Caracas, 03 de dezembro de 18: Nestes dias eu tenho saído muito pouco de casa. Tem sido difícil me adaptar à situação no meu país e, bom, a minha casa está sendo o melhor refúgio para mim. No entanto, hoje tomei coragem para acompanhar a manifestação da “intersectorial”, uma frente formada por distintas organizações trabalhistas e alguns movimentos sociais que tentam se constituir num espaço de luta pela defesa dos direitos sociais. Na intersectorial, por exemplo, participam as enfermeiras do Hospital Clínico Universitário, as quais desde o ano passado têm levado à frente uma luta importante pelo reconhecimento das suas reivindicações salariais e por melhoras nas condições do próprio hospital. O interessante da luta das enfermeiras do Clínico é a coragem com que essas trabalhadoras têm tido para, por um lado, se manterem em pé todos esses meses diante das medidas punitivas do governo e, do outro, impedir serem utilizadas por alguns dirigentes da oposição da direita.
Depois de fazer algumas tarefas de casa e passear à Negrita, eu fui para a manifestação. Era a minha primeira saída no mundo social caraquenho e com certeza eu iria encontrar pessoas conhecidas. Ao chegar na Av. México, justo na saída do Metrô da estação Belas Artes, estava passando o protesto. Subi num banquinho para dar uma olhada e, do nada, apareceu alguém correndo em minha direção. Era a Kika! Uma dessas irmãs que a vida tem me dado! Ficamos coladas num abraço interminável, acompanhado por lágrimas de alegria, de saudade, de parceria, de estarmos no mesmo lugar!
Daí para frente, a Kika e eu marchamos juntas e abraçadas! Embora a manifestação estivesse com poucas pessoas, a emoção e a alegria perpassavam cada um dos que participavam dela. Esses sentimentos tinham uma razão: era a primeira vez em muito tempo que um conjunto de organizações, movimentos e pessoas de diferentes setores coincidiam e se juntavam num protesto trabalhista e independente. Infelizmente, na história política recente no meu país as cooptações, o silenciamento e a repressão das lutas –quer pelo governo, quer pela oposição da direita– têm sido o traço distintivo. No entanto, eu tinha sentimentos conflitivos. Eu sentia alegria, sim, sentia alegria e grande emoção por ter-me encontrado com velhxs e queridxs amigxs e por caminhar junto com aqueles que, sendo minoria e estando em contracorrente, tentam fazer audíveis as vozes que o barulho polarizado impede. Mas também sentia um pouco de mágoa pelo fato de sermos tão poucos…
Quase na frente do Ministério Público, as forças de choque da Policia Nacional Bolivariana fecharam o passo da avenida. Mas não houve confrontos. Decidiu-se acabar o protesto com um comício na Praça Parque Carabobo. Ali, enquanto escutava o que o pessoal falava, passou a Aurélia. Estava há muito tempo sem vê-la! Está tão magrinha! Abraçamos-nos muito forte e, depois do abraço, ela me falava sobre a satisfação de me encontrar ali, na manifestação.
Aurélia e eu estamos unidas pelo laço de militância dos nossos pais, mas nós também criamos os nossos próprios. Foi lá na época em que ficávamos na Terra de Ninguém na universidade, dissertando sobre o Bakunin e o Kropotkin e achando no anarquismo uma opção política autenticamente libertária.
Ela estava indo para a sua casa e decidi ir junto com ela. No trajeto, ela me contou sobre sua situação. Para conseguir subsistir e ajudar os seus pais, ela tem três trabalhos, então não tem quase tempo para o descanso. Aí me contou que o pai dela estava há vários meses esperando para ser operado do coração e que, além disso, estavam precisando de cinco mil dólares para comprar um marca-passo usado. Fiquei triste e com vontade de passar mais tempo com ela.
Enquanto nos despedimos, passaram as minhas amigas feministas das Comadres Púrpuras e me convidaram para tomar uma cerveja. Eu não tinha dinheiro e falei que não poderia acompanha-las. Elas perceberam o motivo e disseram:
– Que isso, Lívia! Vamos lá! Nós compartilharemos a cerveja.
Então fomos para “los chinos” (os chineses sempre têm as cervejas mais baratas) e, batendo papo enquanto tomávamos a cervejinha. Um dos encontros mais lindos e inesperados. Falando sobre minha estadia no Brasil e contando um pouco da minha pesquisa, uma das comadres comentou:
– Eu fui protagonista no Caracazo! Eu estive nas escadas de Mezuca, lá em Petare, quando o exército disparou e assassinou um monte de pessoas e o padre Matías Camuñas nos salvou. Eu militava em Bandera Roja nessa época e nós, que éramos do movimento estudantil, fizemos protestos nesse 27 de fevereiro contra o aumento das passagens.
Todas estávamos atentas à conversa da Magaly. E com a nossa cerveja compartilhada, brindávamos o encontro. Saúde!
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