas de Piglia, busca-se algo que não está mais lá, tenta-se restaurar algo que não se apresenta, tenta-se manter uma respiração artificial de algo que não respira mais. Da mesma forma é construída a narrativa histórica, como uma matrioska russa, “en los textos existen otros textos, en las cartas otras cartas, en las interpretaciones otras inter-pretaciones; el pasado le habla al porvenir, mientras el presente busca respuestas en el pasado.” (MARTÍNEZ, 2018, p.49).

Ao desconstruir aspectos da escrita historiográfica o autor busca demonstrar – para além do que foi apresentado até agora – que uma narrativa voltada ao encadeamento dos acontecimentos pode obscurecer o entendimento das singularidades, é criada uma ilusão de sentidos. Defende que uma teoria global é possível, mas uma coesão artificial criada por teorias gerais enevoa a pluralidade das experiências humanas.  Uma história global dotada de sentidos é feita através da inclusão de histórias menores, o que expande as possibilidades de aberturas ao passado.

Mas afinal o que significa abrir a história para Martínez? Através da ideia heideggeriana de abertura, deseja mostrar a possibilidade de compreensão da história por diversas formas de acesso ao tempo. Sinteticamente abrir a história envolve diversificar o pensamento e consequentemente ampliar as vias de acesso para reconectar o humano ao mundo. As formas de aberturas do passado vão além da documentação, perpassam elementos culturais desde a literatura, oralidade, música, artes e outras mídias.

A título de exemplo faz referência a Clio, musa que utiliza da história para entreter os humanos, para que assim possam viver com suas dores. Neste caso o recurso da linguagem é utilizado para dar conta da dor humana. Entende-se geralmente que a história em si é uma metáfora, isso porque não existe uma máquina do tempo para nos mostrar com exatidão o que ocorreu. A metáfora, desse modo, é um dos veículos de acesso ao passado. Práticas colocados por Martínez como dança, música e outras ações cotidianas também são aberturas ao passado e formas de resistência cultural à história universal. Para ele, “Esas mismas [formas] que omitimos en nuestras clases, pero con las que educamos en casa a nuestros hijos” (MARTÍNEZ, 2018, p76).

Martinez utiliza do romance do escritor Manuel Zapata Olivella, de 1967, “Chambacú, corral de negros: novela”, e de sua metáfora de uma Loba Branca para expor os limites de um discurso histórico culturalmente homogêneo:

“La obra de Zapata Olivella, es una inmensa invitación a abrir la historia e ir más allá de los conocimientos de la loba blanca, que para este caso no es otra cosa que la disciplina histórica. Porque probablemente solo escuchando esas voces de calles y veredas, seremos capaces de dialogar y gestar eso que llamamos interculturalidad.” (MARTÍNEZ, 2018, p79).

O exemplo demonstra uma responsabilidade para com as gerações futuras no protagonismo de suas próprias realidades, para que seja possível tanto interpretá-las quanto criticá-las. Dessa maneira, novas aberturas ao passado podem possibilitar a busca de justiça em meio a espaços colonizados. Trata-se de soltar um pouco a historiografia das amarras de um pensamento filosófico universal e pensar na diferença, nos detalhes e nos elementos interculturais.

Em outra passagem do livro Martínez cita “O Homem Duplicado” de Saramago e critica o historiador que não se permite inovar, o historiador que não desata as amarras da tradição. Durante a escrita é desejado que a história tenha utilidade e sirva aos outros, mas, para isso, muitas vezes acabamos por silenciar o diferente. Assim, é preciso “un reconocimiento de nuestra propia diferencia como elemento constitutivo de la identidad del historiador, de nuestra humanidad en demasía, y del desprecio para con nosotros mismos” (MARTÍNEZ, 2018, p.27).

