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Simmel – Joyce – Roma

Lendo um texto do tradutor italiano do Joyce (Enrico Terrinoni) publicado na sexta-feira (19/06) no “The Irish Times”, me lembrei de Roma e das considerações sobre a cidade que o Simmel teceu quase na virada dos séculos XIX para o XX, e que conheci graças às memoráveis aulas do professor Ricardo Benzaquen no extinto IUPERJ, em 2011. As contribuições de Simmel se estendem para além da sociologia urbana ou da reflexão histórica sobre as cidades, atingindo um ponto fascinante na consideração da cidade como um objeto estético, compartilhando o mesmo estatuto dos objetos clássicos – pintura, escultura ou música. É sabido que o conceito de metrópole em Simmel relaciona-se a um tipo de indagação que se refere ao modo como a subjetividade foi experimentada nessa mesma metrópole, isso pelo menos a partir do século XIX. Berlim será a cidade exemplar dessa ideia. E como não imaginar a Berlim do autor da dissonante e cacofônica ópera “Salomé”, Richard Strauss (contemporâneo de Simmel), a metrópole mais barulhenta e movimentada da Europa, em contraposição à Viena idílica e imperial do autor de épicas sinfonias Gustav Mahler? Embora outros autores prefiram apontar a exemplaridade metropolitana de Paris, enquanto Londres ocupa um lugar dúbio nesse debate. Alguns anos depois de Simmel, as reflexões de Benjamin alcançariam a compreensão da “experiência do choque” como característica fundamental da metrópole moderna, e aí entra Berlim, Paris, Londres, Nova York, Roma, Rio de Janeiro, Buenos Aires, delineando uma espécie de civilização metropolitana, habitada pelo sujeito desorientado, inconstante, bombardeado por pequenas, fugazes e lancinantes explosões, dispersando inúmeros focos de atenção, um sujeito no limite melancólico e exposto a um mundo objetivo completamente autonomizado. Mas voltando a Simmel, em “Roma. Uma análise estética” (1898) seu famoso argumento vai apresentar uma modulação surpreendente. Aqui, a “cidade eterna” figura como a antimetrópole por excelência, pois trata-se de uma obra de arte, o oposto/avesso de capitais como Paris e Berlim. Um corpo orgânico onde “nenhum elemento, por mais arcaico, insólito, inútil que seja, pode furtar-se à sua enorme vivacidade” (SIMMEL, 2017, 25). Pelas ruas de Roma vive-se experiências geográficas e, sobretudo, temporalmente distintas. Quando estive nesse corpo no ano passado, munido do meu “inventário” de obras a serem perseguidas, e que “pesquei” no afamado manual do E.H. Gombrich, me desorientei em andanças pelas ruas altas nas cercanias do Trastevere à procura de uma capela da Alta Renascença erigida por Donato Bramante, o Tempietto, de 1502. E qual não foi minha surpresa ao presenciar aquela construção que, no livro de história da arte, parecia tão vistosa, quando na verdade encontra-se absolutamente “escondida” em um pátio ermo dentro do complexo de San Pietro in Montorio, com acesso bloqueado por uma grade e sem qualquer placa indicativa e/ou informativa dessa jóia do Renascimento. Assim é a Roma antimetrópole, que parece dar pouca ênfase ao seu estatuto artístico em razão da exuberância infindável de seus belos exemplares dispersos pelo imenso território geográfico e temporal.

 

O Tempietto de Bramante (1502), monte Gianicolo, antiga colina de Roma (foto: Sérgio Aguiar, julho de 2019)
O Tempietto de Bramante (1502), monte Gianicolo, antiga colina de Roma (foto: Sérgio Aguiar, julho de 2019)

 

Roma é espacialmente enorme e de uma profundidade histórica incomparável do ponto de vista da história do Ocidente. Ali estão o Império Romano, a Idade Média, os papas e o Vaticano, o Renascimento. Uma pólis imensa em que as diferentes épocas históricas coexistem e compõem um todo formado por estratos de tempo (para lembrar a imagem do Koselleck). Uma metrópole de estranha beleza, gigantesca, monumental. “E o mais curioso nisso tudo é que nesse tipo de cidade o gigantismo, essa profundidade enorme, esse tamanho desmesurado, essa complexidade quase infinita, não pesa sobre aqueles que a visitam ou que lá moram” (BENZAQUEN, 2019, 379). Esse tipo de cidade faz com que tudo aquilo que é menos importante na vida de cada um, tudo aquilo que é cotidiano, prosaico, o bando de mesquinharias que ocupa grande parte da experiência subjetiva seja minorado diante da grandiosidade, de uma experiência tão sublime como aquela que poderia ser encontrada num lugar como Roma (ideia essa que guarda semelhanças com a estética lukacsiana). Ficamos espiritualmente nus diante da grandeza romana. E assim, ainda seguindo Benzaquen (2019, 379) leitor de Simmel, “diante do sublime, corporificado em Roma, aquilo que há de mais sublime em cada um, que é essa identidade mais específica, essa capacidade de operar sobre a sua própria vontade, tem condições de também ganhar força e de certo modo se fortalecer, se sofisticar com o contato, com a riqueza embutida na experiência romana. O contato com uma cidade desse tipo, ao invés de produzir desorientação no sujeito, produz o efeito oposto: faz com que ele se enriqueça sem perder, porém, a sua característica mais significativa. Nem toda cidade moderna é uma metrópole. Essa não é uma categoria que tem um sentido descritivo; é um conceito que serve para dar conta de certas experiências, e não de outras”.

E agora, para finalizar essa digressão dominical, volto ao texto do tradutor do Joyce, porque ali ele nos relata os dias do escritor expatriado irlandês em Roma, cidade pela qual Joyce nutria sentimentos confusos. Em 17 de fevereiro de 1907 o escritor deixa seu apartamento na Via Monte Brianzo 51 e vai até o Campo de Fiori, a praça romana onde Giordano Bruno foi queimado na fogueira pela Igreja em 17 de fevereiro de 1600. Os caminhos de Joyce e Bruno convergiram naquela efeméride, uma vez que o apartamento do escritor ficava a poucos metros da Torre de Nona, última prisão de Bruno antes da execução. E o fantasma de Bruno paira sobre os seus livros até o Finnegans Wake (publicado poucos meses antes de estourar a guerra em 1939). Foi justamente quando esteve em Roma, nessa obra de arte que é uma antimetrópole por excelência, que Joyce teve a primeira ideia de escrever um conto chamado “Ulysses”. Anos mais tarde, em 1921, Joyce confessou em uma carta a Valery Larbaud a vontade de retornar à Roma após a conclusão de Ulysses, mas infelizmente o dublinense, como um vagalume na ofuscante claridade dos holofotes, nunca mais voltaria a pôr os pés na cidade eterna, que seria tomada pelo fascismo naqueles tempos sombrios que se anunciavam.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

BENZAQUEN, Ricardo. Zigue-zague: ensaios reunidos (1977-2016). Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Unifesp, 2019.

ROSS, Alex. O resto é ruído. Escutando o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SIMMEL, George. “Roma. Uma análise estética”. In: FORTUNA, Carlos (org). Simmel. A estética e a cidade. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017.

 

 

 


Créditos na imagem de capa: No alto, a estátua de Giordano Bruno no Campo de Fiore, em Roma (foto: Sérgio Aguiar, julho de 2019).

 

 

 

 

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