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Resenhas

Uma (re)escrita Em suspensão

Carta de Chico Gouvea para Guaracira Gouvea,

Rio de Janeiro, 24 de abril de 2023

Querida mãe,

Faz alguns anos que não escuto o som da sua bengala ou da sua risada ao assistir um dorama. Sendo sincero, são delas que sinto falta. Não que minhas memórias mais antigas não sejam importantes, mas são essas imagens, do fim de sua vida e começo da pandemia, que me procuram com carinho nos dias de hoje. Tive mãe. Sinto falta da avó que você era e, de alguma forma ainda é, para meu filho, filha e sobrinhos.

De lá para cá, tanta coisa mudou permanecendo a mesma, só que em suspenso. De tanto desejar a volta à normalidade durante os longos anos de isolamentos desiguais, assim como é desigual nossa normalidade, não tivemos luto ou qualquer processo de cuidado com o que foi vivido durante a pandemia. O sentido mais importante do livro do Eduardo sobre o qual te escrevo é justamente esse: ele toca nesse momento que, ao permanecer em suspensão, ainda não é exatamente passado, sem ser presente ou ter um futuro. O que vale para a pandemia, vale para a presença do fascismo entre nós, outro tema importante do livro e das nossas vidas.

Sobre esse segundo, o fascismo, é verdade, você me preparou. Aprendi em casa sobre o que era um P2 ou como me portar numa manifestação. Talvez por proteção, talvez por herança. Sobre a primeira, a presença do Rei no corpo – Omolu – também aprendi algo contigo. Ao te acompanhar de perto na luta por manter seu corpo vivo pelo exercício da vontade (o parkinson impede diferentes movimentos que fazemos de forma automática), entendi que sem força não há vida e que o suposto automatismo do cotidiano é uma ilusão frágil. Mas essas são lições de uma mãe para um filho que não alcançam a vida pública da forma como aquele tal vírus e aquele tal fascista alcançaram. Não alcança até que alguém as faça uma carta e, no lugar de dirigi-la para uma leitura íntima, faz delas matéria pública. Aliás, como foi e é o livro do Edu.

É estranho.

Quer dizer, o Ustra foi um torturador consagrado, o Boilesen um agente civil financiando militares. Pra gente essa não é apenas uma história do Brasil, mas da nossa família. Para nós, os torturados ou exilados têm nome, amor e corpo, não são apenas historiografia, somos nós. Da mesma forma, os números de mortos durante a pandemia não são números, eles têm o seu rosto, cabelo e o cheiro tão vivo na memória da minha irmã.

A gente sente muito sua falta.

A possibilidade de escrever para quem não está mais ao nosso lado é uma das muitas artimanhas que o livro do Edu mobiliza. Ainda que ele não goste desse conceito, acho que, assim, fala de cura. É também uma forma humilde de compartilhar erudição. Mas há algo mais aí.

Imagino, agora, que enquanto eu lia o livro você também o fazia, e, por isso, deve ter notado quantas aberturas têm nele para que cada leitura possa participar. Numa primeira impressão, na medida em que o livro é composto por cartas trocadas entre amigos ou ex-amantes, a distância entre leitura e texto é enorme. Como se a sensação de observar de fora um diálogo íntimo apenas reafirmasse que quem lê não faz parte dele. Mas, no correr do tempo acontece o contrário, de tanto ler, vamos nos tornando íntimos de Mariana, Emanuel e Thiago. O Edu, acho, se esvai propositalmente, como a presença da perspectiva diluída num quadro impressionista. Ela está lá, mas não a vemos focada.

Mas não quero tomar seu tempo. Desenho e compartilho uma imagem.

Não sei muito bem como são as coisas desse lado que agora você habita, mas imagino que você, livre do parkinson, deve estar movimentando o que é possível e o impossível, provavelmente assustado, deve estar fugindo para algum lugar inalcançável. Melhor assim. Que a sua guarda sobre quem vive nos afaste dele. Justo por isso, por você na verdade, escolhi não fazer uma resenha do livro do Edu como se falasse de fora, mas uma resenha que (re)faz o livro do Edu como se fosse meu, ou melhor, nosso. Não há ali uma voz autoral que fale sem interlocuções. A diferença é que eu sei que de você não virá uma resposta, o que não impede que eu a escute.

