As construções simbólicas que sustentam as hierarquias raciais e culturais na história ocidental são frutos de um longo processo histórico e imagético que teve, na colonização das Américas e da África, um de seus momentos mais decisivos. A partir da dominação europeia, consolidaram-se visões de mundo centradas na branquitude como modelo de civilização, ao passo que povos indígenas e africanos foram sistematicamente classificados como “primitivos”, “selvagens” ou “atrasados”. Tal estrutura simbólica, embora aparentemente restrita ao passado, continua a influenciar percepções, políticas e práticas excludentes na contemporaneidade. Nesse contexto, o capítulo “Alegorias do Primitivo”, presente na obra Imagens da Branquitude de Lilia Moritz Schwarcz, oferece uma reflexão crítica e interdisciplinar sobre os modos pelos quais a arte, a cartografia e a produção cultural ocidental contribuíram para consolidar representações estereotipadas e desumanizantes de negros e indígenas.
Em “Alegorias do Primitivo”, capítulo presente na obra “Imagens da Branquitude”, de Lilia Moritz Schwarcz, a autora propõe uma leitura minuciosa das alegorias visuais e simbólicas que representaram o “outro” — o não europeu — como um ser inferior, perigoso ou exótico. A autora argumenta que essas alegorias não apenas refletiam as ansiedades e desejos dos colonizadores, mas também cumpriam uma função política: justificar a escravidão, o genocídio indígena e a imposição da cultura ocidental como universal e civilizada. A ideia de “primitivo”, segundo Schwarcz, foi sistematicamente construída como contraponto à modernidade europeia, reforçando a ideia de que certos corpos e culturas estariam mais próximos da natureza e, portanto, distantes da racionalidade e do progresso.
A obra destaca o papel fundamental das artes visuais nesse processo. Schwarcz analisa representações como a gravura de Américo Vespúcio diante de uma indígena nua e passiva; os registros de canibalismo nas obras de Théodore de Bry; e as pinturas de Albert Eckhout, que sexualizam e exotizam corpos indígenas e negros. Todas essas imagens contribuem para o imaginário da inferioridade racial, servindo como dispositivos coloniais de poder e dominação simbólica. A autora também chama atenção para o uso da cartografia como instrumento de imposição de uma visão eurocêntrica do mundo, na qual o continente europeu é o centro e as demais regiões são espacial e simbolicamente marginalizadas.
A pertinência da análise de Schwarcz se manifesta especialmente quando observamos as continuidades dessas alegorias nos dias atuais. As representações simbólicas do “primitivo” ainda perpassam a mídia, o cinema, os livros didáticos e até mesmo o discurso político. A romantização da cultura indígena e a exotização de corpos negros persistem em diversas esferas sociais, muitas vezes sob a aparência de valorização cultural, mas ainda vinculadas a estruturas de dominação e consumo. Além disso, o apagamento histórico e a marginalização de epistemologias não brancas seguem como desafios centrais nos debates sobre educação, memória histórica e justiça social.
O capítulo “Alegorias do Primitivo” oferece uma contribuição significativa para os estudos sobre raça, colonialismo e representações visuais, ao demonstrar como a branquitude se constituiu não apenas como identidade racial, mas como projeto civilizatório sustentado por imagens, símbolos e narrativas. A análise de Schwarcz é essencial para compreender a persistência de imaginários racistas na cultura contemporânea e para promover uma crítica efetiva às formas pelas quais o passado colonial continua a moldar o presente. A obra é, portanto, de grande valor para pesquisadores das áreas de História, Antropologia, Educação, Artes Visuais e Estudos Culturais.
REFERÊNCIAS
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Alegorias do primitivo. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. Imagens da branquitude. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p. 57-98.
Créditos na imagem da capa: DE BRY, Theodor. Staden, Duas Viagens ao Brasil, 1557. [S.l.]: Wikimedia Commons, [s.d.]. Disponível em: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Theodor_de_Bry_-_Staden,_Duas_Viagens_ao_Brasil,_1557.jpg. Acesso em: 27 maio 2025.
Ana Clara Menezes de Andrade
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