Despontando com seu Show das Poderosas em 2013, o fenômeno Larissa de Macedo Machado, que se firmou pelo verniz do pseudônimo Anitta, não dava sinais dos rumos que pretendia tomar a partir de uma coreografia – aparentemente despreocupada e intencional – encenada no videoclipe da música. Entretanto, ainda na mesma década, seis anos após o boom daquilo que à época parecia ser mais um momento febril da nova leva do funk carioca – com suas poéticas da “raba” ou filosofias da bunda que quica e quase tem vida própria pela performance que a sustenta –, o que se tem por delineado hoje é uma identidade com o mesmo apelo de uma marca consumível em meio a tantas publicidades de ídolos vendáveis. Longe de ser definida pelo funk que a consagrou, transitando agora por veias musicais indefinidas – às quais cedeu, por conveniências mercadológicas e de sociabilidade, o ritmo que a lançou –, a ex-MC Anitta (como era chamada entre o fim de 2010 e o início de 2013) e o fenômeno que ela representa parecem, recentemente, na música mundial, ser minimamente estabelecidos pelas parcerias – o featuring, feat ou ft. – firmadas nessa indústria que a ergue.

Ao longo da carreira, Anitta chegou a demonstrar interesses ao se inspirar em videoclipes já conhecidos do público para construir alguns dos seus. É o caso do vídeo de Terremoto, lançado no início de 2019, com parceria de Kevinho (também ex-MC), o qual tem como inspiração o videoclipe de I’m Still in Love With You, de Sean Paul e Sasha[1]. Ou o caso do clipe de Meiga e Abusada, publicado no YouTube em 2012, o qual traz como inspiração o vídeo musical de I Hate This Part, das Pussycat Dolls (cuja atuação se encerrou em 2010). Entretanto, essas inspirações estéticas não são suficientes para nos ajudar a tatear o fenômeno Anitta e o que sua marca representa. Porém, a parceria com Kevinho é capaz de indicar uma rede de sociabilidade de Anitta pela indústria fonográfica – a capacidade da artista de transitar por inúmeras cenas e gêneros musicais –, embora não demonstre a força desse fenômeno midiático num espectro maior.

Aqui, propomos duas breves frentes de análise para trazer uma dimensão desse guarda-chuva que comporta vertentes distintas de uma cultura pop (mais no sentido de popular) dos anos 2010 e se mostra apta a arregimentar elevados níveis de status em torno de seu nome e a desvelar convenções muito peculiares dessa mesma cultura na qual a cantora se insere. Trata-se da referida adesão a featurings na produção de videoclipes/canções (algo que a parceria com Kevinho começa a indicar) e da dimensão performática de Anitta (pela bunda) a partir desses clipes em parceria. De um lado, os feats representam uma perspectiva de diálogo entre cenas e artistas distintos, o que pode caracterizar desde um apaziguamento de tensões (entre produtos que disputam por consumo e funcionam quase como seitas religiosas na cultura midiática) a apadrinhamento – como no caso dos inúmeros feats entre o produtor e rapper norte-americano Timbaland e os cantores Justin Timberlake e Nelly Furtado, além de Madonna, Keri Hilson etc. –, entre outras possibilidades. Simone Pereira de Sá (2019) atesta que os feats, partindo da ideia de participações de convidados, podem ser entendidos enquanto “performances negociadas” ou apadrinhamentos que têm como resultado reconfigurações estéticas e identitárias, sendo capazes de elaborar redes de música (como a consolidação de uma rede de música pop periférica em torno de Anitta, o que a pesquisadora mapeia a partir de videoclipes de 2017 da/com a cantora).

