Baixai, baixai,
Ó virgem da conceição
Maria Imaculada
Pra tirar as perturbações
Se tiveres praga de alguém
Desde já seja retirada
Levando pro mar adentro
Pras ondas do mar sagrado
(Ponto de Umbanda)
1
Os fragmentos que aqui se reúnem, de modo múltiplo e disperso, nada mais são do que o retrato da impossibilidade de qualquer Fenomenologia do Espírito. Pois tal coisa, o Espírito, não existe, não ao menos nessa forma singular, máscula e maiúscula: existem espíritos, eles e elas, espectros, assombrações e aparições – que, na contramão de qualquer apresentação ou representação, não se manifestam na ordem do phainesthai. Estes também escapam, não podem ser aprisionados em nenhuma espécie de “logia”, mas, talvez, e sempre talvez, apontados, através de uma lógica da metaforicidade contra o conceito, em uma espécie de “grafia”, sim, só que, essa também, contra a topologia ou topografia, que nada mais são que a sintaxe de toda metafísica. Tal grafia à qual me dedico aqui, portanto, apenas se configuraria como uma escrita ou um retraçar dos tropos – figuras que, contra qualquer totalidade ou unidade, seguem a lógica do diabólico contra o símbolo, da possessão ou da legião contra o absoluto, numa trópica ou tropicalidade que apenas anuncia a repetição diferencial dos assombros em alguns momentos espectrais que, aqui, são tomados como meros exemplos.
2
No velho mundo, a aparição genética ou genealógica, porquanto protéticas, em seu tropismo, não apresenta sequer a figura humana. De início, o animal: um daqueles que somos e seguimos: a serpente antes do ser. Se o símbolo é aquilo que reúne e abarca a totalidade, no movimento do Mesmo, a serpente entra em cena como a forma de tentação que impede o paraíso: é a própria queda ou a condição de impossibilidade do dois, da pureza, da natureza plena e simples, da felicidade e da ingenuidade. É, portanto, ela que, na forma esguia e cheia de meandros que apenas a mulher vê, oferece aquele fruto que, nada de proibido, abre ao sexo e ao conhecimento: das coisas, de si, do outro e do mundo em geral. Em sua Gênese, ao menos na nossa tradição herdada das terras entre Tigre e Eufrates, a aparição ordena a desobediência, condição doravante fundamental e “marca original” da condição humana: o estar-diante desses outros outros que nos aparecem e nos seduzem a seduzir – isto é, a pensar.
Foi o que Dorival Caymmi falou pra Oxum:
Ouro cobre o espelho esmeralda
No berço esplêndido
A floresta em calda
Manjedoura d’alma
Labar água, sete quedas em chama
Cobra de ferro Oxumaré
Homem e mulher na cama
(Aldir Blanc / João Bosco / Paulo Emilio, Nação)
3
E o anjo aparece ao pai. Ao pai do Livro e de todos os filhos do Livro. Aparece na hora do cego e incerto sacrifício, na hora em que o cutelo já se direcionava e que, portanto, o filicídio já ocorrera. Pai e filho, ambos encenam a maior tragédia judaico-cristã, a do Cavaleiro da fé, do Temor e do Tremor, do Dar a morte, do sacrifício que o anjo, em seu gesto de salvação, nos ensina: segura nossa mão não porque nos sabemos privilegiados ou escolhidos, mas, pelo contrário, porque apostamos no absurdo. Ensina, desse modo, a fé: a subida ao monte, sem certeza, na absoluta insegurança, tendo como mote a skepsis que faz apenas com que se siga. Se há alguma grande lição a se tomar nesse assombro (pois sempre se trata de tomar lição dos espíritos, como todos aqui bem sabemos), essa lição é a aposta, o gesto que, avesso a qualquer moralidade, constitui a única opção possível. E marca, sobretudo, que o pai, o pai de todos, é, ele próprio, também assombrado. Não há pai sem assombro, e não haveria filho, outrossim, sem o pai assombrado. O segredo como lição. (David Lynch interrompe) Silentio. No hay banda. Nessa pré-história das aparições, um espectro arquetípico vê-se ecoar nas também primeiras histórias do filósofo das Veredas, o filho da flor. Como um Noé das Minas, na terceira margem daquele rio-rio-rio, esse homem, agora o filho, aprende o nome do pai ao se deparar com a solidão louca de sua canoa, nas tristes palavras que herdamos na Rosa de Guimarães ou na voz de Caetano:
