[…] Sente como pode ser longo
o que nós chamamos de agora.
Que é como um tempo de borracha
que se elastece ou que se corta.
Esperar é viver num tempo
em que o tempo foi suspendido.
Mesmo sabendo o que se espera,
na espera tensa ele é abolido.
Se se quer que chegue ou que não,
numa espera o tempo é abolido.
E o tempo longo mais encurta
o da vida, é como um suicídio.
João Cabral de Melo Neto. Auto do frade (1984)
A poesia tem sido uma saída importante para mim nesses momentos de pandemia. Ando pelo casa com livros na mão lendo em voz baixa. Vou ao quintal, tomo meu café e acendo meu cigarro, escrevo sobre minhas mágoas de amor e sobre as dificuldades do tempo em que vivemos. Para um poeta amador, sinto bastante orgulho de minha alma poética solitária. Até penso ter inaugurado uma nova forma de escrita que batizei de maneira tosca como “poesia sem ritmo” ou “a surdez de Eros”. Minha poesia não chega nem aos pés de João Cabral, a intenção também nunca foi essa. Dificilmente alguém conseguiria, por puro divertimento, igualar a genialidade cabralina. Ele é um poeta das coisas rústicas e belas. Faz do encontro entre a literatura e o cotidiano uma inigualável experiência estética e uma imensidão de mundos possíveis. A leitura de Auto do frade foi um conforto importante para lidar com essa tensão que vivemos como ser-para-morte. Principalmente, em lembrar da alma inquieta e explosiva do mundo, e de que a morte nem sempre tem fome. Este parágrafo pouco serve ao texto, mas é uma forma de desabafo. Se possível, fiquem em casa e façam algo que gostem, mesmo que não sejam tão bons assim. Não percam a inspiração para a tristeza. Como este ensaio quer demonstrar, o melhor remédio ao vírus da aceleração, que subtrai nossa felicidade, é esperar.
Esquecemos como desacelerar. Isso é evidente. Se tem algo que nos atingiu antes mesmo da pandemia da covid-19, é o vírus da aceleração. Estamos enjaulados por essa sensação temporal. O coronavírus desvela os graves problemas que atingem nossa sociedade. Ela está doente há muito tempo; não mais nos falamos, não amamos mais uns aos outros, não sentimos mais o envolvimento dos corpos. Carecemos de presença. Isso tudo tem um pretexto revelador: aparentemente, não temos mais tempo, ou, não podemos perder o pouco de tempo que temos. Como devemos desperdiçar nosso tempo? Isso mesmo, desperdiçar. Não interessa qual palavra fosse aqui empregada. O que fazemos com o tempo, hoje, não passa de um desperdício. Devemos quebrar a ilusão de que o tempo pode ser armazenado, que iremos perde-lo se não usarmos corretamente, ou ainda, que podemos dedicar tempo para isto ou aquilo. Esse tipo de espera que apresenta-se como fuga ou lazer é um dispositivo que apenas aprofunda a aceleração na qual estamos inseridos. Como disse uma vez Antonio Candido, o tempo é o tecido da nossa vida. Nós somos, a todo tempo, tempo.
Nos falta intensidade, por isso nos falta tempo. Esperamos o momento certo, o abraço que não é seguido pelo abandono, o beijo carinhoso e demorado, o irrealizável. A aceleração nos retira a principal forma de experimentar o tempo; os sentimentos que se desvelam a partir do encontro com o mundo e suas coisas. Entendemos cada vez menos o mundo porque estamos cercados de informação e desencontros, tudo passa tão rápido que não é possível captar os momentos, os cheiros, os sons.
A aceleração provoca um tipo de espera peculiar, que pode ser definida como uma espera ansiosa. Essa espera é o vetor que mantém as estruturas da aceleração. Estamos sempre sendo pressionados pela expectativa. Mal acabamos um trabalho e já estamos pensando em outro. Fazemos home office. Torna-se cada vez mais comum a sensação do esperar em que temos de “preencher o tempo”, ocupa-lo para nos tornarmos menos ansiosos. Isso exprime tornar substancial um espaço até então vazio. O vazio é inaceitável. Nesse sentido, o mundo como tal encontra-se, determinado pela quantidade enorme de informações, pela virtualidade, pelo capitalismo financeiro, e pela mudança nas relações de trabalho, inviabiliza o esperar sem pressa, em pleno controle da consciência e dos afetos. Esperamos fazendo outras coisas até aquele futuro esperado se presentificar, numa espécie de aceleração tautológica.
