Nos últimos 15 anos as humanidades digitais vêm se consolidando com novos centros tecnológicos, laboratórios, grupos de pesquisa e periódicos de divulgação. Segundo a contagem do Centre for Digital Humanities do University College London, em 2011 havia 114 centros espalhados por mais de 24 países. Hoje, há de se assumir um crescimento exponencial do campo. Nos últimos anos o Brasil testemunhou um boom de laboratórios ou iniciativas do gênero, sediados em instituições como a Universidade Federal do Ceará, a Universidade Mackenzie, a Universidade Federal de Minas Gerais, a Universidade Federal de Santa Catarina, a Fundação Casa de Rui Barbosa, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a Universidade Federal de Goiás, o Instituto de Estudos Avançados/USP, a Associação das Humanidades Digitais e o Instituto Conex, através da Plataforma Humanidades. Mais recentemente, em 2018, a Universidade Federal da Bahia criou seu Laboratório de Humanidades Digitais que, junto ao LARHUD do IBICT é capitania no desenvolvimento de importantes ferramentas no campo. Em 2020 foi fundado o Centro de Humanidades Digitais IFCH-UNICAMP, contando com projetos que giram em torno da mineração de dados, estratégias de visualização de dados tais quais linhas do tempo interativas e dashboards, projetos de digitalização e produção de bases de dados conexas.
Mas o que exatamente significa pesquisar e produzir conhecimento através das humanidades digitais? O que exatamente fazem estes núcleos de pesquisa que surgiram nos últimos anos? A prática das humanidades digitais pode ser entendida no contexto diagnosticado por Urszula Pawlicka Deger como “virada laboratorial” (laboratory turn).[1] O laboratório científico deixou de ser definido por um espaço físico com equipamentos e passou a ser visto como um conceito prático de investigação e ensino na universidade. Com a crise de financiamento mundial nas humanidades em tempos de austeridade, universidades, museus, bibliotecas e arquivos buscaram espaços públicos de atuação, elegendo seus objetos como pontos de partida. Como produto dessas reflexões, o que antes era visto como uma simples sala de leitura, sala de digitalização ou biblioteca, passou a funcionar como um laboratório prático de investigação, que congrega filósofos, antropólogos, historiadores, curadores, matemáticos, cientistas sociais, programadores e engenheiros. Se porventura tais laboratórios passaram a adquirir equipamentos tecnológicos ou maior afirmação institucional, foi como consequência do conceito prático de laboratório, que pode ser estruturado com baixo orçamento.
Essa forma de estruturação laboratorial marca o paradoxo da ascensão das humanidades digitais: seu caráter plural e criativo e, em simultâneo, precário. Com efeito, esta é uma característica global do campo, mas que pode ser mais bem observada nas periferias. Como bem sugerido pelo historiador português Daniel Alves, talvez seja mais válido falar de uma “comunidade de práticas” para definir o campo das humanidades digitais no país: nas suas palavras, “o que nós temos na prática é um conjunto de investigadores, de centros, de estudantes, que incorporaram essas tecnologias no seu método de trabalho, dentro das humanidades, mas que não tem – pelo menos no mundo de fala portuguesa – uma verdadeira institucionalização”.[2]
Uma “história digital” no Brasil deriva deste contexto específico de precariedade e fragmentação, somando-se o inevitável problema da difusão ou publicização do conhecimento histórico. Em outras palavras, viabilizar práticas historiográficas de maior impacto na esfera pública por meio de ferramentas digitais. Um problema somou-se a outro, como bem expresso pela delimitação conceitual de uma “história pública digital”, conforme sugerido por Serge Noiret.[3] Assim, tanto em termos de publicações quanto, e principalmente, na proliferação de iniciativas online em formatos diversos, como websites, podcasts, vídeos e blogs, parece haver uma tendência a entender a história digital como algo relacionado à história pública. Além da inclinação para a acessibilidade do conhecimento, a especificidade de cada laboratório prático faz com que as investigações precisem responder às perguntas próprias de cada pesquisa ou instituição, mas que se interligam em um horizonte comum, sobre métodos e teorias que se traduzem em debates sobre representação, acessibilidade, modos de leitura, limites do conhecimento, quantidade versus qualidade, estética, direitos autorais e licenças de uso e construções dos acervos e o caráter internacional/global dos documentos históricos. São debates que marcaram a história da própria disciplina história com uma nova camada interpretativa, que incide tanto sobre documentos analógicos convertidos ao digital, quanto nativos do ambiente eletrônico. Para ambos os casos, impõem-se critérios diferentes para construção e análise dos dados eleitos como documentos históricos. Trata-se da produção de história calcada ainda calcada no interesse público, mas que se produz em uma rede mundial de computadores atravessada pela iniciativa privada. Como produto, observa-se a construção de recursos para análise e construção de acervos pela prática historiadora.
Em outubro de 2022, o Centro de Humanidades Digitais IFCH-Unicamp estreia no meio editorial com duas coletâneas importantes: Caminhos da história digital no Brasil (Milfontes, 2022), organizado por Thiago Nicodemo, Alesson Rota e Ian Marino, e Por uma história da COVID-19: iniciativas de memória da pandemia no Brasil (Milfontes, 2022), organizado por Marino e Nicodemo. Os dois livros cristalizam aspectos fundamentais das humanidades digitais e da história digital que vêm sendo debatidos no laboratório.
