ZIZEK, Slavoj. Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo. São Paulo: Boitempo, 2020. (133 pgs)

 

Em Pandemia temos uma versão menos prolixa de Slavoj Zizek. O ensaio aparece num momento ainda conturbado de dispersão do covid-19 e aumento do número de mortes em várias regiões, sobretudo, na Europa, Estados Unidos e América Latina. A premissa central do filósofo esloveno suscita controversas: a ruptura traumática provocada pelo novo vírus acendeu uma alternativa para reinventarmos a lógica do comunismo. Homens e mulheres de diferentes nacionalidades, status, etnias e religiões se viram abruptamente “no mesmo barco”, enfrentando um inimigo invisível cujo poderio catastrófico lhes exigiam uma reavaliação dos padrões de convívio até então vigentes em sociedade. Quais as posturas de estados, governantes, organismos internacionais e sociedades civis quando a sobrevivência coletiva parece estar ameaçada? Uma indagação que nos levaria a uma aposta limítrofe: comunismo versus barbárie.

No prefácio à edição brasileira, o filósofo e psicanalista Christian Dunker expõe a interligação entre as noções de epidemia e comunismo, apresentando os cálculos perigosos que emergiram dessa mistura explosiva. O ponto zero da epidemia, por assim dizer, foi a cidade chinesa de Wuhan, o que repercutiu tanto em teorias da conspiração quanto no acirramento da xenofobia. Falou-se no isolamento e boicote contra a China, além de um eventual plano comunista para afligir a economia de livre mercado: uma “revolução” silenciosa e criminosa. Antes, porém, de sucumbirmos as leituras superficiais e ideológicas dos eventos, Christian Dunker nos adverte que Slavoj Zizek explora o domínio sensível da crise que atingiu a sociedade chinesa, visto que as medidas de confinamento trouxeram todo um clima de desconfiança sobre a carência de comunicação oficial e o número crescente de perdas humanas. O controle do Estado sobre a liberdade das pessoas encerrava uma dubiedade, afinal, a proteção da vida significava o sacrifício da economia. Daí, o covid-19 estaria levando a humanidade a um questionamento moral inevitável: vida versus mercado?

Um dos pontos centrais discutidos por Slavoj Zizek é o “vírus da ideologia”. A pandemia colocou em xeque as regras do regime comunista chinês. O aparato burocrático elitista e extremamente sectário não foi capaz de criar mecanismos de prevenção e combate à irrupção da doença. Pelo contrário, a postura fechada dos aparelhos de comunicação, os quais acostumados a restrição e censura de informações consideradas perniciosas, ecoaram no distanciamento ainda maior entre Estado e trabalhadores. O silêncio do Partido Comunista e o controle da liberdade de expressão repercutiram numa enxurrada de notícias fakes, gerando medo e insegurança local. A crise interna se alastrou no interstício entre o que era boato e o que era verdade, num círculo vicioso que em pouco tempo geraria uma paranoia global de suspeição sobre a China e a eficácia (ou não) de seus modelos de tratamento do vírus.

Não há qualquer condescendência em relação aos dogmas do regime político chinês. Postula-se, inclusive, que uma gerência de viés democrático, de socialização de informações e combate as fake News, poderia ter evitado a explosão do percentual de infectados e, hipoteticamente, sua escalada em nível global. Um sistema autocentrado e repressivo revelou uma população em pânico, que, na esteira da psicanálise, distingue um horizonte coletivo de medo, angústia e desamparo. Não é certo, por outro lado, recairmos numa leitura maquiavélica que transforma o outro em “bode expiatório”. A China amarga enorme prejuízos materiais e humanos em decorrência da covid-19, e as medidas extremas de controle populacional alertaram a comunidade internacional sobre a importância decisiva da intervenção estatal (isolamento, aquisição de prédios e equipamentos) em circunstâncias deveras excepcionais.

