“Falarei do lugar da escrava. Do lugar dos excluídos da res(pública). Daqueles que na condição de não cidadãos estavam destituídos do direito à educação” (CARNEIRO, 2023, p.9). Estamos diante da abertura da tese de doutorado de Sueli Carneiro, uma referência intelectual negra orgânica. Estas primeiras palavras nos permitirão dizer algumas coisas que dialogam com o propósito da Missa dos quilombos, sem que nos coloque como exegeta de sua poética musical e performática. Interessa, aqui, apenas dizer sobre aquilo que nos afeta como sujeito, que nos mobiliza como pessoa e as afecções que esta experiência político-religiosa pode nos proporcionar naquilo que entendemos como o reino subjugado pelos excessos da racionalidade pura. Nos referimos, portanto, às emoções, aos afetos e as emotividades (NUSSBAUM, 1995; ROSENWEIN e CRISTIANI, 2017).
Ao reencarnar a classificação dada às pessoas de pele escura, estrangeiras, sequestradas, violadas e alienadas de sua origem, Sueli Carneiro enfatiza a condição de subcidadania contemporânea que a corpos negros são adstritos. Ela nos mostra que os direitos relativos àqueles que estão inseridos em sociedade, como contribuintes socioeconômicos, são negados a outros que carregam as marcas da negritude, que são atravessados pelas feridas da escravidão. E, mais do que isso, ela nos aponta o lugar determinado a estes corpos: o lugar da exclusão, da mazela, da marginalidade. Além disso, também são corpos destituídos de emoções, destituídos de afeto, despojados de sua humanidade.
A despeito do que se esperaria quando nos propomos a falar da missa dos quilombos, nossa escolha será dialogar com a Homilia proferida por Dom José Maria Pires, e justificamos esta seleção afirmando que não estamos desviando da arte performática e musical, mas entendemos que seu caráter discursivo eleva a homilia a uma articidade particular. Esta articidade envolta em uma ambiência de ressentimento, entendido aqui, não como emoção negativa, como impotência e sentimento difusos de ódio, mas como sugere o filósofo Pierre Ansart (2022), consideramo-lo em sua pluralidade, enquanto a experiência do amor-próprio ferido, mas também, como possibilidade de sentir novamente a experiência da negação de si.
De imediato a abertura da homilia é fundamentalmente um percurso pela travessia do Atlântico até a chegada nos portos. E a despeito do que poderia suscitar este primeiro parágrafo do discurso do Arcebispo, não é o desejo de vingança que impera, mas uma convocação para autocrítica institucional religiosa que não se limita a ela, nas palavras do Arcebispo José Maria Pires[1]:
Estamos recolhendo hoje e aqui os frutos do sangue de Zumbi, símbolo da resistência de nossos antepassados. Eles foram trazidos à força da África para essas terras, arrancados de sua Pátria, separados de seu povo e de sua família, misturados com pretos de outras línguas e de outros costumes. Violentaram-lhes a consciência, impuseram-lhes uma nova religião que não escolheram. Até o nome lhes roubaram e os chamaram por nomes destituídos de significados para eles.
Quais são os frutos do sangue de Zumbi? Alguns poderiam dizer que são frutos amargos com sabor de retaliação e condenação. Um fruto que estaria apodrecido pelos anos de ressentimento como experiência da humilhação. Mas, ao que parece, não se trata disso, embora constatada toda dor, desgosto e dissabor da violência da expatriação. Os frutos de Zumbi são coloridos de resistência e reexistência. Certamente, alguns ouvirão estas palavras e associarão à militância puramente político partidária, afinal tem sido a tônica contemporânea, mas garantimos a vocês que, aqui, elas são mais que isso. Elas são a possibilidade de tornar viva a condição mesma de ser si mesmo. Em outras palavras, ao nos mantermos sobreviventes das ações, das lutas e, herdeiros daqueles que disseram não a desumanização e a instrumentalização de seus corpos, somos, assim, a própria história em movimento, somos, antes de mais nada, a política no seu sentido grego Politikon (πολιτικόν), isto é, relativo à vida pública e coletiva. Enquanto coletividade, somos convidados a celebrar a diversidade, a diferença, a diferenciação e as colorações do que somos e podemos ser, disse Dom José:
Como nossos antepassados, viemos de vários lugares. Diferentes deles e menos puros do que eles, trazemos na pele colorações variadas. Na alma, crenças diferentes. Mas neles e em nós estão presentes e são indeléveis as marcas da negritude. Somos negros e não nos envergonhamos, não queremos mais nos envergonhar de sê-lo.