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira
Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio nosso pai
(Caetano Veloso / Milton Nascimento, A terceira Margem do Rio)
4
O Testamento da Antiguidade atesta aparições que, entre anjos e demônios, entre figuras humanas e animais, entre seres alados ou rastejantes, nos ensinam a olhar os cacos da história, como, entre espera, esperança e desespero, nos ensinou Benjamin. Como herdeiro dessa tradição das assombrações da promessa e do segredo, da queda e do sacrifício, da dura e monoteísta tradição abrâamica, através de sua vida também dilacerada, fragmentada como sua obra, desde sua infância em Berlin, através de suas teses sobre a história, passando por suas passagens, ele nos faz ver que, como estilhaços de um quadro maior que não chega a ter moldura, esse mosaico espectral, para além e aquém do bem e do mal, não difere tanto nessa aparente oposição de aparições. Anjos ou demônios; humanos, divinos ou animais, todos eles nos mostram apenas que o real se dá nesse movimento mesmo de aparecimento – revela-se na presentação. E o ser corcundinha que apavorava e amaldiçoava o menino Walter em sua infância, aquele que sempre observa e predestina com seu olhar, essa mesma criatura, tal qual um gárgula a postos à margem do castelo, tem, na indistinção de suas asas e de sua corcova, a prova de que as aparições configuram uma outra eticidade, uma hipereticidade talvez, que, nunca se restringindo aos códigos ou às lógicas humanas, nos exigem um outro pensamento, um outro olhar, muito mais cego do que lúcido, muito mais tateante.
5
Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré (…)
E não sei se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar pelo nome do nosso Senhor
(Chico Buarque, Minha História)
Na Letra de Chico ou na Escritura de Lucas, o nascimento do Filho é anunciado pelo mensageiro, espectro que impõe à Maria a maldição e a bênção, através da concepção imaculada ou não, daquele que viria redimir a todos. Simulacro da aparição da serpente à Eva, esse mensageiro impõe uma tarefa ao feminino: lá, a sexualidade conceptiva, aqui a contracepção espiritual. Anuncia ele que o poder de Deus se deitará sobre ela: talvez venha sem muita conversa e sem muito explicar, falando, cheirando e gostando de mar. Assim Maria a ele se entrega perdidamente, cheia de graça. Só que agora, como o oposto complementar de Eva, ela roga por nós, pecadores, e pecadores pois herdamos a mordida no fruto ofertada pela primeira aparição. Seu filho é o Deus amor, da mãe que, em silêncio e em sacrifício, se deitava com o desconhecido. E ele, o filho, canta:
Minha história e esse nome que ainda carrego comigo
Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus
6
Ao Bendito fruto do ventre, anos mais tarde, após seu batismo, o espectro também surgirá. Não em sua forma angélica, mas na mais alta patente do mal. Em breves palavras de Marcos, mas com descrições detalhadas de Mateus e Lucas, é no mais ermo dos desertos que Cristo se depara com o Diabo. Fora da cidade, portanto, depois de jejuar por quarenta dias e quarenta noites, numa cena de extremo erotismo, entre pedras e pães, através do pináculo até o alto da montanha, Jesus é cercado, envolvido e abraçado pela tentação. Aqui, em paralelo com Adão, e encarando face a face o ser maligno, este deve resistir – para que o Testamento da Novidade corrija todos os equívocos daqueles que se depararam com as aparições na Antiguidade, para que o deserto da Judeia vença os desafios herdados dos habitantes do Éden. No Grande Sertão, talvez mais ermo que o mais ermo dos desertos, o jagunço que, ao contrário do filho de Deus, ou então em consonância com esse, é de escuro nascimento, também atravessa as veredas do real em seu enfrentamento com o Demo. Também em silêncio, no olho do redemunho, entre seduções, mortes, aversões e pavores, entre homens e mulheres, o Fausto Tatarana, enfrenta a dúvida entre bem e mal, e só nesse momento sente-se forte e consegue beber água onde só a onça pode. Entre águas e desertos, entre o Do-Chico e o Liso do Sussuarão, o relato de si, o Ecce Homo do Urutu-Branco, de range-rede, nos conta a vida que é travessia e assombramento, pois viver é muito perigoso cara-a-cara com o Coxo, o Cramulhão, O-que-nunca-se-ri, o Sem-gracejos, o Pé-de-Pato, o Dos-Fins, o Outro, o Ele, o Ó…