O que Slavoj Zizek postula é a garantia inegociável da liberdade individual em termos de interlocução com as diretrizes estatais, sobretudo, numa sociedade chinesa que viu suas liberdades de pensamento, de crítica e de reunião serem estranguladas por uma ideologia oficial. O desaparecimento de personalidades públicas cujas opiniões iam na contramão das diretrizes do Estado, bem como a perseguição a grupos de estudos sobre teoria marxista nas universidades, demonstram um imperativo de reinvenção do comunismo. Seria preciso absorver o golpe viral na forma de uma mudança paradigmática nas relações humanas, construindo redes horizontais de trabalho e ajuda mútua que reforçasse a confiança coletiva nas autoridades e vice-versa.

Mas a “reinvenção do comunismo” não se restringe aos parâmetros chineses. O covid-19 representou uma ruptura traumática nas sociedades ocidentais como um todo, levando-as obrigatoriamente a repensar as “verdades” petrificadas da economia de mercado e seu corolário de exploração humana e ambiental. Trata-se de reimaginar a lógica igualitária e distributiva do comunismo a partir das próprias expressões de sentimentos humanos que foram liberados no momento de crise sistêmica: solidariedade, reciprocidade e humanismo. De acordo com o filósofo esloveno, o planeta experimenta um evento catastrófico que não pode ser combatido de forma individualista e rasteira. Evento este que pode ser prenúncio de outros fenômenos imprevisíveis. Depois da negação (rejeição populista da pandemia), raiva (identificação do bode expiatório), negociação (tentativa de minorar os danos) e depressão (abatimento pelo estado real das coisas), estaríamos chegando a quinta e última fase desse confronto: a aceitação. Aqui, a humanidade opta pela normalização da vida, isto é, o pessimismo que aceita a “necropolítica” da sobrevivência dos mais aptos ou incorre para uma inédita mobilização, que se ajustaria a partir de um idioma comunitário.

A resposta desejável para a comunidade internacional é a urgente superação da “máquina de governos individuais”:

(…) ela deve englobar tanto a mobilização local de pessoas fora do controle estatal como a coordenação e colaboração fortes e eficientes em nível internacional. Se milhares de pessoas tiverem de ser hospitalizadas por conta de problemas respiratórios, será necessário um número incrivelmente maior de aparelhos respiradores. Para obtê-los, o Estado deve intervir diretamente, da mesma forma que faz em condições de guerra, quando são necessários milhares de armamentos, e deve contar inclusive com a cooperação de outros Estados. Como em uma operação militar, as informações devem ser compartilhadas e os planos totalmente coordenados – é apenas isso que quero dizer quando falo no “comunismo”.

Slavoj Zizek está falando de um novo conceito de comunismo apto a gerir as relações internacionais após o trauma epidêmico. É a demanda pela superação do Estado-nacional e seus interesses azados, movendo-se o pêndulo da globalização para um sistema de viés colaborativo e de apoio mútuo. Uma inter-relação entre comunidades locais, estados nacionais e agentes internacionais cujas dimensões atacariam a ideologia de mercado populista que versa que “as medidas para tratar o vírus que não podem ser piores que o vírus”. Essa lógica mercadológica pressupõe o tratamento de pacientes jovens (e, portanto, produtivos) em detrimento do “desperdício” de recursos para salvar a vida daqueles incluídos nos grupos de risco (hipertensos, diabéticos e idosos), logo, não produtivos. Um passo inicial seria a criação de uma rede de comunicação entre autoridades e trabalhadores, diminuindo consideravelmente os ruídos das fake News e da desconfiança. Junto a isso, uma coordenação mais global sobre uma nova disciplina do corpo (higiene, isolamento etc.) e de trabalho cooperativo.