A filósofa Martha Nussbaum (2009), estudiosa das emoções, atenta para que tenhamos uma visão diversificada da vergonha. Segundo ela, a vergonha pode ser uma resposta à vulnerabilidade, pode ser uma condição de dependência, pode, também, carregar função social e política. Dessas muitas formas da vergonha, a sua negação é a constatação de que não podemos mais acreditar que aspectos particulares a nossa existência social – corpo, status social, ações e/ou características – sejam inferiores ou mesmo, motivo de automutilação de qualquer forma. Corroboramos com Dom José quando denota que carregamos em nós a manifestação da diversidade.
Embora na leitura da homilia esperássemos um tom de amargor, de ressentimento como ódio pelo reconhecimento das violências atribuídas, vemos o contrário. Há nela uma denúncia positivada, queremos dizer, uma denúncia que não se limita a marcar o que de negativo foi experimentado. É, ao que parece, uma convocação à autorreflexão, à possibilidade de, no interior de si, encontrar outras formas de despertar o que haveria de humanidade, de afetuoso, de coletivo nos sujeitos. Dito de outra maneira, as palavras do Arcebispo são direcionadas à igreja, mas não apenas, são como uma espada de dois gumes. É bem possível que esta expressão não dê conta dos muitos cortes que este discurso se propôs a “cortar”. Dom José desferiu a espada sem prejuízo ao que pretendia dizer, acentuando que:
No passado, ela [a igreja] não se mostrou suficientemente solidária com a causa dos escravos. Não condenou a escravidão do negro, não denunciou a tortura de escravos, não amaldiçoou o pelourinho, não abençoou os quilombos, não excomungou os exércitos que se organizaram para combatê-los.
Muito poderíamos dizer sobre o papel da igreja nas atrocidades que historicamente marcaram a vida humana, o antropoceno. Mas cairíamos em alguns clichês que preferimos evitar. Primeiro, para não parecermos proselitistas políticos; segundo, por não haver tempo hábil para tanto e, também, por não ser o propósito deste texto. Gostaríamos apenas de dizer que pouca coisa mudou desde o crepúsculo da teologia da libertação[2]. E não quer dizer que não haja alas progressistas nas instituições religiosas, embora a proeminência ainda seja da ala conservadora e, em alguns casos, reacionária. No entanto, queremos conservar o tom conciliatório da homilia de Dom José. E este tom é bastante claro quando ele se dirige às pessoas brancas da seguinte maneira:
Somos gratos aos que, sem serem negros, se mostram partidários de nossa causa, e ainda, Brancos, nossos amigos! Conosco vos reunis. Descendentes embora dos que nos humilharam e torturaram nossa raça, viestes hoje nos aplaudir. Não sendo negros, vos mostrais solidários com nossa causa e não quereis ver prolongadas em nós as consequências nefastas da escravidão que oprimiu nossos avós.
Este chamamento à fraternidade, não se caracteriza como esquecimento, mas como a possibilidade de tornar tangível aos não-negros, uma possível redenção. Não como aquela da tela A Redenção de Cam, de Modesto Brocos (1895), mas a redenção de seus pecados contra a humanidade. É evidente que a noção de pecado, seja ele como instrumento de controle, seja enquanto condição decorrente do erro ou atentado contra moral, nos permite dizer que a consequência possível é a impossibilidade do homem se manter distante da compreensão de sua finitude articulado à necessidade expressa de autoengano. E aqui a vergonha não está atrelada a acusar os não-negros das atrocidades de seus antepassados, mas antes disso, de fazê-los aliados na luta e na reparação das feridas que insistem em não cicatrizar.
E veja bem, o Arcebispo Dom José não passa a borracha na história como uma forma de conciliação irresponsável. Não abre espaço para negação do que se articulou no mundo europeu como justificativa para escravidão, seja pelo lucro, seja a salvação pela servidão, ou ainda, pela desumanização do Outro em favor da salvaguarda do lucro, da propriedade e da exploração. Mas repare, o clássico argumento dos detratores da luta antirracista de que já havia escravidão em África não é ignorado por Dom José, ele diz: “Podemos entender, aceitar não” (grifo nosso). Fica, pois, claro que o respeito à diversidade cultural não pode estar acima dos princípios da dignidade humana.
Dom José ironiza outro argumento comum sobre a existência de leis que supostamente protegiam a integridade física dos escravizados. Em suas palavras:
Leis houve e não poucas destinadas a coibir os excessos nos maus tratos aos cativos. Ficaram, porém, letra morta, pois era o próprio sistema que legitimava a escravidão. A Igreja, por sua vez, a aceitou sem maior relutância e procurou justificá-la com a teoria do mal que vem para o bem se os negros perdiam a liberdade do corpo, em compensação, ganhavam a alma e se incorporavam à civilização cristã abandonando o paganismo. Bela Teologia!
