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Ensaios e opiniões

Reflexões na quarentena: como os tempos de crise nos revisitam?

 

1822 seria um ano marcante para aqueles viviam no Brasil. Já em janeiro, o conflito com as cortes de Lisboa expunha as feridas entre as duas partes do Atlântico. Diante do expresso comunicado para o retorno imediato de d. Pedro, na época príncipe regente e representante do rei no Brasil desobedece às ordens vindas de Lisboa e comunica a todos o célebre: “se é para bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico”. Um dos múltiplos significados do tal “dia do fico” residia na instauração, desde o retorno de d. João VI para Portugal, de um estado de incerteza e insegurança que pairava sobre os homens do então Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Entre praças e ruas, cafés e alcovas, perguntavam-se quais os possíveis rumos que se daria ao país naquele ano de 1822. As folhas volantes e os panfletos eram emissores importantes do clima político da época, pois ali estavam confrontos, defesas de ideias, provocações que, para nós, do tempo de agora, demonstram a polifonia do contexto e os vários caminhos abertos para o enfrentamento da crise que aflorava entre Brasil e Portugal.

Naquele contexto, a ideia cíclica da história, muitas vezes ligada à visão escatológica do juízo final da tradição católica, identificava no passado uma espécie de magistério da vida, em que os sujeitos deveriam assemelhar-se às ações dos seus antepassados. Assim, a maneira como os fatos eram narrados por aqueles indivíduos dizia muito sobre suas ações, uma vez que o passado era tido como algo contínuo que perpassava o presente e projetava um determinado futuro. Dessa maneira, no que diz respeito a essa ideia cíclica da história, o passado funcionava como uma lição pedagógica para o presente, através da “imitação” dos que já foram, sem gerar grandes transformações e impactos na realidade do que era vivenciado no tempo do agora. Tais práticas consubstanciavam a marcha progressista da modernidade, de modo a revelar o estado de insegurança e incerteza que abatia os homens daquela época, diante de um futuro em aberto. Qualquer futuro projeto ali, naquele momento, tinha apenas uma finalidade: o fim da crise.

Em 2019, na província de Wuhan, chegavam notícias da existência de um vírus novo, de fácil propagação, cujo ineditismo esvaziava a cidade e lotava os leitos hospitalares. Desde então, o planeta não girava na sintonia de antes, uma vez que esse vírus, o novo corona, espalharia a Covid-19 pelos quatro cantos da Terra, mudando hábitos até então corriqueiros. Abraços foram substituídos por máscaras, festas e bate-papos por inúmeras e intermináveis lives. Diante do contexto de pandemia, a Covid-19 chega ao Brasil de maneira desastrosa, sem um planejamento prévio por parte do governo federal e deflagrando uma espécie de “guerra” entre os poderes locais. Governadores, prefeitos e presidente rivalizando seus micro/macro poderes. Já não bastasse o medo trazido pelo novo vírus, a ingerência desses governantes acarretou em algum grau uma espécie de estado de insegurança, em um país que mais parece um carro desgovernado. Além disso, o presidente Jair Bolsonaro, como uma máquina de gerar crises, abriu fogo contra os demais poderes componentes da república, inflamando parte da população no aprofundamento do desgaste do Executivo com o Legislativo e Judiciário. Como se não bastasse, o presidente foi responsável pela demissão de dois ministros da Saúde que contrariavam suas convicções para o enfrentamento da pandemia, e, semanalmente faz aparições em público em manifestações duvidosas contra o Legislativo e Judiciário e em favor ao seu governo, nas quais o culto à sua figura é regra constante. Vemo-nos chafurdados em um poço de incertezas, em meio a uma pandemia mundial e um imbróglio político, onde esses dois elementos estão longe de uma solução, aumentam a sensação de crise.

Essa “sensação de crise”, invariavelmente, escapa a todo tipo de planejamento e controle racional sobre qualquer estado das coisas colocadas. Assim, como o ano 1822 escapava aos desígnios de d. João VI em manter-se como rei de Portugal, ficava latente a sua preocupação quanto à permanência da dinastia bragantina no poder diante das deliberações das Cortes Constitucionais de Lisboa. A subversão do que estava até então posto acarretava a combinação de insegurança e medo na população em geral.

