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Ensaios e opiniões

Temporalidades encobertas: Como a teoria dos tempos históricos de Reinhart Koselleck pode nos ajudar a perceber outras camadas de tempo?

De acordo com a professora Ruth M. Chittó Gauer (2016, p. 31), a sociedade moderna constituiu um tempo geral, linear e abstrato, com o intuito de unificar temporalidades diversas em um tempo único e homogêneo. Esta construção temporal da sociedade moderna foi historicizada e criticada pelo historiador alemão Reinhart Koselleck.

Em seu conhecido ensaio: História Magistra Vitae, Koselleck percebeu mudanças significativas nas formas de pensar e escrever o tempo na Modernidade Ocidental. Segundo Koselleck, antes do período moderno, ao longo de 2 mil anos, a história tinha uma função pedagógica, ou seja, se podia aprender com ela, principalmente com o objetivo de não recorrer aos erros do passado. Nesta concepção de história, o passado carregava uma função essencialmente prática, no sentido de oferecer aos seres humanos – do tempo presente – orientações para a vida. (KOSELLECK, 2006, p. 42-43).

Todavia, Reinhart Koselleck observou – a partir da sua história conceitual – mudanças na consciência histórica europeia referente a história. A história começou a ganhar um significado inédito, pois, agora, a história teria abandonado o seu sentido pedagógico e adotado um sentido universalizante. Isto é, houve a passagem da velha história (Historie) para a “história em si” (die Geschichte selbst). A nova história (Geschichte) reuniu experiências plurais de tempo em uma temporalidade única, linear, homogênea e abstrata. Portanto, com esta nova concepção de história, as pessoas não aprendem mais com as histórias, pois só existe uma única história, isto é, a história universal. A história que reúne múltiplas histórias em uma única história, Koselleck chamou de singular-coletivo.

Para Koselleck, no mesmo período em que a história singular-coletivo tornou-se hegemônica, apareceu também, no cenário Ocidental, a ideia de filosofia da história. Nesse sentido, o conceito moderno de história se misturou com a filosofia da história Iluminista, que pensa a história de forma linear, progressiva e abstrata. A filosofia da história pretende reunir em um único conceito múltiplas histórias. Na medida em que o passado perdia força na cultural Ocidental, a ideia de futuro parecia ganhar espaço. Nas palavras de Koselleck: “não se pode mais esperar conselhos a partir do passado, mas sim apenas de um futuro que está por se constituir” (KOSELLECK, 2006, p. 58).

Pode-se dizer, com certa segurança, que o principal objetivo da obra de Reinhart Koselleck é pensar uma teoria dos tempos históricos, ou seja, pensar uma teoria que de conta das múltiplas temporalidades que foram encobertas pele conceito moderno de história e pela filosofia da história especulativa. Nesse sentido, Koselleck é muito crítico desse conceito moderno de história, pois as histórias no plural, que carregam ritmos temporais diversos, acabam sendo universalizadas e subsumidas numa perspectiva temporal totalizante. Portando, as diferenças temporais acabam por serem eliminadas. Ademais, de acordo com o historiador alemão, uma das principais características desse conceito moderno de história é, principalmente, sua redução a um conceito único de história à contemporaneidade de coisas não contemporâneas – aproximando-as ao progresso histórico (KOSELLECK, 2013, p. 39). Portanto, para Koselleck:

 

Muito além disso, a realidade da História moderna se compõe de uma multiplicidade de transcursos que, pelo calendário, são contemporâneos, mas que pela origem, pelo objetivo e pelas fases de desenvolvimento não são contemporâneos. Disso decorrem tensões, perspectivas de retardamento e de aceleração, distorções e uniformizações, que fazem parte da temática de nossa História mundial (Weltgeschichte) (KOSELLECK, 2013, p. 39).

 

Assim, de um lado, aquilo que pelo calendário pode ser sincrônico, de outro, a partir dos ritmos de desenvolvimento de uma determinada cultura, pode ser assíncrono. Com objetivo em solucionar o problema que o conceito moderno de história trouxe para a historiografia, Koselleck propôs pensar uma teoria dos estratos do tempo, isto é, uma teoria que buscar investigar os múltiplos tempos históricos sobrepostos uns aos outros. De acordo com Koselleck:

 

os “estratos de tempo” também remetem a diversos planos, com durações diferentes e origens distintas, mas que, apesar disso, estão presentes e atuam simultaneamente. Graças aos “estratos de tempo” podemos reunir em um mesmo conceito a contemporaneidade do não contemporâneo, um dos fenômenos históricos mais reveladores. Muitas coisas acontecem ao mesmo tempo, emergindo, em diacronia ou em sincronia, de contextos completamente heterogêneos (KOSELLECK, 2014, p. 9).