Rapidamente gostaríamos de dizer alguma coisa sobre o tropo da ironia. Para o historiador e teórico Hayden White (2014) a ironia é um modo de discurso que pressupõe o ceticismo e o distanciamento crítico. Embora não tenha lá certeza quanto ao teor cético no discurso de Dom José, sobretudo, porque, ao que parece, ele acredita no que diz, diferente de um narrador que não estaria completamente comprometido com as ideias que estaria apresentando.
Para Hayden White os elementos que compõem o tropo da ironia são: o duplo sentido, a desconfiança em relação à coerência, o relativismo e o ceticismo moral. Levaríamos um tempo analisando quais elementos estão presentes no discurso do Arcebispo. Nos interessa apenas acentuar que na dimensão ética, a ironia revelaria uma atitude que não vê o mundo em termos de absolutos, maniqueísta (bom ou mau), mas, sim, como um espaço repleto de ambiguidades e contradições, em que as certezas morais são e devem ser constantemente questionadas.
É neste ponto que a homilia de Dom José nos parece ser extremamente rica. Ele fala dos pactos e colaborações de alguns negros nesta sociedade escravagista, mas, também, louva o espírito de quilombola, o espírito de resistência e reexistência. Vejamos esta passagem:
Chegou o tempo de tanto sangue ser semente, de tanta semente germinar. Está sendo longa a espera, meus irmãos. Da morte de Zumbi até nós são decorridos já quase três séculos. Mas a terra conservou o sangue dos nossos mártires. Este sangue fala, clama e seu clamor começa a ser ouvido.
Pierre Ansart disse que a tentação do esquecimento dos ressentimentos é uma estratégia de apaziguamento, mas aqui, para Dom José, o ressentimento é semente de luta. Não se trata de reviver as dores, e, sim, de não esquecer os sacrifícios feitos em nome da liberdade de ser e sentir. Cada semente de quilombo que floresce no mundo contemporâneo tem um objetivo fundamental: retirar a população negra das margens, mas não somente elas. A semente quilombola tem raízes que se espraiam convocando a liberdade: negros, pardos, brancos periféricos e minorias.
A hodiernidade da missa dos quilombos carrega a atualidade da comunidade emotiva, descrita pela historiadora Barbara Rosenwein (2006) como normas, valores e práticas compartilhadas por um grupo de indivíduos que determinam como as emoções são expressas. Os indivíduos não se limitam a uma única comunidade emotiva, há uma interseccionalidade com outras comunidades afetivas que podem, inclusive, se inter-relacionar, e.g. a família, o local de trabalho, grupos religiosos; isto não quer dizer coerência nos contornos éticos e sociais, podendo, em vista disso, possuírem regras emocionais conflitantes.
Poderíamos encerrar este texto com uma reflexão mais vertical sobre a maneira como a missa dos quilombos nos impactou, mas preferimos dizer o seguinte: Se o drama da existência humana tem como possibilidade a instabilidade das coisas e do destino, seu drama mesmo de sujeito carente precisa da história como instrumento de autocompreensão e, mais que isso, como condição de leitura de salvaguarda de sua finitude e autoconservação.
NOTAS
[1] Ausência de páginas que localizem as referências se dá por se tratar de uma transcrição de terceiros divulgada amplamente na web, sua localização estaria no documento do Boletim do CIMI, n.º 76 – Dezembro/1981. https://www.dhnet.org.br/mndh/encontros/iencontro/relatoriosregionais/missaquilombos.htm
[2] cf. NORONHA, Cejana Uiara Assis. Teologia da Libertação: origem e desenvolvimento. Revista Fragmentos de Cultura-Revista Interdisciplinar de Ciências Humanas, v. 22, n. 2, p. 185-191, 2012.
REFERÊNCIAS
ANSART, Pierre; DAS GRAÇAS, Maria. História e memória dos ressentimentos. EXILIUM Revista de Estudos da Contemporaneidade, v. 3, n. 5, p. 209-232, 2022.
CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
NUSSBAUM, M. C. Poetic Justice. The literary Imagination and Public Life. Boston: Beacon Press, 1995.
ROSENWEIN, Barbara H. Emotional communities in the early middle ages. Cornell University Press, 2006.
ROSENWEIN, Barbara H.; CRISTIANI, Riccardo. What is the History of Emotions?. John Wiley & Sons, 2017.
WHITE, Hayden. Metahistory: The historical imagination in nineteenth-century Europe. JHU Press, 2014.
Créditos na imagem de capa: Missa dos Quilombos: A missa “comunista” faz 43 anos hoje por Oscar de Barros. https://pensarpiaui.com/noticias/missa-dos-quilombos-a-missa-comunista-faz-43-anos-hoje/30902