HH Magazine
Crônicas, contos e ficções

Sonho em madrugais

Naquela mesma noite, acabei por dormir atravessado ali no quarto do canto da casa. Era lugar estranhoso, caía em um corredor que dava pela sala e pela cozinha. Da cozinha de dentro se seguia por uma porta com degrau que descia para a varanda. A varanda dava para um verderal enorme de mato. Eram muitas árvores novas que tinham ali plantado, gostavam da companhia das árvores, os donos da casa. Eu, do jeito que estava, chegado cedo, passara por todos dando boa noite, mesmo sendo ainda de tarde, deitara ali, despencansado de sono. Só fui dar por acordado de madrugada, ou assim penso que foi. Saí, cambaleante ainda. Escuro garanto que estava, mas por alguma bruxesa ou magia dessas santas, eu ainda enxergava tudo, como se fosse dia.

Passei pelo corredor correndo as mãos pela parede. Não em gesto de quem não enxerga, meus apoios eram meus pés barbatões. Seguia neles em firme montança. Deixava a mão ali como que pra avisar a casa que ali eu, peão já feito, acordara e percorria suas entranhas, sentia a casa e a parede fria que percorria o corredor. Casa velha tem alma também. Tem que respeitar. Cheguei até a cozinha. Nem alma penada. Pelo tardar da hora, acordado, só o demônio em pessoa, porque até os fantasmas já teriam encerrado sua vigília. Aquietei. Ruminoso até decidir por um copo d’água. De moringa na mão, descopei a água. Decisão de modorra é sempre outra, diferente dessas que tomamos despertos. Bebi ali, direto da moringa, com a água a escorrer-me pelos fios do bigode, úmidas nascentes escuras me enribeiravam o queixo.

Dali da cozinha saí pra varanda, atraído por uma esperança de encontrar no fogão uma lenha, uma quentura. Ai, se eu soubesse da ardência que me armava o destino. Desci o degrau, silencioso, atento ao brilho que já confirmava vir do tição. Fui. Passando pelas panelas de ferro penduradas nos vergalhões de madeira que colunavam o telhado da varanda. Essa, se esqueci de mencionar, girava em torno da casa toda, de modo que não principava, nem terminava, varandeava em um sentido completo. Ali, naquele trecho que era uma segunda espécie de cozinha, virada para o mato, ficavam dependurados todo o tipo de quinquilharias de cozinhar.

De um rompão, me arreparei pro lado de fora. O céu de uma lumescência estranha. Isso, por assim lhe conto, é o que mais me faz pensar que não era acontecência nenhuma, mas que fosse sonho. Já reparou como pouco damos conta dos céus? Eu sempre me arre-paro, hábito que tenho desde quando menino moço, que olhava muito as estrelas e tinha por hábito até esquecer que caminhava para algum lugar só para modo de observá-las. Isso não é coisa que se faça mais, hoje em dia ninguém tem tempo de estrelas. Mas mais do que o céu noturno, as pessoas se preocupam demais com as terrenidades e de menos com as coisas mais leves. O céu de abril, por exemplo, é o mais azul de todos. Nenhum dia qualquer é capaz de competir com o céu que dá em abril. Exceto é claro, os dias que nascem descampados de mês, que acontecem ao longo de todo o ano. Nesses dias em especial, o céu é tão azul que faz abril em outro mês.

Pode ser loucura minha também. Mas meu olho se cacheava todo ao olhar para aquele céu azul abrilado. Eu ficava lá, anuveando os olhos. Esticava o pescoço até doer. Doía, mas era tão bonito. O daquela madrugada mesmo não era escuro, nem azul. Não tardava ali, naquela madrugada, parece até que amanhecia. Era de um tarumã-borí brilhento. Carregadinho de estrelas. Eram tantas as estrelas que a verdade já nem me acompanha mais quando falo. Mentira juro que não conto agora, nem antes. O aralume das estrelas formava um coro aos olhos. Dava para ouvir um canto bem baixinho, como se elas estivessem ninando a noite. Botando a mata para dormir.