O livro não postula o fim da história acadêmica. Após percorrer diferentes lugares e níveis acadêmicos o que o autor sugere é que se pare de ensinar a história como repetição. Defende a perspectiva de que a repetição da História ajuda a reproduzir tendências sociais de dominação e subordinação. Uma saída apresentada envolve tratar a sala de aula como uma comunidade viva e buscar a produção de presença.

No capítulo “Enseñar historia ¡NO! Hacer la historia”, demonstra que é fundamental aprender a aprender, aprender a pensar. É importante construir o pensamento histórico e não reproduzir a história através da repetição. Trata-se de uma preocupação menor com uma história desenvolvida a partir de teorias universais carregadas de continuidades artificiais e ilusórias. O foco deve ser direcionado às histórias menores, com sentidos que sirvam a vida, que produzam presença em sala de aula e que dêem espaço ao desenvolvimento do pensamento crítico. Para isso é preciso é explorar diferentes vertentes da historiografia e formas de narração, tornar a paixão aliada da história e indagar qual formato mais envolve e desperta o interesse.

Martínez dedica um capítulo do livro para aproximar as histórias dos super-heróis com a história contemporânea, demonstra que a mesma é uma abertura ao passado, uma possibilidade de aproximação dentre muitas outras. Para o autor a disciplina institucionalizada se afastou das camadas populares, sendo os heróis um pequeno exemplo da possibilidade de conexão com as novas gerações.  No ensino de história é preciso cativar o público para despertar o interesse, nas palavras do autor: “Y todavía así, hablamos de la importancia de la historia, pero sin ningún enamoramiento por ella, sin pasión que permita seducir a nuestros escuchas” (MARTÍNEZ, 2018, p.66). Percebe-se que não é preciso mirar longe para encontrar elementos que dialoguem de forma atrativa e apaixonada.

Diante da perspectiva de que a historiografia vem perdendo terreno e de que historiadores têm se afastado da construção da cultura histórica, propõe-se que para a transformação da aprendizagem e formação dos historiadores é elementar uma reformulação do currículo e um trabalho com a atitude do docente em contraparte a ação do estudante. Com uma aliança formada entre disciplinas e universos educativos é possível o desenvolvimento do ensino de história dentro e fora das salas de aula.

Para além dos problemas atuais de tutela do espaço da universidade por instituições e órgãos como o Ministério da Educação, Martínez cita Chris Lorenz, que tem demonstrado que para além da questão político institucional a academia tem apresentado “el aumento en los índices de producción no es proporcional con la innovación y diversidad de un sistema universitario de investigación (Lorenz, 2015; Lorenz & Lorenz, 2014)(p.53). A aliança entre a história investigada e a história ensinada é uma alternativa para a dicotomia exposta. Explica que sem historiadores na área pública a alternativa que surge no horizonte é uma constante banalização da história como produto de debate ideológico.

A proposta do livro não se resume a uma mera instrumentação dos estudantes e professores com dados e entretenimento, mas o trabalho de uma compreensão do passado que respeite cada um e abra o diálogo. Ir além da certeza ilusória e buscar rotas de abertura para pensar historicamente. Mas qual história ensinar, uma singular e universal ou uma fragmentada pós-modernista, coloca a pergunta. Martínez deixa claro que não deseja restringir o ensino de história a um formato direcionado, o que propõe é ampliar as oportunidades a partir da experiência dos docentes. Isso é fundamental para o futuro da disciplina e a consequente participação da historiografia na formação da cultura histórica.

Pensar la historia para no volvernos zumbis é uma obra que vai além do pensamento pós-estruturalista e apresenta saídas concretas. O autor cumpre com sua proposta ao abrir os horizontes da escrita historiográfica e do ensino através de um rico repertório. Félix Raúl Martínez escreve com clareza e permite a ordem da leitura a gosto do leitor, o que facilita a inclusão do livro no trabalho dentro e fora das salas de aula. Em meio a um conservadorismo crescente, deixo minha indicação e convite à leitura.

 

 

 


Créditos na imagem: René Magritte. Mundo Invisível. 1954.

 

 

 

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