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Ensaios e opiniões

Quatro anos do Golpe de Estado de 2016

Há quatro anos, entre os meses de abril e maio, mais precisamente nos dias 17 e 12, respectivamente, o país sofreu, uma vez mais, um Golpe de Estado. Algo que já se tornara tradição em nossa história. Neste sentido, este pequeno ensaio tem por objetivo fazer uma breve abordagem, para que não se torne demasiada cansativa às(aos) leitoras(es), sobre: as manifestações de junho de 2013, bem como seus reflexos; o próprio golpe; e o pós-golpe.

As manifestações de junho de 2013, como já é sabido, começaram tendo como pauta central a redução das tarifas de ônibus e foram convocadas pelo Movimento Passe Livre (MPL)[1]. Com a revolução tecnológica, sobretudo, pelo desenvolvimento da web 2.0, que por sua vez proporcionara uma mudança na relação dialética de interação entre usuária(o) e internet, fazendo com que o primeiro seja mais ativo e ajudando na construção de blogs e sítios, houve uma rápida disseminação das manifestações por distintas cidades brasileiras. Esta disseminação pode ser vista como uma consequência direta das articulações via internet, tendo em vista que a maioria das manifestações eram divulgadas via mídias sociais.

Esses protestos que emergem no mês de junho, de acordo com André Singer (2013), podem ser divididos em três grandes momentos, a saber, a ebulição, a reação ao uso desmedido da força policial e a perda do foco inicial. Assim sendo, no início dos protestos, uma pequena fração da classe média, entre os dias 6 e 13 de junho, sai às ruas tendo como objetivo único, como já dito anteriormente, a redução das tarifas de ônibus. Neste momento, ocorre uma tentativa de criminalização do movimento pela mídia tradicional e com ressonância nas mídias sociais – Reinaldo Azevedo, por exemplo, publicou uma série de tuítes descrevendo as(os) manifestantes como terroristas, vândalos, facistoides[2]. A construção da opinião pública da noção de atos nocivos à sociedade civil vai permanecer até o início da segunda etapa. Aqui, diversos vídeos foram publicados nas mídias denunciando a truculência policial contra as(os) manifestantes, o que acabou por atrair a atenção e a simpatia de outros públicos.

A segunda etapa, portanto, marca a entrada de novos sujeitos e, junto destes, ocorre uma profusão de pautas. É a partir de agora que a mídia tradicional passa a construir uma nova representação sobre o movimento: se antes este era nocivo, agora é visto como algo democrático e pacífico. Sobre isto, o próprio Azevedo publicou em seu Twitter que “apesar da cobertura favorável às manifestações, Globo vira alvo de protestos e é chamada de ‘fascista’”[3]. Ainda sob o impulso desta segunda etapa, inicia-se a terceira, porém com uma divisão dentro do próprio movimento e com pautas federalizadas. O início da terceira etapa ocorre, mais precisamente, no dia 20. Em pesquisa realizada pelo IBOPE[4] a respeito das(os) manifestantes presentes neste dia é importante, pois corrobora com o argumento de que é neste momento que ocorre a federalização das pautas e a mudança no perfil do movimento. Entre as razões que motivavam aquelas(es) que estavam nas ruas, estavam transporte público, ambiente político – sendo o principal motivo deste campo o combate à corrupção, saúde, educação e combate à PEC 37. Já o perfil era dividido igualmente entre homens e mulheres, sendo a maioria jovens – entre 14 e 24 anos – com ensino superior iniciado e/ou completo e com renda mensal entre cinco e dez – ou mais – salários mínimos.

Jesse Souza (2016) argumenta que nesse momento ocorre uma oposição entre uma “política viciada”, corrupta e burocratizada; e uma “nova política”, espontânea e com maior capilaridade social em virtude das novas mídias. Porém, segue o autor, esta nova política nada tinha de novo, era “uma máscara da velha e surrada rejeição conservadora e antidemocrática à política” (SOUZA, 2016, p. 99-100). A nova política tinha um alvo e este era o governo Dilma Rousseff e seu partido (PT). Desta forma, percebe-se que se inicia uma criminalização dos partidos políticos. Anos mais tarde, nos protestos de 2014 e 2015, os objetivos canalizados buscariam nas pautas fragmentadas das manifestações de 2013 o “significante flutuante poderoso – a corrupção” (PINTO, 2017, p. 150).