***

Carta de Brás Cubas para Chico Sousa

Rio de Janeiro, 23 de agosto de 1880

Ao contrário do livro em que constam minhas memórias, que você me confirmou consagrado, essa carta não começa com nenhuma hesitação, ainda que ache curiosa a coincidência. De fato a hesitação abre tanto minhas memórias póstumas quanto o volume de Em suspensão que chegou até mim. Por um momento, pensei que era uma citação. Depois, vi que não. Foi apenas uma feliz coincidência ou talvez um pecúlio, referências comuns. Delas adianto duas advertências. Não falarei dos livros, uma vez que já os leu, mas sim de sua singela carta perguntando minha opinião. A leitura talvez espere um estilo próprio, como se essa carta fosse continuidade das memórias e, assim, teríamos interlocuções ou algum tipo de recurso vivo em minha escrita póstuma. Sinto muito, não os terão. Essa é uma correspondência íntima e o estilo segue a natureza da ideia fixa que me acompanhou ao túmulo. Feito dela, vamos ao diálogo.

Todo o volumoso debate feito por você sobre a “morte ou não” da autoria, as ambiguidades do ficcional no tal livro, quais pactos de leitura estão em jogo ali, como se dá a recepção de uma carta… na verdade, soa interessante para quem escreve. De tudo, destaco apenas que considero um progresso que, nos seus dias, tão diferente dos meus, os autores estejam mortos. Por favor não pense em qualquer desejo de vingança ou retaliação pelo fim que um deles supostamente me destinou. Aliás, não pense em sentimento de qualquer tipo. Trata-se de uma questão de cuidado. Cuidado com as ideias, digamos assim.

De tudo o que experimentei, a autoria é ideia das mais frágeis. Afirma singularidade e pessoalidade onde não há nenhuma. O pior, faz crer coerência. Um texto, ou uma obra, poderia passar pelos caminhos mais absurdos, contradizer-se explicitamente e, ainda assim, caberia a pobre leitura, em busca da coerência das partes com o todo, construir os sentidos que faltam, feito um cristão a preencher de fé os vazios de um texto mais traduzido do que escrito. Tudo garantido pelo gesto de alguém, talvez o espírito santo, ter assinado o dito texto. Quando a coerência é impossível, falam-se coisas como “textos da juventude” ou se divide a obra em partes arbitrárias. Como se a biografia de quem escreve dissesse alguma coisa do texto escrito. De fato diz, só que nunca saberemos. É uma espécie de fuxico entre surdo (o texto, que fala sem escuta) e mudo (a leitura, que nada pode retribuir). Esperar dele qualquer conclusão é tão útil quanto esperar objetividade em minhas palavras.

Ainda assim, sendo objetivo, enquanto objeto dedicado a fins pecuniários, lucro você chamaria, há tremenda ambiguidade. A autoria supostamente garante retorno a quem escreve, mas quem de fato lucra são outros. Siglas ou nomes sem qualquer sentido – isso o meu e o seu tempo carregam de igual – são as marcas que de fato alcançam algum resultado. Livrarias ou editoras, com o argumento de trabalhar com quem escreve, toma deles o pouco que teriam. Aos tais autores, sobra um tipo de prebenda proporcional ao quanto seus livros venderam, percentagem você falaria.  Responsabilidade jurídica sim, cabe certamente a quem escreve. Já o abstrato dinheiro…

Agora, vamos ao mais importante. Meu desacordo com sua leitura.

O que me espantou no livro que me enviaste foi uma certa ingenuidade no gesto de escrever para autores, vivos ou mortos, tanto faz. Parece que esse gesto te enganou. Posso falar com propriedade que não há ninguém mais ficcional do que o tal Machado de Assis, figura sem muita graça, acrescento. Eu, mesmo morto, acompanho a vida de tantas leituras. O correto seria o avesso, reconhecer as personagens como autoras e as autorias como personagens. Afinal, cabe a mim, mas no geral ao conselheiro Aires, a matéria prima da qual se inventa essa personagem chamada Machado de Assis. Tudo consequência da infeliz ideia, a tal autoria.

Muito mais sagaz, concordo contigo, foi a diluição progressiva de Eduardo ao longo do livro. Cada vez menos autor, cada vez mais construção do diálogo e, assim, das vozes outras. A tentativa de usar sua condição de nascimento, a falha em um dos olhos, como desvio que impossibilita que ele se enxergue (e assim nós também), vale menos do que a voz de Mariana, aliás, minha autora predileta. Foi pela voz dela que imaginei a tal personagem, o autor Eduardo. O que ele fala de si nas cartas me parece sem força até que o diálogo se estabeleça. Calma. Isso não é um problema do livro, mas uma de suas forças.