 

Nesse sentido, para Koselleck, a história moderna encobriu as múltiplas temporalidades, sendo tarefa dos historiadores e das historiadoras pensarem as múltiplas temporalidades da história. De acordo com Frank Ankersmit (2021, p. 44), para Koselleck, a escrita da história é, basicamente, a pesquisa de todas as tensões temporais provocadas pela contemporaneidade do não contemporâneo.

De acordo com Helge Jordheim, (2018, p. 294) a problemática posta por Koselleck acerca dos tempos históricos, trouxe o desafio – para as ciências humanas e sociais – de pensar as múltiplas temporalidades da história.

A teoria dos tempos históricos de Koselleck, pretende, então, possibilitar a tematização das temporalidades que foram subsumidas pela história totalizante construída pela Modernidade Ocidental. Dificilmente podemos pensar a Modernidade Ocidental, sem pensar no Colonialismo e no Imperialismo que a constitui. As narrativas historiográficas construídas pelo Ocidente não podem ser compreendidas sem considerar as suas relações de poder, isto é, a narrativa histórica Ocidental construiu uma história única do mundo, excluindo pessoas, grupos sociais e etnias do discurso histórico. O historiador Chakrabarty, assim como Koselleck, também compreende que a Modernidade Ocidental estabeleceu um padrão temporal a partir do qual todas as outras culturas foram inseridas.

Nesse sentido, a provocação feita por Koselleck sobre os múltiplos tempos históricos, pode nos levar a pensar nas histórias que foram subsumidas e ocultadas pelo tempo único do Ocidente. Aqui no Brasil, por exemplo, existem múltiplas temporalidades que estão submersas numa temporalidade única e homogenia. Então, exemplificando, como seria pensar uma temporalidade Ribeirinha? Como seria pensar uma temporalidade Yanomami? Para pensar em temporalidades distintas das quais estamos acostumados a experenciar, devemos, talvez, seguir o conselho de Reinhart Koselleck sobre os múltiplos tempos históricos. Nesse sentido, poderíamos aprender com as temporalidades encobertas da história, aquelas sobre as quais não concebem o tempo do progresso, da aceleração histórica e, sobretudo, da exploração desenfreada da natureza.

A Modernidade Ocidental encobriu as múltiplas histórias em uma temporalidade única. Portanto, já pensou em quantas histórias estão submersas na camada temporal universalizante do Ocidente? Assim sendo, a reflexão dos múltiplos tempos históricos nos leva a pensar numa abertura temporal para a história, isto é, na possibilidade de narrar e temporalizar outras formas de vivenciar o tempo. Pensar em múltiplos tempos, é pensar na diversidade humana, na alteridade histórica, na variedade e na pluralidade que compõe a história, ou melhor, as histórias.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ANKERSMIT, Frank R., Koselleck on “histories” versus “history”; or, historical ontology versus historical epistemology. History and Theory, v. 60, n.4, p. 36-58, 2021. https://doi.org/10.1111/hith.12235

GAUER, Ruth. Falar em tempo, viver o tempo! In: GAUER, Ruth (org.). Tempo e Historicidades. 1 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2016. p. 31-50.

JORDHEIM, Helge. Against periodization: Koselleck’s theory of multiple temporalities. History and Theory, v. 51, n. 2, p. 151-171, 2012. https://doi.org/10.1111/j.1468-2303.2012.00619.x

JORDHEIM, Helge. Camadas do tempo: Precondições históricas e semânticas para uma estratigrafia do tempo e da história. In: SALOMON, Marlon. (org.). Heterocronias: Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Ricochete, 2018, p. 291-310.

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo. Estudos Sobre História. 1 ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2006.

Koselleck, Reinhart; MEIER, Christian; GÜNTHER, Horst; ENGELS, Odilo. O Conceito de História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Salvador Dalí: A persistência da memória, 1931. Kumachenkova/Shutterstock.com.

 

 

 

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