A expressão “crise”, para o historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006), indicava uma nova consciência da experiência vivida até ali. Em sua concepção, “crítica” estava ligada à crise, ou à consciência desta. Nesse sentido, 1822 seria o ápice da crítica anticolonial, acompanhado de uma consciência de crise que demandava uma decisão política para acabar com todo descompasso vivido por aqueles homens, em função do imbróglio entre Brasil e Portugal, vivenciado desde o desembarque da corte no Rio de Janeiro em 1808. Essa decisão política, contudo, vinha acompanhada pelo medo, que era instrumentalizado pelos grupos políticos que queriam o fim da crise com a contemplação de seus interesses. Não por acaso, vinha à tona naquele contexto a máxima de que o tempo da virada e da transformação estava localizado no presente.

Reinhart Koselleck refletia sobre o “tempo de crise”, a partir do advento da modernidade, na conjugação da relação entre passado/presente/futuro, fincado numa espécie de aceleração do tempo permeado pelas incertezas de um futuro em aberto. Não me admira que todos esses elementos estejam presentes na escrita do pensador alemão em seu contexto de escrita, já que a sua própria análise foi realizada em um dos momentos de maior crise vividos no século XX, no período do pós-guerra e desdobramento da Guerra Fria. A ênfase de sua reflexão está na experiência e se desdobra na noção de que um certo horizonte de expectativa, com uma certa perspectiva de futuro, oferece um novo espaço de experiência. Logo, o horizonte de expectativa “se realiza no hoje, é futuro presente”, que não poderia ser experimentado, apenas previsto. A partir desse ponto de vista, Koselleck questiona: “o que o futuro nos reserva?”. O que reside no seu questionamento, assim, é a percepção de um futuro incerto, ligado às ações no tempo presente que abrem precedentes para a “esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou curiosidade [que] fazem parte da expectativa”.[1] E é justamente daí que se descortina uma janela para o novo. Dito de outra forma, a experiência adquirida no passado (re) significada no presente possibilita uma projeção de futuro em que o presente é a experiência do agora e o futuro pode ser vislumbrado. Esse tipo de observação consiste em reconhecer a dimensão temporal da existência humana e nos ajuda a compreender como os tempos de crise podem ser (e são, de fato) enfrentados.

No caso dos homens que experimentaram e vivenciaram 1822 no mundo luso-brasileiro, eles dispunham de uma certa visão cosmopolita do mundo ocidental e partilhavam de um espírito ilustrado, imbuídos de uma consciência de crítica ao passado colonial, que proporcionavam condições para a construção de um futuro que rompesse com o Antigo sistema colonial. Assim, apropriavam-se, entre outras coisas, da revisão das origens do Império português no século da conquista para embasar as decisões políticas tomadas, de modo a colocar um ponto final na atmosfera de crise que desaguaria na Independência do Brasil. Criava-se, assim, uma expectativa de um futuro possível a ser construído no presente, no agora. Talvez, seja até possível pensar que esses sujeitos tivessem consciência de construção desse futuro por meio das suas próprias ações por conta das suas experiências compartilhadas. No caso, o dia do Fico, protagonizado pelo futuro imperador do Brasil, abria precedentes para uma das decisões políticas que visavam a dar cabo ao imbróglio político posto, que desaguaria meses depois na Independência do Brasil com Portugal. Portanto, o famoso grito do Ipiranga, se é que existiu mesmo, não romperia com a crise, mas criaria condições – através das práticas daqueles homens – para o encaminhamento do seu término.

As experimentações do tempo pelos indivíduos não são uniformes e tampouco estanques. Se em 1822, por exemplo, os panfletos tinham como uma de suas funções propagar ideias e posicionamentos, eles tinham uma limitação em relação a uma certa morosidade de sua circulação e alcance, próprios daquele contexto. É importante pontuar que, se falo em “certa morosidade”, faço-o com os olhos do presente, uma vez que ali se pode perceber uma nova forma de lidar com o tempo, marcada pela sua aceleração. O espaço de experiência do passado diminuía, enquanto o presente era alargado e o futuro estaria em aberto, porém condicionado às práticas realizadas no presente, cuja dinâmica abria as portas para uma nova forma de lidar com o tempo que marcou as gentes ao longo do século XIX e do início do século XX. Nesse sentido, o que vemos hoje, ao invés das tais folhas volantes e panfletos, é a proliferação de trocas de mensagens via internet, através de várias plataformas, que são recebidas e lidas quase imediatamente. A capacidade de circulação de ideias, informações, relatos e afins tem uma dimensão global quase instantânea, o que demostra também uma outra maneira dos homens de lidarem com o tempo, de forma mais acelerada ainda. Aqui, a relação entre passado, presente e futuro é ainda mais encurtada, como uma simbiose temporal em que essas três dimensões quase se confundem.