E quedei ali. Aquietoso. Amanheceu e escureceu de novo naquela hora de contemplação. Lembrei da casa do avô. Esqueci do tição. Coisa sem importecência a gente esquece mesmo. Desse dia pra frente, sempre conto, que de lá dentro do meu olho, se você olhar bem de perto, você pode ver que tem um lume qualquer de constelação. Sem querer causar consternação, é só uma verdade que eu conto para os outros. Nem me acreditam, nem me desacreditam. E continuava o coro das estrelas. Quando me reparei, meio ainda bambo, que quem quer que fosse, solava com elas. Puxava ou até regia. Eu não tinha me visto, mas eu, sozinho, não estava. É impressionante como as atenções não ficam nas importâncias. Às vezes tem coisa importante que a gente deixa passar, nem vê.

E tem música que a gente não esquece. Canta as vezes sem saber, passa a vida assoviando. É que cada um tem sua música, ela persegue a gente, segue na vida. De tão acostumado que estamos. Nem se repara. Tilico assoviava sem ver, eu passei a fazer o mesmo, mas a minha melodia era outra. Desarmônica com a dele. Você perdoa, que eu dei volta, mas foi pra justificar o amor. Mesmo sabendo que com ele não tem. Naquela noite estranha eu vi e ouvi o que viria a ser meu contra canto. Na beira do fogão, bem quietinha, tinha uma mulher. Mulher que eu não tinha visto antes. Ela olhava pro céu, perdida que estava. Eu, aquietado que sou, fiquei estato. Não queria mangar ninguém àquelas horas. E acho que esse foi meu erro. Tivesse ido pegar o tição, dado boa noite, assustado ela, talvez até desaparecesse, em ilusão. O problema foi o fitar. Meu olho canoa em um corpo que é rio. Enquanto o vento bafe-bafeava a varanda, eu perdi o relume do céu. Quando a gente fita por demais as coisas a gente vê o que não se via. Tem alguma coisa de sentença nisso.

Confuso com a luz, via nas peles dela uma mistura do vermelho tiçado do fogão com o roxo do céu daquela noite. E as estrelas que antes iluminavam até mais do que o céu, ficaram sumidouras, quase que em sopro. Fitava aquela morena mariamariada quase que inhambuzado. E ela nem. Só prestava pro canto que saía da garganta, velando a noite que nem menino novo, que precisa que a mãe cante. Confesso que depois do choque, tive medo. Fechei os olhos. Torcia que assim que eu abrisse, mulher nenhuma ia ter, que era só ilusão. Que céu de tarumã fosse coisa do diabo, antes mesmo ter o carniceiro ali que essa mulher. Abri. Nada, continuava a mulher lá.

Confesso que eu mesmo parava de narrar aqui. Adianta de quê? O que viesse acontecer ou desacontecer, não faria diferença. Se era sonho, se não era. Aquele momento ali. Bem ali, do lado do fogão foi que morri. Momento de trevura, maldição. Malamado fogão esse, que de quentura imaculada, atraiu criatura tenebrosamente bela. Valei-me minha Nossa Senhora da Mata. O fato acontecido é que amei a partir dali. Se tinha amado até então, não sei. Mas de em diante nunca mais parei. Amo até hoje, mesmo não sabendo. O problema do amor mesmo, o amor real, é que ele é crônico, nunca vai-se embora. Diz que pega ele com barbeiro, né? Ele pica a gente, aí o coração cresce, cresce até que não cabe no peito. Não sei o que acha, mas eu acho que quando é assim, o sujeito é que amou demais. Acho que eu dei foi sorte até hoje. Ou então não era amor. Porque daquela noite não lembro de picada. Mas também não lembro se era despertagem minha ou se era sonhecença.