7
“I am thy Father’s Spirit”. Talvez seja esta a cena que inaugure a espectrologia ou ontologia assombrada. Mas o que tal obsediologia teria a oferecer de novo? O pai que aparece ao filho e lega uma tarefa, em meio à dúvida ontológica do ser e do não-ser, inaugura a ciência dos espectros na medida em que se torna o fantasma do castelo: a figura europeia por excelência. A cena fantasmática, em que o espírito entra, sai e entra de novo, e que faz com que o tempo fique fora dos eixos, dos gonzos, disjunto, dá-se em meio a uma descrição cuidadosa do espaço e da espacialidade em geral: a roupa, o elmo, o cenário, e o apodrecido reino constituem em seu conjunto a herança que é, naquele momento, deixada à responsabilidade do filho. A Europa é aqui metaforizada: o reino em pedaços que precisa de um pai, um só, ainda que fantasmagórico, que ordene a ação. O espírito do pai como fundamento do político, como sua teologia ou hanto-teologia. O deserto cresceu – e ai daquele que encobre desertos: que apenas vê o pai vivo, ou ainda o pai morto, mas apenas um pai. Ai daquele que encobre os espectros, daqueles que acham que a missão é dada pelo Uno, pelo Estado, pelo Espírito, pelo Fim ou pela Origem e que acham, que, enfim, apenas um espectro ronda a Europa: seja na forma do Espírito que se fenomenaliza e que, a cada figura da consciência, se dialetiza num movimento de suprassunção, até alcançar o absoluto; seja naquele outro, o qual todas as potências da velha Europa uniram-se numa Santa Aliança para conjurar, do Papa ao Czar, mas que, este também, fenomenalizou ou instituiu-se na figura una do aparecer estatal. Ai daqueles encobrem a economia do espectro pela lógica do Estado, não sabem eles que o espectro é sempre plural? E, grafado em letras minúsculas, deve ele querer dizer sempre: mais de um; menos que um?
8
Mas o pai do comunismo estava certo: o conjuro gostaria de se dar também através de outra aparição, como descreve Renato Russo: “Vocês esperam uma intervenção divina, mas não sabem que o tempo agora está contra vocês”. Agora, aquela a quem o anjo apareceu e que se assombrou com a novidade de ser a mãe de Deus, se torna, Ela, a assombração: no mesmo ano em que a Revolução Russa pretende fenomenalizar o Espectro paterno que rondava a Europa, aos pés de uma azinheira, a aparição mariana denomina-se a Senhora do Rosários aos três pastorinhos, aos quais, aterrorizados, entre clarões, revelações e segredos, se anunciava a vitória da Igreja sobre o Rússia comunista. Das três crianças, apenas uma sobrevive: os irmãos Jacinta e Francisco morrem misteriosamente e apenas sua prima, Lúcia, que inclusive era a filha dos proprietários da terra que abrigava a sagrada azinheira, sobrevive. Talvez daí surja a lenda de que comunistas matam criancinhas, mas o fato é que Lúcia, a vidente e sobrevivente, se torna a guardiã do segredo, e aquela que, somente ela, pode escrever memórias. Ela, a mais velha das três crianças, a mais dócil, se torna a portadora da escrita, e, é claro, a primeira dentre as três a ser canonizada. Uma vez mais, pode-se claramente ver o quanto a aparição do espectro é, sempre, um ato político, e por essa mesma razão, retomo aqui não a versão da história relatada pela criança que futuramente se ordenaria, mas pelo músico homossexual, aidético, que cantava à época no sintomático Aborto Elétrico, antes de juntar sua legião urbana:
Três crianças sem dinheiro e sem moral
Não ouviram a voz suave que era uma lágrima.
