O single Rocket “88” de Jackie Brenston and his Delta Cats foi o primeiro hit do rock’n’roll a atingir o topo de uma parada musical, contudo, nem a canção, nem seus criadores, tornaram-se referências imediatas do rock’n’roll. Em comemoração aos 70 anos desde a gravação de Rocket “88” no dia 07 de março de 1951, sumarizo a sua complicada história de sucesso e obscuridade.
A história de Rocket “88” começa em uma sexta-feira à noite, em um clube na cidade de Cleveland, no estado do Mississípi, onde os jovens Ike Turner, Jackie Brenston, Raymond Hill, Willie Kizart e Willie “Bad Boy” Sims tocavam com bastante velocidade e barulho o Rhythm and Blues (R&B), o Boogie-Woogie e o Country and West. A banda fazia cover de sucessos da jukebox e, aos poucos, se tornava conhecida na região. Não imaginavam estar dando passos fundamentais que os levariam até Rocket “88”, para com esse, colocar os pés pela primeira vez no rock’n’roll (antes que Neil Armstrong colocasse os seus pés na lua).
Na volta da apresentação, os músicos perceberam de um lado ao outro da estrada filas de carros estacionados junto ao clube Harlem Inn., nos arredores das cidades de Mound Bayou e Winstonville no estado do Mississípi. Ao olhar para o palco do Harlem Inn., Ike Turner logo reconheceu Riley King, um garoto que esteve em sua casa muitos anos antes, com um violão sustentando apenas três cordas — mas que, ali, se apresentava como B.B. King. B.B. King atendeu ao pedido de Turner para que ele e sua banda tocassem uma música. Diante do sucesso da apresentação B.B King disse ao grupo que eles precisavam gravar; e arranjou tudo. O contato de B.B. King era o produtor Sam Phillips, dono da Memphis Recording Service (que logo se transformaria na famosa gravadora Sun Records) na cidade de Memphis, estado do Tenessi.
Na quarta-feira Sam Phillips ligou para Ike Turner perguntando quando eles poderiam gravar. Ike prontamente respondeu: “agora mesmo!”. Sem saber ao certo o que fariam ao chegar no estúdio, debaixo de chuva, integrantes e equipamentos se espremeram em um carro para percorrerem pouco mais de 100 quilômetros até a Memphis Recording Service. No caminho, Jackie Brenston teve a ideia de fazer uma música sobre o modelo Oldsmobile 88, uma novidade no mercado que trazia o potente motor V8, apelidado de rocket, e que era o sonho de consumo do próprio Brenston. Tudo corria bem, o grupo estava mobilizado para a concretização de uma música autoral para ser gravada, até que a polícia rodoviária interceptou o carro e os levou até um tribunal. Os jovens músicos sarcasticamente explicam o motivo: “muitos negros no carro”.
Vencida a barreira policial, e de volta à estrada rumo à Memphis, um pneu estoura. Na versão contada por Ike Turner, o impacto fez cair o amplificador que estava preso ao teto. Na versão de Sam Phillips, o acidente ocorreu no manuseio do amplificador que se encontrava no porta-malas, e teve que ser retirado para o acesso ao estepe. Comum a todas as versões é o fato de terem um amplificador danificado e uma música ainda por fazer.
Apesar dos reveses, todos adentram a Memphis Recording Service. O dano no amplificador gerou um som distorcido, um indesejado som fuzz, mas que foi prontamente aproveitado por Sam Phillips que dizia, “vai soar como outro saxofone”, enquanto preenchia com papel pardo o conteúdo fissurado do amplificador. Ike Turner teve a ideia de substituir a linha de baixo pelas notas graves da guitarra de Willie Kizart que por virtude do acidente passou a ser também uma ‘guitarra distorcida’. Para o vocal de Jackie Brenston foram incluídas as inovações de reverberação do slap echo.
A música ficou pronta e foi lançada antes que o radialista Alan Freed popularizasse a expressão rock’n’roll em seus programas. Antes também da aparição televisiva de Bill Haley em 1955, que o consagrou como representante de toda a juventude rebelde e tornou o gênero rock’n’roll nacionalmente conhecido.
A velocidade do processo parece ter feito Rocket “88” passar pela história sem que lhe fosse atribuído o rótulo rock’n’roll. O reconhecimento oficial veio somente em 2018, quando Rocket “88” foi incluído no Rock and Roll Hall of Fame. Contudo, para Ike Turner, o caso não se resumiu apenas à velocidade, mas ao modo como a indústria fonográfica e a imprensa classificavam certos trabalhos musicais: “puseram o rótulo de R&B por causa da minha raça”. A combinação entre a velocidade e a estrutura social racista norte-americana são chaves de leitura importantes para toda a história do single.
Logo após a gravação, Sam Phillips remeteu o single o mais rápido possível para a Ches Records, para a confecção do compacto simples. Quando o disco ficou pronto, lia-se, estampado e prensado no centro do disco, o nome da banda: Jackie Brenston and his Delta Cats. Porém, o nome verdadeiro da banda não era esse, era Ike Turner & His Kings of Rhythm.
Quando o nome chegou ao conhecimento dos integrantes todos ficaram aturdidos. A alteração do nome da banda foi uma decisão exclusiva de Sam Phillips e da Ches Records, sem consulta prévia aos integrantes. Em seguida, com ciúmes mútuos, os músicos passaram a disputar a autoria de Rocket “88”. Ike Turner diz ter composto a melodia e o arranjo. O pianista Clayton Love, que excursionou com Jackie Brenston, declarou que o compositor de Rocket “88” foi Johnny O’Neal, ex-vocalista da banda de Ike Turner. Sam Phillips diz que, na pressa para finalizarem a música, até mesmo a gerente do estúdio Marion Keisker ajudou a escrever a letra. Jackie Brenston diz ter feito toda a música sozinho; afinal, foi quem assinou o contrato e recebeu os direitos autorais. A banda foi desmantelada, enquanto Rocket “88” ainda estava no primeiro lugar das paradas de R&B.
O one-hit wonder Jackie Brenston tentou excursionar com sua música, mas não foi bem sucedido. Em entrevista ao jornalista Jim O’Neal para a revista Living Blues, Jackie Brenston narrou a dificuldade que foi não receber um suporte profissional, arcando, ainda muito jovem e imaturo, com a formação e administração de uma banda.
Afoitos, destemidos, impulsivos e enérgicos, assim foram os atos que permearam a gravação de Rocket “88”; o que, sob todos os ângulos, demonstra uma forma de rebeldia diferente do estereótipo televisivo e cinematográfico do rock’n’roll apresentado para as plateias brancas na década de 50. Rocket “88” realizou uma rebeldia e criatividade que superou obstáculos em uma terra composta por fronteiras físicas, econômicas e sociais da segregação, e ainda assim, Rocket “88” fez o que nenhuma música havia feito. Rocket “88” imprimiu uma identidade jovem devota aos fios elétricos e ao combustível fóssil, fez dos produtos técnicos avançados da vida urbana um símbolo e insígnia, fez o rock’n’roll.
REFERÊNCIAS
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TURNER, Ike; CAWTHORNE, Nigel. Quero o meu nome de volta: as confissões de Ike Turner. São Paulo: Editora Landscape, 2002.
Créditos na imagem: Discogs / Disponível em: https://www.discogs.com/artist/450656-Jackie-Brenston-His-Delta-Cats
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