Dessa forma, como podemos dimensionar essa experimentação do sujeito com o seu tempo imerso em uma lógica de mundo pautada pela internet e guiada pela sanha do imediato? Bom, sinto-me incapaz de dar resposta(s) precisa(s) para esse questionamento, especialmente por estar no olho do furacão pandêmico virótico, em que afloraram questionamentos políticos, raciais e econômicos, numa atmosfera de diálogos truculentos, onde muitos caminhos estão em aberto com rumos bem difusos. Se não há respostas exatas ao questionamento colocado acima, podemos tentar fazer o exercício de refletir sobre a nossa condição atual dessa “sensação de crise”. Como em 1822,  vemos um futuro em aberto, disposto à construção por meio do enfrentamento de vários projetos na busca de superação deste estado de crise que nos envolve. Procura-se, acima do bem e do mal, do que é ético ou imoral, defender e propagar os interesses privados de um certo grupo que pretende permanecer no poder a todo custo. O medo também é bastante mobilizado nessa profusão de notícias falsas e verdadeiras, uma vez que a incerteza é um combustível essencial que alimenta a atual crise que vivemos no país.

Hoje, em 2020, no Brasil, acredito que poucos podem conjecturar um futuro, já que estamos experimentando uma ideia de futuro em “stand-by”, uma espécie de tempo em suspensão. Vivemos em meio a uma pandemia mundial sem ministro da saúde, experimentando uma crise governamental e institucional com fortes manifestações contra o funcionamento de nossas instituições, inclusive com alusões ao fechamento do congresso e do Supremo Tribunal Federal, com a subversão de conceitos sacralizados pelos ventos da Revolução francesa, como liberdade, igualdade e fraternidade, postos ao serviço de grupos que buscam supremacia de seus ideais excetuando os que pensam diferente, desprezando o significado do que construímos e entendemos por democracia.

Quando olho para 1822 como historiadora, contexto ao qual tenho dedicado minhas pesquisas, vejo que há naqueles sujeitos diferentes esforços para enfrentarem as necessidades colocadas na época. Agora, por motivos diferentes, mas igualmente visitados pelo “espírito da crise”, sinto o incômodo da incerteza, da insegurança e, especialmente, do medo do presente e dos desafios do futuro. O sentimento de impotência de lidar com o presente e essa ideia de futuro em “stand-by” paralisa, e criam um anteparo para os possíveis caminhos para colocar um fim a essa crise experimentada atualmente.

A exemplo de 1822, seguimos por novos horizontes, por uma perspectiva de que as coisas vão mudar, não sei se para melhor ou não. O meu pesar é não ter o olhar dos historiadores de daqui a 200 anos, apesar de não saber nem se haverá mundo…

 

 

 


REFERÊNCIAS

CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Bastos Pereira das; BASILE, Marcelo. Introdução. In: Guerra Literária: Panfletos da Independência (1820-1823). Belo Horizonte: UFMG, 2014.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

HARTOG, François. Tempo, História e Escrita da História: a Ordem do Tempo, Revista de História, n.148, 2003, p.9-34.

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto, 1999.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: PUCRio, 2006.

PADILLA, Guillermo Zermeño. História, experiência e modernidade na América ibérica, 1750-1850. Almanack braziliense, n.7, maio 2008.

PIMENTA, João Paulo. Tempos e Espaços das Independências. A inserção do Brasil no mundo ocidental (1780 – 1830). São Paulo: Intermeios, 2017.

 

 

 


NOTAS

* Este ensaio contou com a leitura generosa da Profa. Dra. Mariana de Moraes Silveira, meu mais fraterno agradecimento. Aproveito para confessar que muito das reflexões trocadas entre nós durante o isolamento social está presente aqui.

[1] KOSELLECK, Reinhart, Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contrapondo / Ed. PUC-Rio, 2006. p. 310.

 

 

 


Créditos na imagem: Fátima Marques:  O sentido da vida…o tempo, 2007. Acrílico e óleo sobre tela.

 

 

 

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