E se esqueceram de avisar pra todo mundo
Ela talvez tivesse um nome e era: Fátima
E de repente o vinho virou água e a ferida não cicatrizou
E o limpo se sujou e no terceiro dia ninguém ressuscitou
(Renato Russo, Fátima)
9
Numa viagem a um tempo anterior e em direção ao Sul, cruzamos o Mediterrâneo e chegamos ao limite do monoteísmo. Para aquém de Cleópatra, Júlio César e Marco Antônio, para aquém de Pitágoras e do Platão Farmacêutico, e para aquém mesmo do encontro de Édipo com a Esfinge, e talvez antes mesmo do caçula da Jacó, neto, portanto, de Isaac e bisneto de Abraão. Talvez, antes de José e seus irmãos, e do atonismo de Moisés, do qual não só Freud, como Derrida também poderia ser herdeiro, estaria a margem na qual, no reinado de Aquenaton, a multiplicidade de sóis começa a se concentrar na circunferência do disco solar de Rá. Aqui estamos no limen da cripta dos deuses: os hieróglifos antes do signo, a escritura em sua aparição mais secreta, e a arquitetura dessa cena se encarna na forma piramidal. Essa mistura de monumento funerário e máquina de ressurreição, marca do monte cujos raios solares esculpiram na criação da terra, parece ser o que, ao mesmo tempo, ligaria e separaria Hegel e Derrida. Isso porque, neste momento de transição do politeísmo ao monoteísmo, a pluralidade críptica de significados não fonéticos que representa a multiplicidade de deuses, que inclusive mesclam formas humanas e animais, tal cripta que tanto encantava Derrida, o filósofo das tumbas, através da figura faraônica, o signo tão querido por Hegel, acaba sendo dedicada a um deus em particular, que ganha sua grafia maiúscula e se torna o Centro, o Estado, a metáfora das metáforas, o Heliotropo, talvez a pedra preciosa por excelência, divina. O pai único sobressai aos pais homens-mulheres-animais, e estes, postos a orbitar em torno do Sol, habitam as estruturas arquitetônicas na forma das múmias, a fenomenologia dos deuses mortos pela luz solar que assombram as paredes amaldiçoadas pela imortalidade dos tesouros.
10
Precisamos descer mais ao sul, e depois de cruzar o Mediterrâneo e o Saara, cruzar também outros rios e florestas, rumo à terra onde os ancestrais manifestam-se sob uma forma bem mais colorida, dançante e brincalhona, bem diferente do que aquelas repetições do mesmo que marcam a branca mitologia. Nessas terras, outramente que os Orixás, que representam certa ascendência divina do humano, Babá Egun é cultuado como a própria ancestralidade. Babá, o pai, no caso é um pai, o pai morto que vem para dançar e ser cultuado e que traz consigo a singularidade infinita de ancestrais. Nono filho de Oyá, que, dividida em nove, torna-se Iansã, é o primeiro a não nascer mudo. Contudo, sua voz inumana faz-se ouvir em todos os lugares e assombra a todos como o som do pássaro que carrega no ombro. Marca do supremo ancestre, este pai parece apagar a própria figura do pai, pois agora não há mais o pai, há os ancestrais por debaixo de sua roupa colorida. Mas, mais ainda, a figura deste Babá parece confundir a própria distinção entre orixás e ancestres. Egun é filho de Xangô, e este, o Obá encarnado, o orixá-rei que é humano ou o humano que alcança o estatuto de Orixá. Agora, qual é a antecedência divina e qual a ancestralidade? O nascimento do pai ancestral embaralha as coisas, e Gil canta:
Aganju, Xangô Alapalá, Alapalá, Alapalá, Xangô Aganju
O filho perguntou pro pai: onde é que tá o meu avô
O meu avô, onde é que tá?
O pai perguntou pro avô: onde é que tá meu bisavô
Meu bisavô, onde é que tá?
Avô perguntou pro bisavô: onde é que tá tataravô
Tataravô, onde é que tá?
Tataravô, bisavô, avô, Pai Xangô, Aganju
Viva Egun, Babá Alapá!
