Ensino Remoto Emergencial: relato de uma desorientação

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relato pra Malu,

a primeira geógrafa

que me fez me lançar

no terreno poroso

das u

topias

 

No dia 12 de março de 2020, às 19h de uma quinta-feira, terminei a aula com a voz regateando. Apaguei o quadro-negro (que é verde e em São Paulo se chama lousa), joguei conversa fora com um e outro (há sempre quem deixa pergunta pra depois), passei no banheiro pra lavar a mão (ainda vou no cuspe e giz), na secretaria pra roubar um biscoito (que paulistas chamam de bolacha), na minha sala pra despejar meu material, no bandejão pra comer, no ônibus pra voltar pra casa. E pedi pro piloto (que em qualquer outro lugar se chama motorista) abrir a porta no sinal fechado (que no Rio é ponto, se o piloto ouvir teu grito lá do fundo). Com variações, fiz o que vinha fazendo há dez anos pela Gávea e, com pausas, desde 2001, entre BH e Mariana.

21 de maio de 2020, 19h, quinta-feira: termino a aula com os olhos embargados. Desligo o Zoom (que oscila muito no meu velho laptop), jogo conversa fora com um e outro no WhatsApp (cujas notificações não pararam um minuto), passo no Facebook (e confiro barracos, que os jovens chamam de treta), na geladeira (e abro uma cerveja), no fogão pra cozinhar, na pia pra limpar a sujeira, na geladeira pra abrir outra cerveja. E encomendo pela internet (tô sempre voltando à internet) o que falta em casa (tá sempre acabando algo em casa).  Com variações pelo Twitter e YouTube, faço o que venho fazendo desde o início da quarentena, com as intermitências do tédio, de livros que nunca acabo de ler e de fantasias inconfessáveis.

Ligo pra um casal de amigos e a conversa rola solta, das estratégias de sobrevivência à beleza dos ensaios do Krenak, da melancolia dos saturados ao ativismo ressentido. E sobre Ensino a Distância, pois também falo da trabalheira improvisada da semana, na pós e na graduação, forçado pelas circunstâncias, pela necessidade de sobrevivência da minha universidade e pela busca de alguma sentido no desamparo.

Então, conta mais um pouco. Jura? Sim. Peraí, a cerveja acabou, vou pegar outra. Mas volta e conta como tá sendo.

Tá esquisito. Mas acho bom começar evitando mal-entendido: não é Ensino a Distância o que tenho feito. EAD é algo com método e planejamento próprios, com boas práticas, mesmo limitadas a poucos nas universidades. Sobre EAD, há quem faça melhores relatos. Minha experiência é outra. Prefiro chamar de Ensino Remoto Emergencial. ERE, não EAD. Muitas tretas sobre isso nem começariam se essa confusão pandêmica fosse desfeita.

Tem mais. Não consigo falar reto sobre o que anda torto. Minhas hipóteses sobre ERE abundam em metáforas fracas e porosas. Fracas, porque, mesmo querendo, não consigo escrever poeticamente, só paráfrase em prosa ruim de poesia boa. Porosas, porque vivem do ar do momento. Fracas e porosas, porque não se pretendem modelo, nem pra mim mesmo. Me aproximo do ERE por tentativa e erro. Sem deslumbramento com o ensino remoto, mas sem recusas cabais. Com boa dose de desconfiança, mas não a ponto de esquecer o que há de fóssil no ensino universitário. Tenho saudade de aulas presenciais, sem compensá-la com fingida idealização. De todo modo, vocês sabem, não tive opção. Fui colocado nesse mundo do dia pra noite. Um semianalfabeto digital que nunca antes na história de sua docência sequer vacinou seu laptop com antivírus. E que depois de overdoses de redes sociais, lives e duas aulas remotas seguidas, como hoje, só consegue ver, pela frente, tela plana.

Vocês sabem, essas cervejas, essa quarentena, deixam a gente bobo como o diabo. Mas por que evocar o demo a essa hora? De bobo ele não tem nada e com ele não tem conversa. O demo é a vida plana, sem nuance colorido incerteza fragilidade tédio tentativa erro. Sem cerveja e embriaguez remota. O demo odeia metáfora, me disse uma amiga. Gosta é de universidade plana, aula plana. O demo achata tudo, eu e vocês juntos, menos a curva da contaminação. Ele gosta mesmo é de andar com o cemitério no bolso direito. Às vezes no esquerdo também. Triste advertência daquele anjo da história meio estupefato, lembram? Olho pra ele e vejo o rosto do próprio Benjamin. Longe da carreira universitária, arriscou até com programas de rádio. Ensino Remoto Emergencial avant la lettre. A ideia era entortar a terra plana e temperar o veneno da vida. Veneno bem temperado é remédio. O lance era disputar a linguagem do demo, roubar o que dava do fogo planificado e planificador, preparar outras ceias e sugerir outros carnavais. Essa história é bonita, mas não acabou muito bem. Ou não acabou ainda. Estamos aqui, eu e vocês, brigando de novo contra o demo e tentando seguir com histórias remotas, remotamente.

Com o tal batendo na porta, melhor isso do que ficar esperando, esperando, esperando… o que mesmo? A pandemia passar? Qual delas? Em certas circunstâncias, a paralisação é que é o demo. Te fixa num lugar e te barra o caminho. Em certas circunstâncias, o lugar fixo é o demo. ERE é péssimo, mas tem uma vantagem: não tem lugar fixo na universidade. Na emergência, tem que ser inventado. Lembro de novo do radialista angélico. Tinha um olhar meio estupefato, mas não dava a impressão de paralisado. Descobriu nada, névoas de nadas? Outro dia, sonhei que estava morrendo. Eu tentei acordar e não consegui mexer nem mesmo a ponta de um dedo. Era paralisia do sono, descobri depois na internet. Quando despertei, só conseguia pensar na advertência do radialista: com o anticristo na curva, nem os mortos estarão em paz. Penso em Manaus, no Rio de Janeiro. Remotamente, penso nisto: a resignação também é o demo. O radialista descobriu ao menos isso.

