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Além do olhar: as artistas do Brasil

Zina Aita: sobre o potencial de metamorfose na trajetória individual

Tereza Aita (1900-1967), ou Zina Aita foi uma artista plástica nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais. A artista iniciou sua formação na Itália, país de onde viera sua família e, de volta ao Brasil, participou de importantes exposições no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte – esta última, apontada como um dos marcos iniciais ao desenvolvimento da arte moderna em Minas Gerais. Ao lado de Anita Malfatti (1889-1964) e de outras personalidades, esteve presente na Semana de Arte Moderna de 1922 e, mais à frente, retornou à Itália, onde passou a se dedicar à cerâmica. Embora sua participação na Semana de 22 tenha sido amplamente noticiada e comentada pela imprensa, nas décadas que se seguem ao evento, é possível verificar que sua figura não obteve o mesmo destaque de suas colegas modernistas Anita e Tarsila do Amaral (1886-1973). O questionamento acerca dos rumos da trajetória de Zina Aita é objeto central do texto do historiador Alexandre Ventura, publicado no site do Palácio das Artes, instituição que integra a Fundação Clóvis Salgado em Belo Horizonte. Nosso objetivo, para o presente texto, é tratar de um conceito que consideramos fundamental ao estudo da trajetória individual, o potencial de metamorfose. A hipótese para esta breve pesquisa é a de que as mudanças movidas por Zina no que diz respeito à sua trajetória tenha gerado uma quebra de expectativas, isto é, por não ter seguido trilhas semelhantes às de outros modernistas, sua atuação permaneceu pouco discutida. Teremos como aporte teórico a obra Projeto e Metamorfose (2003), do antropólogo Gilberto Velho (1945-2012) e, como fontes, nos utilizaremos de publicações e outros textos referentes à artista no período que compreende a década de 1920 até o falecimento de Zina, na década de 1960.

Para Gilberto Velho, a trajetória do indivíduo moderno pode ser compreendida enquanto projeto social, isto é, como uma “conduta organizada para atingir finalidades específicas” (VELHO, 2003, p.101). Para que esta conduta seja direcionada, é preciso que se considere o campo de possibilidades disponível naquele contexto, o que quer dizer considerar quais oportunidades e recursos são capazes de viabilizar o projeto social – no caso, o individual. O campo de possibilidades também está relacionado a outro conceito central na pesquisa de Velho, o potencial de metamorfose. Ao nos deparamos com fatores externos que venham a representar obstáculos ou desafios à concretização de um ou outro objetivo, a nossa capacidade de adaptação entra em cena, movendo a trajetória a soluções ou a outras direções. É importante frisar, por este motivo, que a trajetória não deve ser entendida como algo linear ou progressivo, noção que pode gerar limitações aos resultados dos estudos. Além dos desafios externos, precisamos considerar ainda que, por um movimento pessoal, motivado pelo próprio indivíduo, a trajetória também pode sofrer estas alterações. Seja por ocasião de uma expectativa não correspondida sobre as possibilidades de objetivo inicial ou pela simples mudança de interesses pessoais, o potencial de metamorfose também se faz presente neste âmbito da decisão pessoal pela mudança de perspectivas.

A formação de Zina Aita na Itália lhe abriu portas para o futurismo, tendência que despontava como opção para a ruptura com a arte neoclássica, considerada ultrapassada frente aos novos cenários que já se desenhavam em outros países europeus como a França e a Alemanha. No Brasil, a arte moderna dava passos lentos, muito em função do centralismo da arte acadêmica do Rio de Janeiro e do baixo investimento por parte do poder público. A volta de Zina Aita ao Brasil e sua passagem por Belo Horizonte no início da década de 1920 seriam decisivas à constituição de um campo artístico em que as novas tendências se tornassem mais visíveis e possíveis. Como mencionamos anteriormente, às vésperas da organização da Semana de Arte Moderna, o nome Zina Aita já havia aparecido em críticas de arte por ocasião de suas exposições individuais; a recepção por parte do público se assemelha à que Anitta Malfatti obteve em Sâo Paulo: um misto de incompreensão e expectativas acerca dos novos feitos. À polêmica causada pela Semana de 22 se segue, tal como exemplifica o texto do periódico A Vida Moderna, a expectativa de que a artista não siga o mesmo caminho que o Grupo dos Cinco. Em nota, o autor identifica nas obras da artista o talento para o desenho, porém, frisa que Zina teria o que aspirar somente se deixasse de lado os “escândalos e grupelhos artísticos” e se quisesse estudar realmente. Por outro lado, sua figura representaria para Minas Gerais um lugar de protagonismo no movimento modernista e, principalmente, a abertura a um processo de construção e consolidação de uma cena moderna. O Correio da Manhã, publicado no Rio de Janeiro, traz a importância dos artistas futuristas para Minas neste momento inicial, ainda que só mencione Zina ao final, para falar dos artistas presentes na Semana de Arte Moderna. O texto é interessante pois aponta, além de uma intenção de validação acerca do movimento mineiro, pistas a respeito da visibilidade de Zina Aita dentro do mesmo. Ao não mencionar a artista e conferir a outras figuras, masculinas, os grandes papéis e protagonismos, o lugar da artista na memória do movimento mostra-se comprometido no sentido de uma integração e relevância dentro da pintura futurista, ainda que o foco do texto seja literatura. Esta contradição fica evidente pois, ao longo do discurso, a arte é tratada sem que se considere a coexistência entre suas diversas linguagens.

