O Brasil conheceu um período colonial que, formalmente, se estendeu do início do século XVI até sua independência, na primeira metade do século XIX. Nesse período, incontáveis eventos contribuíram direta ou indiretamente para a formação do país como nação politicamente independente, autonomia que contribuiria, paulatinamente, para uma conformação cultural própria. Nesse contexto, não faltaram discussões sobre nossa pretensa identidade nacional, debate que tomou conta de praticamente todas as esferas da sociedade: da religião à economia, da cultura à política, da língua à culinária… nada deixou de passar pelo crivo da polêmica identitária que, ainda no período colonial, tomou conta de parte da intelectualidade brasileira.
A questão estende-se para além do século XIX, época marcada por vários acontecimentos políticos que, de certa forma, acabaram influenciando outras esferas da atividade humana, como a própria cultura, conferindo à época uma característica singular: um profundo e inesperado sentido de transformação, o que faria desse período de nossa história uma quadra rica em contundentes mudanças sociais, políticas e econômicas.
Evidentemente, a cultura literária que aqui se produzia não podia ficar alheia a essa discussão, apresentando-se, a um só tempo, como índice de “brasilidade” e fenômeno propulsor de controvérsias acerca do que se entendia ou se queria entender pelo qualificativo “brasileiro”.
Foi Machado de Assis (1986), nosso maior literato, quem inaugurou – em fins do século XIX – uma discussão mais lúcida acerca de nossa identidade cultural, por meio da literatura, quando reconhecia na produção estética de sua época – a despeito do exagero da cor local e do nativismo – um “instinto de nacionalidade” que podia ser interpretado como “sintoma de vitalidade e abono de futuro”, dando por fim “fisionomia própria ao pensamento nacional” (p. 801).
A discussão fez escola, e já nas primeiras décadas do século XX o “problema” da identidade cultural brasileira era discutido em termos de emancipação literária por José Veríssimo (1969) que, em sua célebre História da Literatura Brasileira, de 1916, inaugurava uma reflexão sustentada pela conjunção entre unidade e autonomia: “a literatura que se escreve no Brasil já é a expressão de um pensamento e sentimento que se não confundem mais com o português, e em forma que, apesar da comunidade da língua, não é mais inteiramente portuguesa. É isto absolutamente certo desde o romantismo, que foi a nossa emancipação literária, seguindo-se naturalmente à nossa independência política” (p. 2).
No excerto transcrito, percebe-se claramente a preocupação do autor em mobilizar não apenas conceitos de extração política, mas também de natureza estética, a fim de conformar uma espécie de teoria da emancipação literária brasileira, a marcar originalmente nossa identidade nacional. Apesar da reconhecida autonomia de uma expressão literária autenticamente brasileira, Veríssimo já assinalava – a exemplo de Machado de Assis, quase meio século antes – uma incômoda “tendência localista”, a permear a produção estética nacional (VERÍSSIMO, 1907), fato que teria gerado uma não menos incômoda ausência de “comunicabilidade” entre nossos escritores, criando-se assim uma literatura de castas, excludente e provinciana (VERÍSSIMO, 1976).
Num diapasão mais moderado, o eminente crítico paraense reconhecia, contudo, ser a literatura regional – quando liberta de “preconceitos bairristas”, desfeita de “arrebiques e posturas literárias” e buscando ser “superiormente espontânea e sincera” – expressão correta de nossa independência estética e cultural (VERÍSSIMO, 1936).
A discussão renderia frutos diversos até chegar aos dias atuais. Mas, como já salientou Roberto Ventura (1991), o projeto histórico de construção da sociedade nacional recebe impulso considerável exatamente nessa passagem do século XIX para o XX, instituindo um debate que envolveu outros intelectuais do período, como Araripe Júnior e Sílvio Romero, todos preocupados com a definição e caracterização dos elementos formadores da identidade nacional.
Presentemente, a discussão acerca de nossa nacionalidade literária – que já teve entre suas lides figuras exponenciais, como um Sérgio Buarque de Holanda ou um Gilberto Freire – surge representada e intermediada por vários críticos, como Antônio Cândido, que – expandindo os limites estreitos pelos quais se norteavam os debates acerca do fato literário – propôs a consideração da literatura como um complexo sistema de relações sociais e culturais que não prescinde nem do trinômio autor-obra-público, nem da ideia da necessidade de se fazer literatura a partir de uma organicidade social e de uma sistematização estética.
Evidentemente, as diretrizes propostas por Antônio Cândido não se fizeram sem uma consciência cada vez mais nítida da identidade cultural brasileira, a qual só se realizaria plenamente a partir da dialética que operava a polaridade dependência/emancipação, a fim de se chegar à síntese da autonomia estética, processo que demoraria pelo menos um século, já que vai de 1822, data de nossa independência política, a 1922, data da Semana de Arte Moderna.
A preocupação de Antônio Cândido não é exatamente o problema da autonomia literária, mas da literatura como fenômeno de civilização, sempre apreendido sob o ponto de vista histórico. Contudo, se neste aspecto suas opiniões coincidem com as de José Veríssimo (que chamava de civilização o que Antônio Cândido, num sentido gregário, chama de sociedade), há divergência na consideração dos elementos fundadores de nossa identidade literária, a qual teria sido inaugurada pelos autores barrocos do século XVII, segundo Veríssimo, e pelos autores árcades, do século XVIII, segundo Cândido (1981).
Construir uma literatura autenticamente brasileira, como parte de um programa histórico de construção da própria identidade nacional, numa feliz conjunção entre literatura e história, teria sido, portanto, um dos propósitos de nossos primeiros literatos. Semelhante propósito fortaleceria profundamente certa “consciência” nacional, fazendo da literatura um dos primeiros e mais eficazes suportes culturais da nossa identidade: “as letras e ideias no Brasil colonial se ordenam […] com certa coerência, quando encaradas segundo as grandes diretrizes que as regeram. Em ambas coexistiram a pura pesquisa intelectual e artística, e uma preocupação crescente pela concepção ilustrada da inteligência a partir da segunda metade do século XVIII permitiu a precipitação rápida da consciência nacional durante a fase joanina, fornecendo bases para o desenvolvimento mental da nação independente” (CÂNDIDO, 1985, p. 107).
Como vínhamos sugerindo desde o princípio, a ideia de que a Literatura Brasileira pode ser entendida como um conjunto de traços culturais que, atuando de modo funcional e interligado, formam um complexo capaz de dar inegável consistência à nacionalidade brasileira, leva-nos a acreditar que, mais do que qualquer fato histórico isolado, ela concorre para a consolidação de determinada “consciência” nacional, atuando, ao mesmo tempo, como espelho de uma identidade em construção e fundamento simbólico dessa mesma identidade.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. “Notícia da atual Literatura Brasileira. Instinto de nacionalidade”. Obras completas. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, Vol. III, 1986.
CÂNDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira (Momentos decisivos). Belo Horizonte, Itatiaia, 2 vols., 1981.
_____. Literatura e sociedade. Estudos sobre teoria e história literária. São Paulo, Nacional, 1985.
VENTURA, Roberto. Estilo tropical. História cultural e polêmicas literárias no Brasil. 1870-1914. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1969.
_____. Que é literatura? e outros escriptos. Rio de Janeiro, Garnier, 1907.
_____. Estudos de Literatura Brasileira (Segunda série). Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976.
_____. Letras e literatos. Estudinhos críticos da nossa literatura do dia. 1912-1914. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936.
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