Caminhos da história digital no Brasil propõe um aprofundamento no grau de reflexividade na produção do conhecimento histórico, tensionando uma história digital autorreflexiva, especialmente com relação à historicidade do conhecimento histórico e com as mutações da natureza, impacto, classificação e preservação das fontes. Por uma história da COVID-19, no que lhe concerne, também caminha neste sentido, já que é a reflexividade acerca da transformação arquivística que está em questão. Aliás, vale ter em conta que os resultados esperados pelos projetos do Centro de Humanidades Digitais IFCH-Unicamp não são apenas ligados à implementação de ferramentas de busca ancoradas em base de dados. Dois dos principais projetos do Centro, o Coronarquivo e o Chrono.Data, ilustram essa preocupação.
A realização coletiva de bases de dados é entendida como parte de um trabalho formador de habilidades híbridas, mas fundamentais para o campo. Não se trata de habilidades técnicas do mundo digital, mas de características fundamentais do campo do historiador moderno (nos últimos 220 anos, desde a incorporação da disciplina nos currículos universitários) atualizadas aos novos tempos. Devemos, portanto, compreender melhor como classificar e organizar a informação, digital e instável, no mundo contemporâneo, tal como ensinado nas velhas fichas pautadas nas aulas de metodologia da história. O que mudou, então? A diferença fundamental se liga ao caráter de compartilhamento das informações e homogeneização de algumas práticas.
A chamada “ciência aberta” se impõe como um conceito fundamental aqui, na medida que prevê o compartilhamento de parâmetros de coleta e de materiais, ao reforçar o caráter coletivo da produção histórica, mas alterando a expectativa sobre o que deve ser encarado como produto. Não apenas ou não mais um texto, artigo ou tese, feita com base em pesquisa, mas uma pesquisa visível nas suas fundações, capaz de ser utilizada como ensejo para ampliações, aprimoramentos, complementos em outras pesquisas, formando uma constelação. A recomposição dos parâmetros de pesquisa e conhecimento, portanto, é um primeiro ponto que as humanidades digitais e a história digital devem se atentar – indo muito além da tecnicização de protocolos de pesquisa e da digitalização da divulgação científica. O surgimento de programas computacionais ou metadados com livre acesso para a comunidade surge apenas uma consequência das interrogações basilares acerca do conhecimento histórico e da ampliação da participação coletiva no desenvolvimento do saber.
Outro ponto remete ao paradoxo fundante dos campos. Todos usamos dispositivos digitais para ensinar, aprender e para pesquisar e isso contrasta com a precariedade de ferramentas para analisar e para criticar as fontes digitais. No fim das contas, todos nós usamos fontes digitais, mas tendemos a assumir equivocadamente que são cópias fiéis dos supostos originais. Uma agenda de trabalho compatível com as necessidades de pesquisadores e alunos, atualmente, deverá necessariamente envolver a crítica da fonte digital. Por um lado, isso nos projeta uma agenda interdisciplinar, já que os conhecimentos mobilizados para compreender a especificidade dos novos suportes advém do diálogo com os media studies, a antropologia, a arquivística, e a computação. Por outro lado, finca-se o compromisso do historiador no problema do documento histórico, da sua estabilidade/instabilidade, de dentro da história das formas que a disciplina ganhou ao longo dos tempos, incluindo a dimensão do trabalho, da sobrevivência, do treinamento para as demandas profissionais do presente e do futuro.
Somente atentando a estes breves tópicos de atenção, então, poderemos falar de uma história digital (e pública) brasileira, não exclusivamente nacional, mas ancorada e desenvolvida no esteio da Teoria da História e História da Historiografia. Ela será autorreflexiva – posto que se interroga pelos fundamentos do conhecimento histórico e justamente por isso – e aberta – à ressignificação da produção do conhecimento como uma ciência aberta e à transformação da profissão. Será um produto da expansão do ensino público pelo Brasil, de experiências como o Profhistória, Mestrado Profissional em História, irmanada das várias tentativas dos historiadores se comunicarem melhor, expandirem as fronteiras da sua disciplina e se posicionarem politicamente de forma progressista. Seguindo esta agenda, os projetos do Centro de Humanidades Digitais IFCH-Unicamp e os capítulos dos livros que estreiam a atuação editorial do Centro apresentam diversas propostas analíticas, servindo tanto de amostras quanto de indicações sobre os caminhos possíveis dos campos no país.
NOTAS
[1] (PAWLICKA-DEGER, U. The Laboratory Turn: Exploring Discourses, Landscapes, and Models of Humanities Labs. Digital Humanities Quarterly, v. 14, n. 3, 2020. Disponível em: http://digitalhumanities.org/dhq/vol/14/3/000466/000466.html. Acesso em: 15 jan. 2020).
[2] (ALVES, Daniel Ribeiro. As Digital Humanities como uma comunidade de práticas: entrevista com o professor Daniel Alves (IHC/NOVA FCSH). Entrevistado por AQUINO, Israel. Revista Aedos, v. 12, n. 22, p. 742, ago. 2020. ).
[3] (NOIRET, Serge. História Pública Digital. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 30, mai. 2015.)
Créditos na imagem: Reprodução: Capa do Livro Por uma história da COVID-19: iniciativas de memória da pandemia no Brasil (Milfontes, 2022), organizado por Marino e Nicodemo.
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