(Gilberto Gil, Babá Alapalá)
11
No novo mundo, a vinda dos espectros se deu de inúmeras formas, somando-se esses chegados aos espectros locais. Contudo, muito daqueles aos quais nos referimos mais acima atravessaram os oceanos por galeões e trouxeram consigo a marca de seu assombro. Como o grande veleiro espectral, que, como descreve Nietzsche, desliza como um fantasma, e no qual embarcam todo silêncio e calma do mundo, os espíritos cruzam o Atlântico e agem à distância. São eles, fantasmas, piratas, puritanos, que, assombrando, saqueando ou refugiando-se, seja no Mary Celeste, no Pérola Negra ou no Mayflower, vagam à deriva ostentando suas bandeiras, da Jolly Roger à dos peregrinos. Muitos deles embarcam no norte da América, e atracam na baía de Plymouth.
12
Alguns desses atracados foram aqueles que assombravam os castelos e, descendentes do pai de Hamlet, arrastavam correntes. Estes, no novo mundo, se tornam os proprietários que, no futuro, assombrarão suas próprias casas. Os espíritos da propriedade colonizam a América, são vistos como aparições repetidas, habitando as estruturas que um dia construíram ou compraram com o esforço do seu trabalho, sempre nos mesmos locais, como a abrir uma porta, subir uma escada ou, na maioria das vezes, a olhar pela janela como para contemplar o que antes fora seu. Com esses espectros há que se negociar: mesmo que aos berros e com insultos, os paranormais ensinam que devemos mostrar a eles que a casa assombrada possui agora um novo dono e que eles, os fantasmas, portanto, devem ir embora. Mas às vezes nem isso funciona: e, nesse caso, os novos e os antigos donos devem aprender a coabitarem, assombrando-se uns aos outros. Esses são, como no filme, Os outros, como revela a precisa ciência de fazer aparecer os fantasmas, e a beleza dessa auto-hetero-assombração consiste em aprender a disjunção na habitação: a morada espectral que faz pensar quem é o assombrado e quem é o assombroso. Contudo, essa relação, de certo modo, ainda se fundamenta em certa simetria, na qual os homens brancos, monetarizados, possuem o direito e pactuam no nível fantasmático.
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Ao contrário do que relata a bela história das ações de graça, que nada tiveram de gratuitas, os peregrinos nunca foram os acolhedores que receberam os indígenas para a primeira ceia. Talvez aquela tenha sido a última ceia, e esses espíritos, antigos habitantes da terra tão velha quanto o velho mundo, quando decidem permanecer em seu solo, não respondem à lógica da negociação entre pares. Como aqueles que assombraram a pequena Caroline (e não só a ela, e não só na ficção), e a impediam de ir para a luz, esses espectros, por serem tidos como primitivos, por assumirem sua ascendência não humana, são tratados como demônios. Seu direito à propriedade se restringe às habitações sepulcrais, e os brancos apenas sofrem danos quando constroem suas casas por sobre os cemitérios indígenas. Ainda assim, nesse caso, a negociação com estes espectros não se dá na dialógica paranormal, a eles são necessários encantamentos ou exorcismos.
14
Não sendo espectros construtores nem conquistadores, não sendo também habitantes arcaicos, há aqueles que vieram por outra espécie de navio fantasma: os navios negreiros que traziam mortos e vivos que, como intrusos, passam a habitar esse novo mundo e a habitar a terra na inversão da lógica da propriedade, pois eram eles a propriedade. Na lógica protestante da propriedade dos espíritos estadunidenses, os negros nem o direito à forma fantasmal possuíram: não comprando, nem construindo, nem conquistando nada, tais espectros não têm direito algum, e vivem à margem do próprio: nem dentro nem fora, nem vivos nem mortos no jogo do político: são os zumbis. Vagam à noite, saem das tumbas e, com seus rituais satânicos, se alimentam dos cérebros dos vivos para seguirem seu assombro.
15
Já por aqui, abaixo da linha do Equador, os galeões portugueses também atravessaram o oceano, numa contada errância que fizera com que atracassem aqui rumo às índias. Esses marujos traziam consigo seus santos católicos e toda espécie de simpatia e crendice de suas vilas. Bethânia e Sophia de Mello Breyner Andresen cantam e encantam tão bem estas e outras tantas cenas:
Quando ele passa, o marujo português
Não anda, passa a bailar, como ao sabor das marés
Quando se ginga, faz tal jeito, tem tal proa
Só pra que não se distinga se é corpo ou canoa
(Arthur Ribeiro / Linhares Barbosa, O marujo português)
Desde então, uma diversidade de espíritos atravessam o Atlântico rumo à Terra Brasilis, nobres, pobres, negociantes, ladrões, fugitivos, prostitutas, judeus, cristão novos, árabes, polacas e todas as marcas da impossibilidade de uma migração de raça pura. “Quando ele passa, o marujo português, passa o mar numa ameaça de carinhosas marés”, trazendo, já consigo, a promessa da mestiçagem.
