O livro Passagem nietzschiana, recém-publicado por Rosa Dias pela editora Mauad X, é composto por oito artigos e um roteiro cinematográfico. Quatro dos artigos apresentam pesquisas a respeito do filósofo Friedrich Nietzsche, uma das principais especialidades da autora que é professora titular de filosofia da UERJ e já produziu vasta bibliografia sobre esse pensador. A edição também contém o roteiro do filme Dias de Nietzsche em Turim, realizado em parceria com o diretor Júlio Bressane, e dois artigos são dedicados a análises de outros filmes desse cineasta. Além disso, também há um artigo dedicado ao conto “Meu tio o Iauaretê” do escritor João Guimarães Rosa e outro tematiza os grifos e anotações feitos pelo poeta e compositor Wally Salomão em alguns livros de sua biblioteca particular. Passagem nietzschiana presenteia os leitores com textos inéditos, em sua maioria apresentados inicialmente como palestras acadêmicas realizadas em diferentes épocas e instituições de ensino. Todos tratam do vínculo entre arte e vida e do processo de criação artística tanto para o artista criador como para o público geral que aprecia e valoriza obras de arte.
O primeiro texto do livro é o roteiro do filme Dias de Nietzsche em Turim, lançado no ano 2000. Todo ele é composto por escritos do próprio Nietzsche. A partir de meticulosa pesquisa, o roteiro foi estruturado não apenas com trechos de livros efetivamente publicados pelo filósofo, mas também com obras póstumas, anotações e cartas escritas por Nietzsche. Esse filme, dirigido por Júlio Bressane, participou de diversos festivais brasileiros e internacionais. Conquistou os prêmios de melhor roteiro no Festival de Brasília e o Bastone Bianco no Festival de Veneza em 2001.
O texto seguinte é “A família do barulho na Belair de Júlio Bressane” que trata do importante movimento cinematográfico realizado pelos cineastas Rogério Sganzerla e Júlio Bressane a partir de sua parceria na criação de uma produtora de filmes experimentais em 1970. A seguir, em “Tradução literária no cinema de Júlio Bressane”, Rosa Dias analisa os longa-metragens Tabu (1982), Brás Cubas (1985) e Sermões (1989), realizados a partir de obras literárias de Oswald Andrade, Machado de Assis e Antônio Vieira, respectivamente. A autora investiga o processo criativo desse cineasta que, longe de somente tentar transpor para a tela representações redundantes de histórias literárias, realiza traduções experimentais intersemióticas para a linguagem cinematográfica em que a expressão principal não provém apenas de narrativas calcadas em palavras, mas principalmente de luz, movimento, angulação e montagem.
Em “Homem-Iauaretê” Dias examina o conto “Meu tio o Iauaretê” de João Guimarães Rosa, tendo o poeta Haroldo de Campos e o filósofo Gilles Deleuze por interlocutores. Em sua interpretação, destaca o devir animal do protagonista indígena caçador e parente de onças em diálogo com o personagem forasteiro, narrado através de linguagem inventiva do escritor que escapa a clichês e opera uma espécie de desterritorialização da língua portuguesa. Na sequência vem o artigo “Waly Salomão em sua ‘Biblioteca de grifos’”, feito para uma exposição ocorrida em 2014 na Biblioteca Parque Estadual do Rio de Janeiro. Ocasião em que durante alguns meses ficaram em exibição livros do acervo pessoal do escritor Waly Salomão com os destaques e anotações pessoais que ele fez nos exemplares. A partir do estudo dessas intervenções e diálogos, Rosa Dias pensa a respeito da inter-relação vida e obra na arte de Waly Salomão.
Os quatro últimos artigos tratam da filosofia de Nietzsche. O primeiro deles “‘Toda música é música de sereias’: o drama da interpretação” investiga a crítica de Nietzsche ao idealismo metafísico que teria cindido o mundo em dois ao considerar o mundo imanente a que se tem acesso imediato como inferior frente a um suposto mundo verdadeiro transcendente a que só se teria acesso mediado pela razão abstrata especulativa. Perspectiva niilista em que os sentidos corporais são comparados à sedução do canto das sereias que leva à ilusão e ao erro. Em contraposição a isso, a autora considera que Nietzsche apresenta uma filosofia imanente aliada das artes em que o corpo e os sentidos humanos são enaltecidos. O artigo seguinte explora a mesma problemática. “Nietzsche, uma risada de ouro” destaca a função corretiva e libertadora do riso, entendido como expressão diretamente relacionada à potência vital na filosofia trágica dionisíaca nietzschiana.
Os dois últimos artigos do livro são decorrentes de pesquisas que contribuíram para a realização do filme Nietzsche em Sils-Maria, média-metragem feito em parceria com Júlio Bressane em 2019. “O fugitivus errans em Sils-Maria” trata da rotina do filósofo andarilho nessa localidade Suíça, principalmente durante sua última estadia em 1888. “O eterno retorno de Nietzsche em Sils-Maria” aborda a interpretação de Pierre Klossowski de um dos principais e mais populares conceitos nietzschianos, o eterno retorno, que Nietzsche declarou ter criado a partir da observação de um bloco de pedra em forma de pirâmide enquanto caminhava em um bosque da cidade de Sils-Maria em agosto de 1881.
Rosa Dias possui vasta produção artística e filosófica. Seus livros Nietzsche educador (1991) e Nietzsche e a música (1994) se tornaram obras de referência nos estudos de estética e de filosofia da educação. Além de outros autores e temas filosóficos, como Arthur Schopenhauer e Henri Bergson, também pesquisou e escreveu a respeito de diversas outras manifestações artísticas e culturais brasileiras, entre as quais podemos destacar o livro Lupicínio e a dor de cotovelo (1994) e a organização da coletânea de artigos Arte Brasileira e Filosofia (2007) decorrente de evento homônimo.
Neste livro recém-lançado, Passagem nietzschiana, Rosa Dias apresenta interpretações próprias de temas e questões prementes da filosofia e das artes no Brasil contemporâneo. Nas palavras da autora, “Em face dos perigos que frequentemente vivemos, do olhar que censura as obras artísticas e que pretende cercear a filosofia, para não nos deixarmos capitular por uma rede paralisante de pensamento, que se estende em todas as direções, que quer destruir o que já é um legado da sociedade, pretendemos, através deste livro, apresentar textos que tratam da criação artística – estes são sempre bem-vindos, por representarem uma resistência ao movimento que quer desmerecer e diminuir o papel que têm a arte e a filosofia em nossa existência e até mesmo sufocar sua relevância”.
Créditos na imagem: Nietzsche ; Imagem no corpo do texto: DIAS, Rosa. Passagem nietzschiana. Rio de Janeiro: Mauad X, 2020.
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