para Deborah Furquim Coury
Don’t worry about a thing,
Cause every little thing gonna be all right.
Singin: don’t worry about a thing,
Cause every little thing gonna be all right!
Rise up this mornin,
Smiled with the risin sun,
Three little birds
Pitch by my doorstep
Singin sweet songs
Of melodies pure and true,
Sayin, (this is my message to you-ou-ou)
Bob Marley
Bailarino, como era mesmo aquela história que sua mãe contava? Havia um sujeito que trabalhava nas ruas de Santana num cruzamento de bondes. Ele ajudava as pessoas a atravessarem a rua.
Sua mãe, Sinkevisque, não falava pessoas. Na história que ela contava, bailarino orientava os transeuntes a atravessar, ele os ajudava. Crianças na saída da escola.
Como era mesmo aquela outra história que sua mãe contava?
Delegado. Delegado era o nome de um mestre-sala da Mangueira. Não era sambista, não era passista. Da ala de compositores Delegado não era. Sua mãe nem carioca era, mas torcia pela Mangueira de Cartola. Verde e rosa durante o carnaval ela era.
Na história que sua mãe contava, ela dizia:
– Eduardo, ele fazia par com Mocinha.
Não era com Deborah que ele dançava. Deborah, eu conheci na escola, no colégio, não no samba. Deborah é a bailarina que conheci e em conto cantei.
Mocinha era porta-bandeira… Isso já é terceira história das histórias que sua mãe contava.
No tempo das três histórias, em novembro, ainda não se vendiam panetones, como hoje. Essa iguaria doce era de fim de ano. Era vendida apenas a partir de dezembro. Vendiam-se panetones junto com bolos-reis. Panetone a gente comia no Natal e no dia de Reis. No dia dos três.
Bailarino, Delegado, Mocinha, o tempo lento do bonde, do elétrico, do ônibus. Hoje tempo apressado de hoje em que se vendem panetones antes do tempo, que se vendem ovos de Páscoa antes, muito antes da Páscoa, que tudo acontece antes e que o fim se antecipa.
Então, eu vou à cozinha apanhar um café e surpreendo dois sabiás-laranjeiras a bicar as bananas da fruteira. Já vi esse filme aqui em casa. Ele, então, não se chama Os Pássaros, nem eu sou Hitchcock. Um deles voou pela porta da cozinha que dá no quintal. O outro, menorzinho, ficou perdido, se afobou. Está agora na sala. Num canto entre um banco e uma bola azul que caiu aqui outro dia.
Os cães? Nem por isso. Mas dá para sentir os batimentos cardíacos do sabiazinho. Eles ecoam na casa. E seu medo? É meu medo. Isso não é a crônica de hoje ainda. Nem é literatura. Literatura será com o que farei com isso.
A crônica de hoje se ocupa de três bailarinos. Os pássaros são intrusos. Junto aos sabiás, parece, havia três bem-te-vis. Enquanto lavava louça os vi no telhado da edícula. Eles cantaram nervosos. Eu sorri.
Não sou menino passarinho, nem assim tão velhinho, mas trago no bolso três dançarinos. E, agora, a visão dos animais canoros, dos voláteis parece ter saído de meu braço esquerdo.
Junto com bailarinos e intrusos há um baterista. Wilson das Neves. Sujeito que outro dia me surpreendi o surpreendendo fortuitamente num café do Aeroporto de Congonhas.
– O senhor não é aquele baterista que toca com o Chico? Mas que compõe e tem carreira solo também? Seu Wilson?
Ele:
– Eu mesmo. Estamos aí. Tocando. Enquanto tiver milho fazemos pipoca.
Palavras dele. Não palavras minhas, não de Sinkevisque, nem de sua, dele, mãe.
Hoje, desci uma ladeira pensando na morte. Pensava: engraçado, desse mundo não se leva nada mesmo. Nem a ladeira que descemos. Egípcios antigos acreditavam levar coisas, bens para vida além-túmulo. Ao menos isso aprendemos na escola. Pensava enquanto descia: não conheço nenhum egípcio antigo para me dizer se há vida pós-túmulo. Precisava conhecer algum. Não acha?
Já que vivemos tempos antecipados, na produção da ansiedade, porque não ir logo para além-túmulo? Tempos mortos. Tempo morto.
Hoje, subi uma ladeira pensando: quem viveria arte o dia inteiro? Quem faria arte o dia todo, todo o santo dia? Ou qualquer outra atividade? Um obsessivo. No entanto, é preciso saber ser obsessivo, saber de obsessão. É preciso entender a obsessão. Nomeando-a, tê-la em mãos, nas mãos.
Sou obcecado por meu ofício. Por histórias. Volta e meia, delas me lembro. O tempo? Cinematografia imperfeita. O tempo? Modos de nos fazer ansiosos.
Bailarino trabalhava dançando, tamanha era a leveza sem pressa, nem antecipação, de sua experiência, seu fazer.
Delegado trabalhava dançando, tamanha suavidade de seus movimentos.
Mocinha trabalhava dançando. O pavilhão de sua escola em seu corpo tremulava.
Sua mãe, Sinkevisque, contava…
Panetones, hoje, fermentam e se vendem mais cedo, antes do tempo.
Quem descerrar a cortina da vida da bailarina há de ver cheio de horror. Ademais, alegria é qualquer coisa. Escudo, resistência. Alegria é referência, para mim, lituana. Para outros, portuguesa.
Eu disse alegria. Não disse felicidade. Felicidade é estoica. Coisa antiga. Tem a ver com bem-comum, coisa de República, de coisa pública. Não essa vida privada devassada, exibida, fotografada, publicada, antecipada de hoje.
Quando eu era criança, tinha um caderno de linguagem. Eu era lento nele. E me demorei a me apropriar do simbólico. Mas, me lembro também, mais tarde, que quando aprendi metáfora, saí correndo. Saí fazendo.
Os pássaros eram três. As histórias três. No caderno de linguagem, ladeira acima, ladeira abaixo, abrir as páginas era, e ainda é, abrir as asas.
Bailarina mesmo, a menina do colégio, sua sensibilidade. Mas essa eu vi, eu conheci, ninguém me contou. Essa estudava dançando, tamanha habilidade. Tamanha disposição de alma, talento.
Essa vivia dançando porque dançar era sua arte. Ela vivia para dançar e dançava como ainda dança, para viver.
Quem descerrar? Quem sob asas? Quem pousará sobre estas histórias contadas? Alguém que baile comigo. Alguém que me fotografe.
Créditos na imagem: Fernando Rozano, Tempo abstrato (abstract time).ChronosFeR2
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Eduardo Sinkevisque
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