Com o desgaste promovido pelas manifestações de 2013 para com o governo Dilma Rousseff (queda de popularidade e aumento do índice de rejeição); a tendência golpista do PSDB ao protocolar, dias após as eleições, um pedido de cassação da chapa Dilma-Temer; a intensificação dos protestos pró-impeachment, sobretudo a partir de março de 2015, com participações importantes do Movimento Brasil Libre (MBL), Revoltados Online, Vem Pra Rua e Nas Ruas; além do patrocínio da FIESP-CIESP sob a liderança de Paulo Skaf, criou-se a opinião pública de um governo desgastado e corrupto e, portanto, pronto para ser impedido de terminar seu segundo mandato. A pá de cal, porém, veio apenas com o aceite de Eduardo Cunha, em 2 de dezembro de 2015, após o PT votar contra ele na Comissão de Ética, da abertura do processo de impeachment, que tinha sua justificativa centrada nas pedaladas fiscais.

Sobre isso, as professoras de direito Katya Kozicki e Vera Karam de Chueiri argumentam que “o Congresso fez uma interpretação abusiva dos fatos à luz dos dispositivos normativos” e, seguem afirmando que “[…] Tal compreensão nunca havia ocorrido no direito financeiro brasileiro até o acórdão do TCU em 7 de outubro de 2015” (KOZICKI; CHUEIRI, 2019, p. 163-164). Após longo processo, elegeu-se uma comissão especial para avaliar o pedido, cujo relator Jovair Arantes (PTB), também depois de muito debate, proferiu estar convicto de “indícios gravíssimos e sistemáticos atentados à Constituição Federal”, assumindo, em seu relatório, a existência de crime de responsabilidade, enfatizando as pedaladas fiscais. O relatório foi aprovado no dia 11 de abril de 2016, com 38 votos favoráveis e 27 contrários. Seis dias após o parecer favorável, isto é, 17 de abril, ocorreu a votação, vexatória, demonstrando o que há de pior na política brasileira, na Câmara, com o placar de 367 favoráveis e 137 contrários ao impeachment de Dilma Rousseff.

O mesmo rito deveria ser feito no Senado. Após longo debate, ao meu modo de ver, teatral, assim como havia ocorrido entre os deputados, apenas para aparentar certa legalidade, em 4 de maio de 2016, o relator Antônio Anastasia (PSDB), seguiu a mesma linha retórica de Arantes e apresentou parecer favorável ao impeachment. Entre idas e vindas, no dia 31 de agosto, senadoras(es) votaram para afastar Dilma da presidência.

Consumado o impeachment, houve um debate, com representações tanto nas mídias sociais – no Twitter pelo uso da #FoiGolpe ou #NãoFoiGolpe – quanto nos espaços não virtuais – talvez o mais emblemático tenha sido promovido por Jessé Souza e Bolivar Lamounier[5] – a respeito do uso da denominação golpe para se referir ao processo que ocorrera. Aquelas(es) que argumentaram não se tratar de golpe tinham como ideia central a falta de militares nas ruas. Porém, estas(es) não perceberam que, assim como qualquer outro conceito, o golpe não é algo estático, mas um conceito secular que se modifica ao longo do tempo em consonância com novos processos políticos e sociais. Apesar disto, há algo que não muda: é um golpe de Estado aquele efetuado por órgãos do próprio Estado. O que quero deixar patente é que em 2016 não ocorreu um golpe clássico, mas, ainda sim, um golpe de Estado, porque, como argumentei acima, baseado nas professoras Kozicki e Chueiri, houve uma interpretação abusiva, além de desvirtuamentos nos dispositivos constitucionais; e porque envolveu órgãos do Estado – Suprema Corte, membros do Legislativo, parte ativa do Judiciário e da Polícia Federal.