As menções a Zina, nos periódicos consultados para esta reflexão, tornam-se fragmentadas a partir da década de 1930, aparecendo apenas ocasionalmente – como nos textos sobre a Semana de Arte Moderna e sobre a importância de amizade com Oswaldo Goeldi (1895-1961) para o reconhecimento do ilustrador. Na década de 1940, os rumos de sua carreira profissional se tornaram pouco conhecidos; no conjunto de fontes analisadas, encontramos publicações que sugerem que Zina tenha se dedicado a expor com mais frequência em Belo Horizonte, mas não confirmam a informação. O Arquivo Público Mineiro – Plataforma Hélio Gravatá, traz documentos que atestam a participação da pintora em eventos em terras mineiras. Já em meados de 1957, a imprensa brasileira noticiava a exposição da artista em Nápoles, na Itália, onde Zina Aita se encontrava radicada. Realizada na Galeria Vanvitelli, a exposição trazia peças em cerâmica e obteve grande destaque por seu caráter pessoal, como relata Jayme Maurício (1926-1997) no periódico Correio da Manhã. Interessante notar que, neste momento de sua trajetória, Zina Aita passou a ser mais reconhecida enquanto ceramista, e Maurício destaca o fato das obras em cerâmica terem rendido à artista várias premiações na Itália.

Estas mudanças de percursos durante a trajetória de Zina demonstram grande potencial de metamorfose; o fato ter decidido pela cena mineira, pouco conhecida frente às do Rio de Janeiro e São Paulo, não deve significar um entrave à pesquisa sobre sua atuação, pelo contrário. Por estarmos tratando de um cenário ainda em construção, cabe a análise de documentos que lancem luz acerca das realizações da artista em Minas Gerais e seu impacto para a consolidação da arte moderna. Dentre arquivos públicos, privados, projetos expositivos e demais produções, há ainda um campo aberto à esta discussão. É possível que a escolha de Zina pela atuação em Minas Gerais, poucos anos depois da Semana de 22 tenha diminuído a procura das imprensas paulistana e fluminense por seus novos trabalhos – poderíamos levantar a possibilidade de ter havido uma quebra de expectativa por parte deste público. Em Minas Gerais, as poucas menções e a dificuldade de acesso a obras e fontes que tratem de Zina Aita também contribuem para seu “desaparecimento”. Caberia também levantar o questionamento acerca da presença do futurismo em Belo Horizonte – sua recepção e circulação, uma vez que o cenário encontrado por Zina pode não ter sido tão favorável à sua atuação; o lugar do feminino no modernismo em Minas Gerais é uma chave de leitura possível e de grande relevância. Recentemente, a perspectiva das multiplicidades modernistas tem aberto caminhos frutíferos dentro da questão de gênero na arte. O período na Itália revela uma outra fase na trajetória da artista, onde ela obtém maior destaque e visibilidade e, no Brasil, coincide com as celebrações em torno da Semana de Arte de Moderna, onde a discussão sobre o legado dos artistas ganhou espaço. A importância e a memória de Zina Aita precisa apenas de novos olhares para ser aprofundada e reafirmada; pensar no estudo da trajetória pode ser um caminho favorável para a compreensão de sua atuação, situada em espaços geográficos distintos aos de suas colegas Anita Malfatti e Tarsila do Amaral e, portanto, em um campo de possibilidades e desafios também distinto, sobretudo para as mulheres artistas.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

MAURÍCIO, Jayme. Itinerário das Artes Plásticas. Correio da Manhã. 14 de dez. 1957, p. 12. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/089842_06/85299

Minas no Moderno Movimento Literário. Correio da Manhã. 18 de mar. 1924, p.5. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/089842_03/18756

VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 3ªed.

VENTURA, Alexandre. História da Arte e Modernismo no Brasil – Caso do “desaparecimento” de Zina Aita. In: Fundação Clóvis Salgado (texto online). Disponível em: https://fcs.mg.gov.br/historia-da-arte-e-modernismo-no-brasil-caso-do-desaparecimento-de-zina-aita/

Zina Aita. A Vida Moderna: Literatura, Actualidades, Arte. 23 de mar. 1922, p. 25. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/830283/979

 

 

 


Crédito na imagem: Divulgação. HOMENS Trabalhando. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra11638/homens-trabalhando.

 

 

 

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