Sobre a pandemia, imagino que teria sido um momento no qual minha ideia fixa, o emplastro, teria alcançado resultados impensáveis: sucesso total; ou fracasso absoluto. Afinal, nada mais interessante do que vender um emplastro frente uma doença em pandemia lida como falsa. Pior que uma doença em escala planetária, é a capacidade de duvidar da sua presença. Em meus piores dias, não conseguiria imaginar uma história tão bizarra! De tão absurda, tirou a graça da hipocondria que, na vida adulta, tanto me fez companhia. Dos meus tempos de vivo, sigo com saudades do medo da morte, pelo menos até que alguma outra desventura do teu mundo me tire o que me resta de sentido.

***

Carta de Mariana para Francisco Gouvea de Sousa,

xxxxxx, xxx de xxx de 2024

Caro Francisco, para além do ano, não te darei nenhuma informação. Que você se sinta íntimo por conta da leitura desse livro do Edu, já soa ingênuo, mas supor reciprocidade, imaginar que eu iria te tratar como se te conhecesse… não sei o que dizer. Também não faço gosto de trocar correspondências com um amigo de um ex-namorado, agora coautor. Mas, ainda assim, aqui estou.

Aposto que o tom da minha carta pode soar um tanto irritado ou até com certa raiva. Saiba que tudo isso é projeção sua, assim como boa parte do que o Edu falou sobre mim. Considerações que falam certamente dele. De mim, resta apenas indiferença, ao ponto que não te direi mais nada e tudo que segue é, novamente, endereçado ao Edu e ao suposto romance.

É verdade que servi a diferentes propósitos no livro. Fui um caminho para que o passado não se resumisse a saudade, nem necessariamente ausência de futuro, mesmo quando não há horizonte. Para falar do meu lugar, seria necessário inventar um tempo verbal pelo qual do futuro se veria o passado como um outro futuro possível, como na constante imagem mobilizada por você Edu: “seu eu soubesse…”. A impossibilidade de qualquer temporalidade conhecida até então ganhou sentido enquanto espacialidade, em uma palavra: estrangeira. O fato de circular por outras cidades e outras línguas ao ponto de perder a minha, apenas multiplica essa condição. Sem tempo possível, fui descrita fora do espaço e inscrita em territórios outros. Alguém fora de sua nação, fora de sua língua, fora de sua existência definida pela voz de um outro. Mas não é isso que os homens fazem com as mulheres? De todas as ferramentas que você dispõe, oferece o que a cada personagem? O que resta a mulher desse nosso livro?

A poesia oferece ao futuro pai, Thiago. A amizade e a memória de poemas decorados são revividos pela singela imagem de uma criança que, como um futuro de um momento sem expectativas possíveis, floresce num ventre sequer mencionado. O anonimato da mãe fala o que nesse nosso livro? Ou será que você queria evitar esse lugar? Difícil falar da mãe?

A alienação você oferece para Emanuel. Um professor apaixonado pelo céu, uma astronomia que mais parece nostalgia. O que faz um astrônomo a procurar sentido profundo nas estrelas se não astrologia? Ele fala em conjunção sem nem saber que signo estava, mas, ainda assim, feito Kepler, a buscar algum sentido. Melhor teria sido se Emanuel fosse, de fato, astrólogo.

A mulher, você oferece a memória de uma flor que ornava com presença e cheiro. Machista, diriam algumas. Diria que não por outros motivos. Sem falar do fim ou de deterioração, a flor me lembra meus jardins. Se o possível está em suspensão, o impossível talvez não seja tão diferente desse meu jardim.

O que ficou sem ser dito é que a resistência na troca de cada correspondência foi o meu papel principal. Um livro que trai a sua condição de livro, pelo menos enquanto expectativa de unidade ou de coerência entre a parte e o todo. Uma vida íntima que se lança ao público depois do fim da intimidade. Uma história fora do tempo e do espaço que recebe alguma forma pela sútil delimitação de uma correspondência: dia e local: nada mais.

O que nos resta?

O que resta de nós?

Futuro?

Passado?

Talvez as defasagens de tempos e diferenças de sentidos e afetos em cada carta seja o melhor do livro, assim como da vida. Ficamos, em parte, congelados nesse não-lugar, essa utopia de ser o que não é mais. Que me desculpe o ocidente, mas o não ser é e, por muito tempo, será.

Há beleza nisso.

De minha parte, esqueço os muros das cidades e fico com as lembranças do jardim.

Flores (sobre)vivem Em suspensão

 

 

 


Referências:

FERRAZ, Eduardo Felippe. Em Suspensão. 1. ed. Paraná: Kotter Editora, 2023

 

 


Créditos na imagem de capa:

https://madamepsicose.substack.com/p/em-suspensao-cartas-em-meio-ao-caos

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