Weintraub atualiza uma compreensão antiquada de “povo brasileiro”

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“Odeio o termo povos indígenas. Odeio este termo. Odeio. Povos ciganos. Só tem um povo neste país. Quer quer, não quer sai de ré. É povo brasileiro. Só tem um povo neste país. Pode ser preto, pode ser branco, pode ser japonês, pode ser descendente de índio. Mas tem que ser brasileiro”. Este é um trecho da fala do ministro Abraham Weintraub, da educação, divulgada recentemente. A reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020 ficará marcada como uma peça política de horror. Todas as intervenções são pequenas amostras de perversidade e de inimizade como motriz político. As falas desconexas e inconclusas, a paranoia que cerca as personagens, a precariedade dos discursos são demonstrações de uma vertiginosa decadência da política. Weintraub é mais um nesse quebra-cabeça de concepções repugnantes. Ele expressa sua compreensão antiquada de “povo brasileiro” para salientar o desejo de eliminação da diversidade.

A reação delirante de Weintraub, destacada no trecho supracitado, dá-se pelo que o ministro acredita ser o conjunto de inimigos do “povo brasileiro”, uma reunião ambígua de elementos abstratos que se acredita ter de exterminar. “Só pode ter um povo”, todo o diferente deve “sair de ré” ou ser exterminado. O reacionarismo que dá o tom deste conceito de povo atribui politicamente uma visão idílica de um tempo em que havia unidade na identidade brasileira, agora ameaçada pela presença do diverso. O ódio e o medo caminham lado-a-lado na invenção de um mundo atual, perigoso e corrupto, que precisa ser consertado com ferramentas nostálgicas.

Em 1937, no calor do golpe do Estado Novo, o jornalista José Soares Maciel Filho expressava seus anseios sobre o “povo brasileiro” e o Estado: “bastaria o problema racial para justificar com a razão de Estado, o novo regime. Principalmente, se considerarmos que o problema não se apresenta como afirmação de uma raça contra as demais, antes, pela necessidade imprescindível e inadiável de constituir uma raça brasileira” (MACIEL FILHO, 12/11/1937)[1]. Na ocasião, o jornalista argumentava que uma nova maneira de gerir o Estado, a razão de sua existência, deveria conduzir a experiência histórica de formação do “povo brasileiro”. Um governo soberano e autoritário era a ferramenta necessária para a criação dessa nova “raça”, o Estado deveria ser governado separando os elementos diferentes das decisões sócio-políticas. O jornalista ainda reforça: “temos que cumprir nossa missão preparando o povo, criando a raça, formando o Brasil”.

Tanto na “razão de Estado”, de Maciel Filho, quanto na fala do ministro bolsonarista, cabe a um estado autoritário da política “missão patriótica” de cuidar da unidade da identidade brasileira, combatendo a diversidade, separando o diferente. A diferença era de que no tempo do jornalista, a “raça” ainda estava para se formar, num futuro obscuro, enquanto que Weintraub sente-se nostálgico de um passado em que o “povo brasileiro” era uno, intocado pela “mancha” da diversidade. O que se apresenta nessas duas visões de mundo é a ideia de que o “povo brasileiro” deve esmagar os povos brasileiros. Dessa maneira, Weintraub atualiza, com uma linguagem precarizada, a concepção arcaica da brasilidade una e indivisa.

“Só pode ter um povo neste país”. Quando o ministro da educação expressa tal sentença num país que extermina os poucos ameríndios que sobreviveram, que banaliza a violência contra os afro-brasileiros, ele só pode estar querendo sugerir uma coisa… O ideário do branqueamento não é uma concepção extinta no horizonte do pensamento brasileiro, muitas vezes ele aparece de maneira abstrata e confusa, outras tantas como metáfora patriótica. Até meados do século XX, este ideário é expressado muitas vezes a partir do termo biopolítico da “raça”, a “raça brasileira” faria desaparecer todas as outras. Weintraub atualiza este ideário antiquado – substituindo “raça” por “povo” e deslocando da expectativa de realização para a nostalgia de um momento perdido no tempo –, um projeto de arcaísmo 2.0.

 

 

 


NOTAS

[1] MACIEL FILHO, José Soares. A razão de Estado. In. O Imparcial, 12/11/1937. A grafia foi atualizada.

 

 

 


Créditos na imagem: Indígena pertencente ao povo Araweté. Foto de Eduardo Viveiros de Castro. Reprodução.

 

SOBRE O AUTOR

Renan Siqueira Moraes

Doutorando em história pela UFOP, fluminense de nascimento e tricolor por convicção. Pesquisa o pensamento racialistas brasileiro e, no doutorado, se dedica a uma história intelectual do conceito de democracia racial.

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