Por outro lado, incluem-se aí, também, a partir de nossa perspectiva, não apenas as performances negociadas de que fala Sá, mas também as performances daquilo que nomeamos aqui por poética da “raba”[2] (que a artista carrega consigo) como uma prática em funcionamento para dar força e sustentar esses feats. Anitta – e sua bunda – estão sempre dispostas a levar uma persona midiática de si a outros territórios e temporalidades, no sentido de construir a cantora como um sustentáculo do pop brasileiro para os cenários nacional e internacional e firmar, a partir de sua performance específica, uma suposta autenticidade ou marca registrada (a despeito de um mercado das bundas e da gama de “rabas” à disposição na cultura midiática atual e em seus produtos audiovisuais, principalmente). Dentro e fora do Brasil, há a apresentação da artista em programas televisivos, festivais, shows da própria cantora, além de parcerias com fenômenos da música nacional, tais como o já referido Kevinho, Simone & Simaria (como visto na gravação de Loka), Wesley Safadão e Nego do Borel (como na música Você Partiu Meu Coração), entre outros. Arrolados na mesma esteira, estão nomes como Ludmilla e o produtor musical Papatinho (com os quais Anitta e Snoop Dogg gravaram Onda Diferente), Pabllo Vittar (com quem Anitta e Major Lazer gravaram Sua Cara) e MC Zaac (que atuou com Anitta, Tropkillaz e J. Balvin em Bola Rebola e contribuiu com Anitta, Maejor e também Tropkillaz e DJ Yuri Martins no polêmico Vai Malandra).

Especificamente no cenário internacional, podemos destacar as parcerias de Sofia Reyes, Rita Ora e Anitta na música R.I.P., de março de 2019, na qual figurinos são esbanjados e se executam passos ensaiados de dança entre as cantoras e dançarinas. Curiosamente, neste clipe, uma performance da bunda, que se torna marca característica de Anitta, aparece discretamente, reduzindo a cantora à mesma condição das demais, que aparentam não dominar a sapiência[3] ou o rebolado de Anitta. Na contramão, está a parceria entre Anitta e Becky G, que resultou na canção Banana, de abril deste ano, em cujo clipe a artista carioca balança el culo (tal qual se refere a letra da canção) em cima de uma banana gigante. Por meio de votações do público, Anitta já chegou a emplacar essas duas produções e também os clipes de Onda Diferente (lançado também em abril deste ano) e Bola Rebola (de fevereiro) na mesma edição de um programa televisivo, o MTV Top 20, que exibe, na grade de programação dos sábados da emissora da tevê por assinatura, os videoclipes mais bem votados da semana. No vídeo de Onda Diferente, a performance de Anitta condiz com sua figura na mídia e nas demais produções que aqui elencamos: seu corpo encampa a poética da “raba” como síntese da figura cultural ou do fenômeno Anitta – no clipe, ela surge balançando a bunda em uma espécie de festa fetichista. Em Bola Rebola, uma continuidade da estética de Vai Malandra (produção de 2018), temos Anitta abrindo a filmagem rebolando sua bunda, tampada por um short pequeno, ao caminhar e ao subir no banco de uma moto. Esse rebolado se repete ao longo do clipe, intercalado com outras bundas, e não somente femininas.

Mais ou menos reforçadas sobre os vídeos, essas performances da “bunda plural” de Anitta, que executa movimentos de rebolado distintos, quica em elementos e superfícies divergentes, ou em territorialidades múltiplas, e se torna mais contida ou acentuada a depender do ambiente e dos feats, faz parte de um movimento musical, identitário e cultural no qual a cantora está alocada. Falamos de uma ocupação do cenário midiático por artistas que se valem da bunda como ato político e de reivindicação de uma representatividade das favelas, de uma luta contra a LGBTfobia (como as drag queens Pabllo Vittar e Gloria Groove), elevando essa performance a uma ideia de poética da “raba” ou filosofia da bunda – o que, em contrapartida, disputa com uma economia de mercado que transforma essas mesmas bundas em commodities. Paradoxalmente, nessa performance que se abre a duas faces, há tanto uma estratégia de visibilidade como uma estratégia de consumo, as quais não estão apartadas, mas são possibilitadas justamente pelo caráter de competência de reconhecimento do objeto performado (e da própria performance) – “um saber-ser no tempo e no espaço”, como atesta Paul Zumthor (1997, p. 158) –, fazendo surgir contextos outros a partir desse mesmo processo que firma o reconhecimento, havendo instauração de regimes diversos de consumo, por razões diversas, pautados nessa ação dialógica (CARDOSO FILHO et al, 2018, p. 102). Fundamenta-se assim, a partir de todos esses pontos, um processo comunicacional que indica, no mínimo, três vestes: a representativa e, para que ela ocorra, a representacional (porque abordamos audiovisuais da cultura das mídias), que surge, pela zona mercadológica envolvida, como frente também “publicitária”.