Que meu peito explodiu mas nem, você pode ver. Tá inteirinho. Se tivesse sem o peito ou de coração inchado, se apercebia. A gente continua amando, mesmo depois que deixa. É. Por isso cresce o peito, quem a gente ama mesmo, nunca vai embora, fica lá guardado. Eu dei sorte que de amor de vida, aquele tinha sido o único, por isso o peito fundo. O espaço vazio ali ficou pra ela mesmo. Fez fazenda no meu peito, criou estrada de dormente em cama de ferro, virou lugar de recanto. Do fundo do peitoral mesmo, guardava eu corte de navalha. Amor verdadeiro. Porque amor mesmo é assim. Não sei se você, e me aperdoe perguntar, tem problema em tirar essa pelagem. Pra mim sempre foi complicoso. Aprendi a usar a navalha com meu pai mesmo. E depois Tialaor tratou de me aprumar melhor o fio. Mas sempre fui desajeitoso, me cortava todas as vezes. O problema maior é que o fio é as vezes tão fino que nem se apercebe o corte. Só se vê o estrago depois, quando pingam as primeiras gotinhas sanguosas do rosto.

Depois que abri os olhos, e ela inda estava lá, cantou uma mãe da lua em resposta ao canto dela. Mas acontece que quando eu me aproximava, o silêncio tinha se apossado da varanda, de modo que quando quanto canto do fantasmoso animal deu-se, assustou a aparição, que pela primeira vez deu por conta de não estar sozinha. Mas não foi um susto muito grande, que em tarde da noite tudo se espera, é verdade. Mas peão em varanda alheia era a primeira vez que acontecia. Agora mulher malassombrosa, isso já era de pranche, como falam. Era o que eu temia, não era sombra nem assombra, era de carne mesmo. E dali do espanto, pela primeira vez tomei coragem de falar alguma coisa.

Noite – suspirei ainda assustado – que a moça me perdoe, mas não pude deixar de arre-parar, que do canto da senhora, nem urutau, nem coisa tal, compete assim. Prazer conhecer, não tinha te visto nas paragens até então. Desculpe também o assustamento, não era de intenção, mas a senhora de tão cantada estava em concentro, que me faltou força para tirar de ti essa solidência. Ela ainda me olhando, calada. Tinha qualquer coisa de lua no olho dela. E ainda culpo o céu roxo, mas vejo até hoje aquelas estrelas. Me nunca saíram da vista. É só fechar os olhos antes de deitar que brilham, só não garanto nem afirmo que estrelas eram, se dos céus ou dos olhos. Depois de vago tempo, obtemperando o meu andar, ela minguou em voz singela. – O senhor que me perdoe se te despertei, não tive intenção, mas a noite tão bonita, me perdi em mim, nonada já estava cantando. Muito encantada, seu moço. Sou Alínea.

Ai, uns buritizais chacalhoantes em morenidade. Se tivesse floresta em mim naquela hora em que ela sorriu, teria se evaporado em incêndio, porque na hora afoguei, queimei, sufoquei, tudo ao mesmo tempo e separado. Vivi ali e morri, nasci de novo, mas continuando vivo. O ar frio da noite era esbaforido demais pra mim, que a quentura do fogão não me aguentava, a vontade era de me jogar em ribeirão, morrer-me ali. Não podia com aquilo. Só não me matava por medo de se no céu chegasse, ser recebido por Alínea e se por azar e maldição da sina pecadora fosse condenado ao fogo eterno, temia-o também por medo de ser torturado à eternidade a sempre observar Alínea.

A encantescência é minha – falei já um pouco mais recuperado – sou das terras do rancho Pasto do Retiro, aparentado do Alaor e do Lito. Nonato de Ribeiro é o nome, mas me chamam Nonão também. Se me permite, posso acompanhar a senhora? Que de sono já não tenho verve, e uma companhia a hora dessas é sempre bem-vinda. Ela, calada, disse nem. Mas também não moveu palha. Ficamos ali, em conversa silenciosa. Hábito tão trigueiro que eu e ela teríamos em comum.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: João Luís Barreto Guimarães – Um Quarto de Hotel em Madrid.

 

 

 

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