16
Mas não foram apenas esses viajantes que aqui chegaram, fossem os bravos desbravadores de mar, bandeirantes, cuja bravura é heroificada a ponto de esconder os rastros de mortes que deixavam em suas picadas; fossem os outros que aqui chegavam para aqui habitar, fugindo de uma Europa de guerra e fome. Chegaram também aqueles viajados, vindo também vivos e mortos para serem aqui escravizados, trazendo com eles seus orixás e toda sua ancestralidade.
Que noite mais funda calunga
No porão de um navio negreiro
Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas
Compasso do coração de pássaro no fundo do cativeiro
(Jose Carlos Capinam / Roberto Mendes, Yá Yá Massemba)
Travessia longa na voz de Bethânia ou na tragédia do mar da Letra de Castro Alves, entre elos e açoites, correntes, mortes e mortalhas, cujo encontro no imo da dor marcou o encontro de ancestres e, eles, os negros, nagôs, jejes, de Keto, de Angola, criavam o culto do porão, o diálogo dos deuses, voduns, inquices e orixás, que seria o culto da senzala e do canto da noite. Eles também, aqui chegavam, misturados, entretanto escondidos, proibidos, perseguidos:
Quem me pariu foi o ventre de um navio
Quem me ouviu foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão
Vou baixar no seu terreiro
17
Bethânia continua cantando:
Eira e beira
Onde era mata hoje é Bonfim
De onde meu povo espreitava baleias
É farol que desnorteia a mim
Eira e beira
Um caboclo não é Serafim
Salve as folhas brasileiras
Salvem as folhas pra mim
Se me der a folha certa
E eu cantar como aprendi
Vou livrar a Terra inteira
De tudo que é ruim
(Jota Velloso / Sophia De Mello Breyner, Kirimurê)
E a despeito de tudo e de todos, por sua sabedoria da errância e aversão à lógica do próprio, o solo dessa terra não tem dono; ou melhor, o dono dessa terra não domina sozinho, não é um, e, somando-se ao espírito de comunidade vindo trazido à força da África, desconstrói a própria dominação Católica.
Eu sou o dono da terra
Eu sou o caboclo daqui
Eu sou Tupinambá que vigia
Eu sou o caboclo daqui
E assim nasce a Umbanda, com o baixar de um espírito: um índio, um qualquer, pois poderia ser qualquer outro, desce de uma estrela colorida, brilhante e, numa velocidade estonteante, o Caboclo das Sete Encruzilhadas pousa no coração do hemisfério sul, na América, num claro instante.
18
Este certo espírito, que desce em Seu Zélio, não ordena A religião, pois a umbanda começa não com o aparecimento de um Deus que revela as tábuas a um profeta, mas sim com um espírito singular ensinando o que não se ensina: religiosidade como acolhimento. O Congá, altar que tem seu surgimento no sincretismo forçado pela proibição do culto aos orixás e cujo pano branco abaixo das imagens católicas apenas servia para esconder os assentamentos dos orixás, subverte a lógica da dominação e obriga os santos a coabitarem, numa comunidade sem comum, o mesmo espaço sagrado com tantas outras entidades, não apenas índios, mas também boiadeiros, ciganos, escravos, crianças, prostitutas, cafetões, malandros, bêbados, marinheiros, baianos e quem mais aparecer.
19
Uma estranha observação aqui tenta compreender a diferença do assombro em nossas terras: diferente da lógica da possessão demoníaca (não obstante as igrejas neopentecostais tentem tanto aproximar), e muito diferente da economia da propriedade, aqui, o espírito que assombra obsedia a pessoa e não a casa: é a lógica do encosto. Espíritos perdidos, que não são demônios, mas que apenas rumam, errantes, por aqui, espectros sem terras, nômades, podem tomar gosto por alguém e, por qualquer que seja a razão, se apegar. De algum modo, o encosto tem a ver tanto com o acaso como com uma relação com a singularidade da pessoa. O encosto, aqui, apresenta tanto a lógica da entidade, do chamado guia, como também do obsessor, chamado, aqui, egun. É sempre singular.