Desse modo, o fenômeno iniciado possivelmente com o sucesso de Show das Poderosas cresceu para se tornar um destino possível e almejado por tantos outros fenômenos: metamorfosear-se em um filão popular – não do gênero ou de uma cena musical pop dos anos 2010, como o pop latino, a dance-pop, o funk carioca ou o funk-melody, o reggaeton, o R&B ou qualquer outra modulação, como tentam definir a Wikipédia, o Vagalume, o Letras.MUS e tantos outros sites e suplementos musicais da internet, da TV, do rádio etc. Metamorfoseou-se, acima disso, na fundamentação de um valor, o valor do fenômeno Anitta, que suplanta gêneros, cenas e artistas, mas ainda faz concessões a pressões mercadológicas em prol de sua consolidação (de seu fenômeno) na indústria que a erige. Esse valor é o que se propõe como ação midiática a partir de uma poética da “raba” e dos feats de Anitta: como nos lembram Frith (1996) e Soares (2015), o valor é aquilo que mede a sociabilidade de um artista, isto é, sua capacidade de ser o que é, de romper fronteiras ou atiçá-las e transitar entre territórios e temporalidades – carregando ou não, para outras ambiências, uma performance reconhecida de um artista, como o rebolado de Anitta, levado com ela e preterido em alguns momentos, é nesse valor dosado nos feats que são aplicadas visões de acesso de um artista a novos públicos, expansão de circulação de seus produtos e, para isso, usa-se deliberadamente de sua sociabilidade (CARDOSO FILHO et al, 2018, p. 101). E um novo valor a surgir com uma performance ou com parcerias é o convite imaginado pelo artista à constituição de um gosto que sustenta uma corrente emergente ou efervescente, desenha discursos dissonantes em quadros estáticos ou ortodoxos de determinado ramo (como a fonografia) e, por conta disso, embaralha formas culturais, questiona noções de alta ou baixa cultura, de prestígio, de linhagens e puritanismos.

 

 

 


REFERÊNCIAS

CARDOSO FILHO, Jorge; AZEVEDO, Rafael José; SANTOS, Thiago Emanoel Ferreira; MOTA JUNIOR, Edinaldo Araujo. Pabllo Vittar, Gloria Groove e suas performances: fluxos audiovisuais e temporalidades na cultura pop. Contracampo, Niterói, v. 37, n. 3, p. 81-105, 2018. Disponível em: http://dx.doi.org/10.22409/contracampo.v37i3.19455. Acesso em: 30 jul. 2019.

FRITH, Simon. Performing Rites: On the Value of Popular Music. Cambridge: Harvard

University Press, 1996.

GROSSBERG, Lawrence. The terror and the beast. In: ______. Under the cover of chaos: Trump and the battle for the American Right. London: Pluto Press, 2018, p. 3-15.

SÁ, Simone Pereira de. Os feats de videoclipes como estratégia de consolidação da rede de música pop periférica. Porto Alegre, 2019, p. 1-22. In: Anais do XXVIII Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – Compós. Disponível em: http://www.compos.org.br/biblioteca/trabalhos_arquivo_S44PM0FJVB6NCVHP9AYW_28_7500_18_02_2019_09_05_01.pdf. Acesso em: 30 jul. 2019.

SOARES, Thiago. Percursos para estudos sobre música pop. In: SÁ, Simone Pereira de; CARREIRO, Rodrigo; FERRARAZ, Rogério (Orgs.). Cultura pop. Salvador: EDUFBA; Brasília: Compós, 2015, p. 19-33.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.