Reinventar o comunismo significa também repensar a produção e (re)distribuição de alimentos e implementos de trabalho, desfazendo-se do consumismo e do animismo de mercado (“mercado nervoso e histérico”) em prol da sobrevivência coletiva. Para Slavoj Zizek, essa ameaça global requer uma postura de investimentos e confiança na ciência, contrariando os extremismos do negacionismo e das crenças abstratas. As sociedades ocidentais se viram compelidas a adoção de medidas taxadas de comunistas. A crise médica, econômica e mental reforçou a importância da intervenção estatal nos serviços básicos (energia, transporte, saúde), além da adoção da renda básica universal e nacionalização de prédios e equipamentos. A fragilidade do sistema capitalista global ficou exposta de forma irreversível, reintroduzindo nos discursos de organismos supranacionais a emergência de uma rede global de saúde e a ruptura das diferenças interestatais em prol do bem comum. O que inclui o atendimento das necessidades do Terceiro Mundo e uma atenção redobrada a problemática dos refugiados sírios (entre outros) na Europa. Hora de os Estados trabalharem na contramão do isolacionismo da política externa e do recrudescimento do racismo.

É aqui que entra meu “comunismo”, que não é nenhum sonho obscuro, mas simplesmente um nome para o que já está ocorrendo (ao menos sendo percebido por muitos como uma necessidade), para medidas que já estão sendo consideradas e até mesmo aplicadas em parte. É preciso não apenas que o Estado assuma um papel muito mais ativo – organizando a produção de materiais e equipamentos urgentemente necessários ( como máscaras cirúrgicas, kits para diagnóstico e respiradores), apropriando de hotéis e outros resorts, garantindo o mínimo de sobrevivência a todos os novos desempregados e assim por diante – como que tudo isso seja feito ignorando os mecanismos de mercado. (…) Mais duas coisas já estão claras a esta altura. O sistema institucional de saúde terá que contar com a ajuda de comunidades locais para cuidar dos fracos, dos idosos etc. além disso, na outra ponta, terá de ser organizada algum tipo de cooperação internacional efetiva a fim de produzir e compartilhar recursos – se os Estados apenas se isolarem, guerras vão estourar. É isto que estou chamando de “comunismo”, e não vejo alternativa a isso que não uma nova barbárie. Até que ponto ele vai se desenvolver, não sei. Só sei que por toda parte é perceptível o sentimento de que ele é uma necessidade – e, como vimos, ele já está inclusive sendo levado a cabo por políticos como Boris Johnson, que certamente não é nenhum comunista.

O livro se encerra com outros dois pontos de extrema importância para compreendermos a dimensão da crise hodierna. O primeiro se refere a “lógica do trabalho”, tendo em vista que a pandemia acionou a ótica do exercício profissional solidário e benéfico à comunidade. Homens e mulheres que se dispuseram ao desgaste físico não mais em busca do carreirismo ou do rendimento empreendedor, mas antes visando atenuar a aflição dos pacientes e expandir a capacidade de atendimento hospitalar. A primazia do individual perdeu espaço para a referência do coletivismo, numa experiência psíquica de sobrevivência que nos indagou sobre os sentidos de um trabalho racional e comunitário. Por fim, a crise liberou o que Slavoj Zizek denominou de “novo agenciamento”, ou uma forma original de comportamentos e crenças humanos que é capaz de alterar significativamente nossa cruzada invertida rumo a crise ecológica, climática e ambiental. O distanciamento social adotado como medida preventiva, ao invés de recair sobre um individualismo egocêntrico, denota igualmente uma atitude de respeito, responsabilidade e fortalecimento de vínculos afetivos. O próprio “estado de exceção” generalizado, tal qual alardeado por Giorgio Aganbem, se mostrou como uma tentativa de mudança de hábitos em privilégio da vida do “outro”. A pandemia gestou uma escolha pela empatia da sobrevivência, numa escala interacionista entre local e global nunca vista. O filósofo conclui seu ensaio com uma espécie de nova antologia do ser social: o vírus não é apenas biológico, pois solicita a resposta propositiva de uma multiplicidade de atores sociais e estatais no âmbito político, ideológico, espiritual e produtivo. Ou a humanidade acata a esse pleito de mudanças estruturais ou em breve pagará um preço altíssimo pela sua estupidez econômica: um extermínio sem escalas.

 

 

 


Créditos na imagem: Slavoj Zizek. Reprodução.

 

 

 

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