20
“Mar, misterioso mar, que vem do horizonte. É o berço das sereias”. Outra estranha observação: Se Patocka diz que o catolicismo, ainda que por vir, como promessa, sempre se construiu como uma religião que, por pretender a universalidade (Katholon), fez isso de modo a incorporar as datas, as divindades e as culturas sobre as quais se expandia, configurando uma religião quase-politeísta, cuja importância significativa dos santos atesta. Mas, como acabo de dizer, a lógica da dominação tem sempre seu avesso, a contaminação, e, como Santa Sarah Khali, Nossa Senhora Aparecida, Nossa senhora de Guadalupe, Iemanjá se torna uma grande Santa Católica no Brasil, com uma importância muito maior do que a que possuía na África: na impureza desse catolicismo mestiço, todos os católicos podem jogar flores a ela para pedir as bênçãos ao novo ano que se aproxima. Estranhamente, a Iemanjá branca pode parecer herdeira, de um lado, das sereias que encantaram Ulisses, das habitantes do rio Reno e mesmo da Lorelei de Clarice, e da filha de Olokun, por outro, somando-se a estas a herança de Iara. Uma afirmação que pode parecer polêmica: em nossos tempos atuais (e deixando sublinhada aqui toda a violência do catolicismo, da catequese, do embranquecimento, do epistemicídio), tal Iemanjá sereia, mesmo ela, ainda que empalidecida, é sinal de resistência à neopentecostal pretensão universal, que se expande através da repulsão às diferenças e da quebra dos ídolos. Esse tipo de postura antifilosófica – a do conjuro e do exorcismo – é a que mais precisamos combater hoje, sobretudo em tempos em que, nesse Rio que é de Janeiro, ao invés de prefeito, temos um bispo.
Olha o canto da sereia, Ialaó, oquê, ialoá
Em noite de lua cheia ouço a sereia cantar
E o luar sorrindo então se encanta
Com as doces melodias os madrigais vão despertar
Ela mora no mar, ela brinca na areia
No balanço das ondas, a paz ela semeia
Ela mora no mar, ela brinca na areia
No balanço das ondas, a paz ela semeia
Oguntê, Marabô, Caiala e Sobá
Oloxum, Ynaê, Janaina e Yemanjá
São rainhas do mar!
(Dionel / Veloso / Vicente, Lenda das sereias).
21
Como prótese de conclusão, para não anunciar o fim abrupto, como a mimetizar a aparição que aos poucos se esfumaça, poderia perguntar: a quem os espectros aparecem? Ou, se aparecem a todas e todos, se eles estão-aí, quem pode os ver? Quem pode os ouvir? Estamira responde:
Tem o eterno, tem o infinito, tem o além e tem o além dos além. O além dos além, vocês ainda não viram. Cientista nenhum ainda viu o além dos além. Sabe de uma coisa, o homem, depois que ele fica visível, depois que nasce, ele, depois que ele desencarna, a carne se for pro chão dissolve, derrete, fica só os ossos, os raios, os cabelos. E aí ele fica formato a mesma coisa, mas só acontece que fica transparente, perto da gente. O meu pai tá perto de mim, minha mãe, os amigos. Ó, tô vendo, hein!? A gente fica formato transparente e vai. Vai como se fosse um pássaro, voando. Ó, lá em casa eu vejo é muito, vai muito, lá em casa.
(Estamira: fragmentos de um mundo em abismo. São Paulo n-1, 2013, pg 17).
Então, qua esta mira, cabe-me aqui assumir minhas heranças, deixar-me assombrar e, não importando se divinas ou demoníacas, se simbólicas ou diabólicas, para além e aquém do bem e do mal, do Atlântico ou do Mediterrâneo, perceber que são esses espectros que nos constituem como isso que podemos, aqui e agora, chamar, provisoriamente de eu: mais que um, menos que um.
Créditos na imagem: William Turner. “Barco a vapor numa tempestade de neve.”
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