A aceleração se constitui, portanto, na imposição e na pressão psíquica e corporal de que nunca podemos estar sossegados, sob o risco do colapso por não sabermos lidar com a pausa, da incapacidade de aprecia-la. A expectativa deve ser alimentada a todo instante, criando novas esperanças e preenchendo o tempo com ações e pensamentos dos mais diversos tipos. É um ciclo interminável de ansiedade e atualização, de um certo prazer em se sentir em movimento, de temporalizar freneticamente a existência frente a uma realidade brutal e relações interpessoais monótonas e indiferentes. A aceleração é um mecanismo que se autonomizou como produtora dispersa de consciência e de afetos. Ou melhor, sua manutenção depende da suspensão dos afetos e do colapso da consciência.
Essa fissura pode ser definida como impassibilidade, ou aphateia, como diriam os gregos. O mundo já nos cansou de tantas maneiras, que os desejos irrealizados e as decepções, fazem da morte a espera mais desejada. Não somos capazes e nem queremos captar mais nada, é a perda total de sentido da vida, estamos no mundo apenas como um último esforço físico e mental. A depressão, por exemplo, é um sintoma dessa ausência, doença que se torna cada vez mais comum nas sociedades contemporâneas.
A epígrafe que traz os versos de João Cabral de Melo Neto, faz sentido se pensarmos esse tipo de espera que a aceleração produz e seus efeitos. Na espera ansiosa, o tempo é a redução de sua duração pelo movimento. Uma impossibilidade de experimentar um tempo longo. Esperar sem realizar nada é desestabilizar um certo ritmo já estabelecido. Em um estado de aphateia, o tempo é a eternidade do agora, a borracha que se expande até a ruptura. Mas o que poderia ser uma espera que suspende o tempo? É justamente o que tento descrever aqui. Esperar, em seu sentido essencial, é abolir o tempo para reorganiza-lo. Espera, em sentido pleno, é serenidade. O impacto que arrepia pelo simples gesto de estar diante de algo ou de alguém. Não é apatheia pois ainda somos capazes de sentir, nem ansiedade, pois estamos envolvidos e concentrados em um momento de epifania.
A atual crise aberta pela pandemia do coronavírus, escancara a realidade cruel em que vivemos e a gaiola que nossa experiência temporal se encontra. Um dos desafios imposto pelo novo coronavírus é justamente o da espera; desacelerar. Desafio este que vem sendo ignorado por líderes políticos como Bolsonaro. O Estado necropolítico e economicista, manifesta-se agora na indiferença e no impedimento do esperar. Aqueles que falsamente são colocados perante a escolha entre morrer de fome ou morrer contaminado pelo vírus, são as vítimas de um sistema impiedoso que deseja acelerar sem perguntar por nada mais. A incapacidade do Estado em fornecer uma seguridade social aos trabalhadores vem justamente das estruturas temporais de aceleração, que é a determinante básica para o funcionamento do capitalismo financeiro e das grandes empresas de manufaturas. Daqueles que lucram diante da tragédia humana.
O tempo da espera, em algum sentido, é o momento oportuno que se abre contra o dito estado normal das coisas. É o espaço que apresenta-se ainda como indefinido, e precede o futuro das estruturas sociais. A espera como o vazio, um lugar no qual o ser pode desprender-se de suas determinantes a priori ou mais imediatas, para reconstruir seu mundo, outrora estranho e provocativo, mas que agora pode assumir diferentes formas que respondem a nossa capacidade de entendimento e decisão.
Que a espera não seja sinônimo de passividade, mas de reflexão para se indignar contra os absurdos de um presidente que insiste em sua guerra cultural até as últimas consequências, que se abstém diante da morte da população indefesa, e se aproveita da cegueira causada pela alienação neoliberal. Mais do nunca, desacelerar o sistema é um ato subversivo. Dado que nossa resposta imediata ao vírus foi também uma aceleração intensa de alguns processos sociais, esse texto é uma lembrança de que podemos, às vezes, contemplar o mundo ao nosso redor e sentir sua intensidade, como ato de compreensão de seus fenômenos. Isso é fundamental para termos controle da consciência e dos afetos em momentos de crise.
Tenho insistido, como em outro ensaio publicado neste portal, que o coronavírus nos abre diversas possibilidades de reorganizar o mundo em que vivemos, de fato mais desanimadoras do que empolgantes. Mas estar aberto as possibilidades significa também poder navegar, ainda que provisoriamente, entre passado, presente e futuro. A temporalidade da espera é uma dessas opções. A espera é nosso reconhecimento do mundo para sentir seus impactos, negativos e positivos, buscar confortos emocionais no passado, reformular como agimos, e definir nossas expectativas como sociedade. A verdadeira mudança é a transformação da maneira pela qual nos relacionamos com o tempo. As esperas ilusórias da aceleração estão nos levando ao suicídio, como descreve o poeta. Por outro lado, a espera serena pode levar ao suicídio das estruturas que nos aprisionam.
Créditos na imagem: Reprodução.
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Ricardo Mateus Thomaz de Aquino
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