Com a deposição, o vice-presidente assumiu o cargo de chefe do executivo federal. Michel Temer passa a adotar a agenda neoliberal dos derrotados no segundo turno das eleições de 2014. De lá para cá, segundo pesquisa do IBGE[6], a qualidade de vida da população brasileira esteve em queda livre. Em 2015, o número de cidadãos em situação de pobreza era de 20,4 milhões, já em 2016, logo após o golpe, o número chegou a 53,1 milhões. Isto pode ser identificado como uma consequência direta do desemprego que em 2015 era 8,5% e em 2017 a porcentagem chegou a 12,7%. Além disso, os reajustes diuturnos nos preços de combustíveis e no gás de cozinha, que começaram a ser praticados pela nova política de preços de Petrobras, que por seu turno passou a obedecer à variação do preço do petróleo no mercado internacional e não mais aos custos da produção, fizeram com que a média do litro de gasolina chegasse a mais de R$ 4,00 em 2017 e o gás a mais de R$ 66,00 neste mesmo ano. Seguindo a mesma linha, também pode-se destacar a destruição das leis trabalhistas e a aprovação de uma PEC que congela os investimentos por 20 anos, cujos reflexos são sentidos na atualidade em meio a uma pandemia.

Por fim, com a criminalização do PT e a prisão de Lula, possibilitou-se a eleição de Jair Bolsonaro que vem aprofundando as reformas neoliberais iniciadas por Temer. Em suma, saímos de uma democracia insuficiente para um regime ainda pior, com fortes tons autoritários. Como afirmou Luis Felipe Miguel (2019, p. 186-187): “Estamos entrando no finalzinho do gradiente, no lusco-fusco, entre uma democracia que já não é e uma ditadura que ainda não pode ser”.

 

 

 


REFERÊNCIAS

KOZICKI, Katya; CHUEIRI, Vera Karam de. Impeachment: a arma nuclear constitucional. Lua Nova, São Paulo, 108: p. 157-176, 2019.

MIGUEL, Luis Felipe. O colapso da democracia no Brasil – da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Expressão Popular, 2019.

PINTO, Celi. A trajetória discursiva das manifestações de rua (2013-2015). Lua Nova, São Paulo, 100: 119-153, 2017.

SINGER, André. Brasil, Junho de 2013. Classes e ideologias cruzadas. Novos Estudos, nov. 2013.

SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe. Rio de Janeiro: LeYa, 2016.

 

 

 


NOTAS

[1] Em seu site, o MPL se autointitula como “um movimento social autônomo, apartidário, horizontal e independente, que luta por um transporte público de verdade, gratuito para o conjunto da população e fora da iniciativa privada. O MPL é um grupo de pessoas comuns que se juntam há quase uma década para discutir e lutar por outro projeto de transporte para a cidade. Estamos presentes em várias cidades do Brasil e lutamos pela democratização efetiva do acesso ao espaço urbano e seus serviços a partir da Tarifa Zero!.” Disponível em: www.mpl.org.br

[2] AZEVEDO, Reinaldo. Os terroristas que ameaçam a segurança dos paulistanos já estão na antessala do prefeito. [S.I.] 12 jun. 2013. @ReinaldoAzevedo. Disponível em:

<https://twitter.com/reinaldoazevedo/status/344817479102656514>;   AZEVEDO, Reinaldo. Acredite: tem DINHEIRO PÚBLICO por trás dos vândalos que querem “passe livre” nos ônibus!.  [S.I.]  12 jun.  2013.  @ReinaldoAzevedo.  Disponível  em:

<https://twitter.com/reinaldoazevedo/status/344815830321733632>;   AZEVEDO, Reinaldo.  Passe  Livre  —  milhões  de  trabalhadores  e  estudantes  são  refens da truculência de meia-dúzia de fascistoides. [S.I.] 11 jun. 2013. @ReinaldoAzevedo. Disponível em: <https://twitter.com/reinaldoazevedo/status/344471961524662274>.

[3] AZEVEDO, Reinaldo. Apesar de cobertura favorável às manifestações, Globo vira alvo de protestos e é chamada de “fascista”. [S.I.] 17 jun. 2013. @ReinaldoAzevedo.                                                   Disponível                         em:         < https://twitter.com/reinaldoazevedo/status/346811949268492288>.

[4] Disponível em: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/06/veja-integra-da- pesquisa-do-ibope-sobre-os-manifestantes.html>.

[5] Jesse Souza, passou a defender a tese de que ocorreu um golpe, publicando, no ano de 2016, um livro que se encontra nas referências. Bolivar Lamounier, era defender da ideia de que não havia ocorrido um golpe, mas sim um contragolpe <https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/04/1763264-contragolpe- democratico.shtml>.

[6] Disponível em: <https://www.pragmatismopolitico.com.br/2019/04/brasil-apos-o- golpe-de-2016.html>.

 

 

 


Créditos na imagem: Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

 

 

 

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