Ainda estávamos aqui quando parecia que não estávamos mais. Ainda estávamos aqui quando o som do mar ressoou diferente, quando as festas cessaram, quando foi interrompido o laço que atava a felicidade comum. Ainda estávamos aqui quando o país entrou no sono e a vigília tomou conta das sombras. Ainda estávamos aqui quando nossos pais, mães, irmãos e amigos sumiram dentro de paredes frias e portões de ferro. Ainda estávamos aqui quando as cartas se tornaram secretas e o medo ocupou cada cômodo da casa.
Ainda estávamos aqui quando a alegria foi substituída pelo receio e o vazio se tornou mais presente que a presença. Quando a falta se dilatou numa substância tangível. Quando foi preciso ressurgir com a vida mesmo que nela não houvesse mais quem sempre esteve. Quando a família parecia sustentar o que era insustentável, quando o peso ganhou uma medida diferente da leveza. Quando as perguntas não tinham respostas, quando foi preciso estabelecer momentos apropriados para o inapropriado. Quando foi preciso proteger crianças daquilo que inevitavelmente as alcançaria. Ainda estávamos aqui quando, diante do sumiço, do desaparecimento, do aparelhamento e da negação, as imagens de um passado recente se misturavam às imagens de um presente entontecido, torpe, invisível.
E continuamos aqui, vivendo sob pedras pesadas, escrevendo sobre a história do que foi, do que era, do que tem sido. Continuamos aqui nos perguntando onde colocar a dor que foi legada, o passado que não passa, o presente que se confunde, um futuro sempre incerto e delicado. Continuamos, alguns, sem respostas, sem corpo, sem festa, sem descanso, mas debulhando o grão de onde brotará um sentido ou qualquer pedaço de paz. Continuaremos aqui decifrando o que ainda escorre entre as mãos de um estado deformado – tantas vezes, tantas vezes –, perdido na própria estrada.
Ainda estamos aqui, rindo contra o mal, cabeças erguidas, pés juntos, combatendo o esquecimento forçado, o silêncio produzido, a crueldade impune, o direito surrupiado. Ainda estamos aqui porque é preciso estar, continuar, sofrer, recordar. É preciso contar o que foi, como foi, como não deveria ter sido. É preciso estar para que o presente tenha sentido, o futuro não escape, o passado não se prenda na teia de aranhas fardadas. Ainda estamos aqui porque, como num filme, somos protagonistas de nossas vidas, temos o direito a escrever a história em que vivemos, pela necessidade de dizer a quem queira ouvir: ele viveu, nós o conhecemos, foi nosso pai, nosso marido, nosso amigo, ele foi alguém que não podia não fazer nada, alguém que agiu e sofreu, sofreu como sofreram outros, muitos, centenas e milhares, alguém que viu o terror de perto, sentiu seu cheiro, olhos nos seus olhos, sentiu sede, mas não recuou.
Créditos na imagem de capa: Arquivo pessoal da família Rubens Paiva
Marcus Vinicius Santana Lima
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História da Historiografia
História da Historiografia: International
Journal of Theory and History of Historiography
ISSN: 1983-9928
Qualis Periódiocos:
A1 História / A2 Filosofia
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