E quem é o radialista da história nos dias de hoje?

Um anjo-benjamin, eu duvido muito. Além de estupefato, andava meio sozinho. Tinha um quê de romântico, daquele tipo de herói sem lenço nem documento, daquele tipo de erudito que domina muitas linguagens e muitos saberes. Essa figuração heroica do intelectual já era, é apenas uma fotografia na parede. Acho que ela não ajuda a orientar as tentativas de hoje. Anjos daquela cepa há muito nos abandonaram. O demo não. Mas a gente não tá tão sozinho assim. Um pouco isolados, mas não (ainda) desolados.

Trabalhamos, eu aqui vocês aí, em universidades com alguma infra e com muita gente que pode assumir rédeas e rádios. Não temos muito é projeto comum ou comunitário. Esquecemos o que é isso e como fazer. Ou nunca aprendemos. Temos verdadeiras ilhas de inteligência, produção, edição, rádio, televisão, internet. Mas é muita ilha. Não acho que o novo radialista da história será um gênio solitário, mas uma ilha verbovocovisual de produção e edição que, talvez, nem seja uma ilha. Onde nenhuma ilha é uma ilha se inventa, talvez, um outro solo pra utopia.

Como no ERE, dispensa soluções mágicas e finca (só um pouco) o pé no chão. Como no ERE, dispensa idealizações e mete (de bico) o pé na bola. A meta é não perder feio. No início, entre moodles, pluncts, placts e zooms, não fui a lugar-nenhum. Hoje, na pós, brigo pelo empate. Acho que tá dando. Na graduação, o adversário fez 3 x 0 logo na primeira semana, comigo dando butinada e voadora pra não levar mais. A briga é pra marcar um golzinho feio e não levar um humilhante 7 x 1. Mas gol feio não há, feio é não marcar gol. Palavras de Dadá Maravilha. Taí, minha utopia remotamente pedagógica ou é dadá ou não é. No máximo, almeja o mínimo que resta: um retrocesso sustentável. Retrocesso sustentável, diga-se, já são palavras de outro grande jogador, o poeta Roberto Piva. Mais que jogo de palavras, é um lance político. Que pode ser assim: retroceder pro campo das experimentações remotas; sustentá-lo com medidas miúdas e ao alcance das mãos, com outras regras de avaliação e novos jogos institucionais que saibam induzir e valorizar ilhas que não são ilhas. Dá? Dá!

Pros lances graúdos, o jogo é mais embaixo. Com o demo batendo na porta, só batendo na Casa das Leis. Ali nunca teve anjo. Mas pro ERE retroceder sustentavelmente, só achatando a curva da exclusão com remédio comprovado em outras emergências: bolsa-remota que coloque dentro quem tá fora. Até no meu departamento tem quem tá fora. Ou você pensa que meu aluno é só elite carioca na licenciatura, querendo virar professor. Dá pra ter bolsa? Não sei, só não consigo pensar em nada melhor pruma pedagogia remota que periga ir longe. Mas sobre orçamento, lobby e política graúda minha experiência é nenhuma. Ela não é pouca nas miudezas desse nosso cotidiano de avaliações, editais, comitês de área, homens-sucupiras, qualis, que poderiam ficar, remotamente falando, menos miúdas. Como a barca do ERE (e não EAD, bom repetir). ERE é bom? Não acho. Imagino que nem os alunos, mas isso tenho que perguntar pra eles. Rola alguma alegria quando baixo a bola e jogo dadá. O lance é chegar junto e respirar um ar de humanidade. Pra mim, ao menos, isso tem sido barreira contra o demo. Até ele entrar.

 

Eita! Melhor mudar de assunto.

 

Conseguiram achar o Junk-box!? Que baita livro!

 

Não falei que o cara não era senão poeta?

 

Na Tropicapricórnia cavalgam os gorilas blindados de aço.

 

Mamãe, mamãe, coragem, a vida é assim mesmo...

 

 

 


Créditos na imagem: Man Ray, Self-Portrait Assemblage (1916).

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Henrique Estrada Rodrigues

Formado em História na UFMG, com doutorado em Filosofia na USP. Professor de Teoria da História na PUC-Rio desde 2011.

6 comments

  1. José Antonio Carlos David Chagas 28 maio, 2020 at 00:43 Responder

    Melhor que ler o texto é imaginar que Henrique, apesar do isolamento social abre cerveja para ele e para o interlocutor e conversa com quem lê. Henrique tem destas coisas que só os genias têm: revela no que fala, no que escreve’gesto, quem é. E sabe Ser como poucos. Gostei demais do que acabo de ler. Em pé, abraço-o demoradamente. Como? No laço que a palavra fez.

  2. Rebeca Gontijo 28 maio, 2020 at 09:33 Responder

    Excelente. Gostei muito. Fazendo trocadilho com a sigla ERE, lembrei que, em iorubá, Erê quer dizer brincar. Por meio dos Erês, os Orixás manifestam sua vontade e o aprendiz ou noviço aprende coisas fundamentais. Talvez possamos aprender alguma coisa em meio à pandemia e ao pandemônio.

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