 

 

 


NOTAS

[1] A jamaicana Sasha (atualmente Sista Sasha e cantora gospel) figura, no início dos anos 2000, como uma forte referência para o twerk, um estilo de dança que foca em movimentos nos quadris e incentiva vertentes artísticas como o “quica-bunda” das canções de funk. A presença das bundas no funk traz, entretanto, suas próprias configurações, como questões específicas de identidade e representatividade, assim como a mesma bunda possui, para o twerk, suas questões políticas. Essas articulações distintas em torno de uma mesma parte do corpo, acionadas em temporalidades e territorialidades diferentes, por questões também diferentes, ainda que, em certa medida, imbricadas uma à outra, revelam uma abordagem trabalhada recentemente no âmbito dos estudos culturais, concernente a Grossberg (2018, p. 10-11), que dá conta de circunscrever afetividades em torno de elementos (iguais ou discrepantes) que encampam os produtos midiáticos e suas embalagens imagéticas e políticas (como uma performance das bundas, a poética da “raba”, que é política por sua representatividade) e diz que, cada qual a seu tempo, essas afetividades denunciam articulações de inter-relações e experiências entre os sujeitos que seriam justamente dosadas por compartilhamentos de mesmas campanhas ou proposições nas quais eles estão engajados (compartilhamento de afetos, isto é, de uma variedade de formas que indicam como sentimos e experienciamos o mundo, da individualidade à “socialidade” – como nomeia o autor –, da consciência à materialidade, do cognoscível ao ainda não articulado).

[2] Estratégia de sobrevivência de minorias, a poética da “raba” (palavra usada à exaustão em composições sobretudo de funk) é uma reformulação do corpo em função de suas próprias resistência e existência. Se, por um lado, à bunda é sempre negada a representatividade, por uma cultura sedimentada e reacionária, por um valor da ordem do frívolo ou sexualizado, sobretudo pelo ato de esvaziamento de uma performance que remete aos bailes funk ou à forma de dançar o funk, resta a essa bunda – sempre a quicar no chão e ter que se levantar rapidamente e, ainda assim, ser a primeira a ser alvejada por um ultraconservadorismo – fazer desse esvaziamento sua crítica, sua resiliência e seu combate. Enquanto a bunda que desfila nos holofotes é tomada como profanação e ato vazio, libidinoso e sem aprofundamento, sua representatividade se constrói no sentido de denunciar, por meio do desfile e da própria tentativa de esvaziamento (combatendo-a de volta com a mesma performance da bunda que quica), mazelas sociais como a LGBTfobia (o ódio e as práticas de violência contra essa minoria) – para tanto, basta recorrermos a videoclipes ou apenas canções de Pabllo Vittar, Gloria Groove, Quebrada Queer e outros. Curiosamente, essa poética não está livre de rédeas comerciais – como falamos ao longo deste texto –, o que não anula, porém, a representatividade nela contida, mas sim, coloca indivíduos em circuitos de consumo e leva a representatividade a outros parâmetros de construção e propagação midiáticas – do periférico a um possível mainstream, por exemplo.

[3] Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que Anitta busca sucesso internacionalmente com feats entre nomes “de peso”, como produtores e divas pop, parece interessar ao mercado ora conter a própria performance peculiar da artista e ora reforçá-la, como tentativa de apaziguar tensões ou controlá-las e, depois, quando lhe convier, explicitá-las. Isso pode ser percebido a partir do momento em que não basta à brasileira conseguir parcerias ou cantar em espanhol ou inglês. É preciso, entretanto, que Anitta faça concessões, como reduzir sua marca (o rebolado) quando necessário, a exemplo do que vemos no videoclipe de R.I.P. e a exemplo do que Sá (2019, p. 10) observa também no clipe de Will I See You, parceria de Poo Bear e Anitta, onde ocorre a mesma contenção da performance da “raba”. Caso similar acontece no clipe de Sua Cara, em que há uma “mesmice” das bundas de Anitta e Pabllo Vittar: quando interessar ao mercado, ambas estarão se digladiando para saber qual bunda mais bate, quica, pula e rebola. Quando convier, ambas deverão apresentar a mesma dimensão corporal – situação ilusória na aritmética das tensões e nas subjetividades corporais de cada artista, embora ambas tenham sido moldadas, para o clipe, para serem representadas de uma mesma forma.

 

 

 


Créditos na imagem: Cena do videoclipe de Banana, de Anitta e Becky G. Foto: Reprodução/YouTube.

 

 

 

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