Por volta das meias-noites quem haveria de dizer que as janelas estavam acesas para o vento mais austral da cancela, onde a divisória da porta sempre rangia assombrosamente nos meses de agosto, mas também onde o frescor do descampado finalmente se fazia sentir, quem haveria de dizer que justo naquele dia, às meias-noites, meia dúzia de ratos roeriam o queijo coalhado e três dúzias de insetos marcariam a blusa há horas quarando. Menino não foi lá pegar, sujeira ficou, o rato roeu. Diluviado o abril daquele ano inumerável, pico da água e da doença mortal, o campo não ficara que verde. Ninguém mais morria de fome nem de sede, a fartura dava para muitos e mais os bichos, que ocupam espaço nosso e morrem também, como a gente. O tempo de colher já é vindo, leite delgado das vacas é fruto das mãos, que delas lhe tiram morna sede branca e sevícia vermelha. Nada é mal e tudo se transforma na lavoura arcaica.
O tempo é para lá dos abris, mas a memória de agosto já era presença sem chegar chegando. Era o vento, era a chuva, tudo de ano findo. Mas era agora porque agora era a hora da doença exangue e excruciante das bandas da China, onde fica isso. Mas quem perguntou era aquele que escreve e já se esquece. O menino era a história, só lhe cabia tirar a roupa branca de azulzinha da cerca divisória das reses e cuidar do queijo acobertado de moscas. O menino é historial porque já não há alma mais relevante no rancho. O tempo já é vindo de todos morrerem. E morreram, sem promessa.
Para as bandas de Sobral ficaram pedras no caminho dos carros, tão leves, tão cortantes nos antigos pastos, nada não nosso, meu deus. Que era a nova CE, cê, marca de ferro de perder de vista o boi arranchado, latifúndio de gente braba, meu deus, que não comprava os modos de quem anda no carro na CE, rumo a Sobral. Land Rover do professor sanitarista de não sei que instituição, latifúndio das letras e saberes, território dos livros, mas nem isso. Cortava o solo de meu deus com borrachas do Norte e posseiros de Inglaterra. Tudo que só a vista alcança é o céu azul marinho, nuvem que é campo de algodão, coisa brilhante que invade os corpos. A cidade é vazia, gente não chega mais, só os carros. Há pouco levaram daquele rancho os pais do menino danado de esquecido das moscas e dos ratos, bem mortos coitados, sem propriedade que os valham as carrancas. Onde morrer não se cuida, só se avança esquecido, que é a forma da vida. Há de trabalhar, isso é certo. Menino não viu, se foram todos.
O médico era homem esperto, cabelos brancos proféticos, bastão de alumínio de itatiaia e cobre de sei lá que plaga, a conferir os tecidos de rosto que se pegam às ventas espirradeiras. Era poderoso em contas da prefeitura e do capitão no sertão dos países. Branco em pintas pretas, velho e pesado em trajes sem andrajo dos mortos novos a chegar despejados. Cuidava de ordenamentos, que era distante, como um boi danado, embora esse se enlace sem volta. Mas este cabra, de velho que era, só lhe restava morrer. Mas não morria. Os meninos todos hão de morrer, que o sacrifício é sangue novo, cordeiro vitelo.
Gente pobre, meu deus, gente fria nos buracos quentes. Gentes enterradas com o sol dentro das valas, a escurecer para sempre. Há povos no latifúndio das vilas e cidades em igual maneira mortos e ressuscitados, que gente nasce a valer. Há menino, dimensão de leito novo a sangrar da terra preta, molhada, em pesado brejo. Há menino e haverá de haver menino a chegar da dor de mulher, o grito dos viventes todos de uma vez prometidos. Mas isso é antigo. Valerá por todos nós a chegada recuada nos obituários brancos, mas chegará um sangue mais sangrado, que tudo expia.
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