Haicai historiográfico

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Apresento aqui textos historiográficos (ou seja, não se trata aqui de literatura propriamente, e sim de narrativas históricas) inspirados numa das formas poéticas mais tradicionais, o haicai – aquele poema de três versos, forma inventada no Japão e levada à excelência por Matsuo Bashô (FRANCHETTI, 1996). Em sua extrema concisão, reforçada por outras regras, especialmente a da concretude, de se evitarem abstrações e temas genéricos, e a da referência necessária à estação do ano, o haicai pode parecer bem adequado aos nossos tempos apressados e atualistas (PEREIRA; ARAÚJO, 2018). Mas a ideia do haicai não é ceder à pressa, ao contrário, é tornar o texto mais lento. Trata-se de exibir relações implícitas entre as coisas, os acontecimentos, as pessoas. A concisão sugere que existem outros sentidos sob as aparências do texto, solicitando, assim, uma leitura lenta, meditada.

Nesses haicais historiográficos que aqui apresento são quatro as regras básicas (você pode criar suas próprias regras, ou acrescentar outras, até porque uma das tradições do haicai é o trabalho coletivo sobre uma forma definida): primeira, ser fiel à documentação, como o mais minucioso positivista; segunda, evitar conceitos e termos abstratos, apresentar situações concretas. Além disso, terceira, seguir o princípio da montagem; tendo como exemplo os epigramas de Brecht sobre a Segunda Guerra Mundial, em que ele recortou fotografias tiradas de jornais e escreveu, como comentários, pequenos poemas de quatro versos (DIDI-HUBERMAN, 2017). Em síntese, memes – e digo isso sem qualquer intenção de piada ou deboche, trata-se apenas de observar que as formas têm potenciais às vezes insuspeitados. Segundo o princípio da montagem a justaposição de situações disparatadas demonstra as relações ocultas entre os acontecimentos, o que tem um sentido ético e político. A montagem não se limita a cada haicai historiográfico em particular, ela se dá também pela sequência dos haicais, que vai montando um painel de retratos concisos e comunicantes entre si. Isso também é da tradição do haicai, em que a sequência de poemas produz um mosaico de situações em que um haicai responde, contradita, complementa outro(s). E a quarta regra mais óbvia: construir narrativas historiográficas de três linhas.

Os haicais historiográficos podem também ser pensados como uma historiografia menor, no mesmo sentido em que Manuel Bandeira dizia ser um poeta menor. Ou seja, não as grandes verdades ou o monumental. A história vista nas coisas mínimas, nos detalhes, nos gestos. Recorde-se aqui o famoso “Poema tirado de uma notícia de jornal” de Bandeira, que foi mesmo tirado de uma notícia de jornal. Há poemas assim nos arquivos, nos depoimentos, nas memórias.

Por fim, não se assuste com a ideia de que qualquer um pode fazer um haicai historiográfico, porque essa é exatamente a ideia. Quaisquer outras preocupações com os currículos, é esperar que as revistas científicas passem a aceitar textos de três linhas.

Procurei aqui apresentar com leveza o haicai historiográfico, mas dada minha trajetória, a temática escolhida não tem essa leveza. Apresento momentos de violência, também em seus aspectos mais “banais”, em que se revela alguma predisposição insólita do Poder. Ítalo Calvino dizia que a leveza ajuda a lidar com o fardo da história, mas espero também que a leveza seja ocasião de uma reflexão crítica sobre o passado e suas sobrevivências no presente.

 

13 de outubro de 1968.

Saía no jornal: universitários presos em Ibiúna.

Os Beatles concluíam a gravação de dear prudence (won´t you come out to play).

Falecia Manuel Bandeira, o poeta da vida inteira que podia ter sido e que não foi.

 

AI-5

O ministro mandava a consciência às favas

O presidente ficaria afásico depois de uma trombose cerebral

O nome da ponte é negado àquele que, supostamente, desapareceu em 1973.

 

Direitos Humanos

Sobral Pinto recorria ao direito dos animais para defender Prestes

Depois de uma passagem pelo campo de concentração

Graciliano escrevia o conto em que a cadela Baleia era executada por Fabiano.

 

1936

Um boletim nazista apresentava as três figuras simbólicas do judeu

O desenraizado, o explorador econômico e o traidor.

Samuel Rawet, aos sete anos de idade, vinha com a família para o Brasil.

 

Na prisão

Para ler na prisão

Graciliano levava um livro de um crítico católico

Que dizia que o poeta é puro espírito, um sacerdote da redenção coletiva.

 

Casa da Morte

Papaleo delirava, vendo um tigre na varanda da casa.

O psiquiatra Amílcar Lobo daria o diagnóstico: incurável.

Papaleo com o olhar distante, no sofá; Major Sampaio saca o revólver.

 

Casa da Morte 2

Inês Etienne Romeu reconheceu: Amílcar Lobo

Era o Doutor Lobo, da Casa da Morte,

Para se defender, o psiquiatra se apoiava na fábula do lobo fantasiado de cordeiro.

 

SNI

O agente reportava ao SNI:

No evento universitário, o palestrante

Subversivo disse que havia espiões na plateia.

 

Tortura

Admitindo não suportar nova tortura

O militante dizia que não queria saber segredos da organização.

Será torturado mais violentamente. Silêncio interpretado como exímio treinamento.

 

Alduísio

Se ele se recuperasse, voltaria para a tortura.

No hospital, a freira jogava sua comida fora, para que ele não se recuperasse.

Quando voltara da tortura, tinha um maço de cigarro deixado por um preso em sua cela.

 

Não contabilizados

Discussões sobre estátuas e títulos de logradouros públicos

As comissões asseveraram a necessidade da memória e dos nomes das vítimas:

Dan Mitrione ensinava a torturar usando mendigos como cobaias.

 

O mundo dos agentes

Estelionatários, reportava o SNI, fazem-se passar por agentes da informação.

No quartel onde se torturava a esmo

Um dos agentes tinha por apelido Sepultura.

 

O mundo dos agentes 2

Na boate de strip-tease ele não queria pagar a conta

Dizendo ser agente do SNI

Outro usava a mesma tática para entrar de graça nos cinemas.

 

O mundo dos agentes 3

No relatório do Brasil nunca mais, os nomes de dois agentes:

Hitler de Oliveira Mota &

Mussoline da Silveira Soares.

 

Maçã

Acusada de comunismo contracultural

Ela era presa e encontrava na cela uma maçã

Será um teste psicológico dos carcereiros? Ela decidiu comer a maçã.

 

SSP DF

Foram expulsos e detidos vários hippies, permanecendo somente na Cidade

por autorização da Polícia Federal

os hippies bem vestidos, de cabelos cortados e portadores de identificação.

 

Surto

Ele enviava cartas ao Secretário de Segurança,

Ao Conselho de Segurança Nacional, há mesmo a subversão

Ele escutava pelas ruas as pessoas lhe dirigindo palavras obscenas.

 

Terapia

O tema preferencial das sessões do Doutor Lobo

Era sua obsessão com o sadismo.

Será que Bolsonaro relata os seus seguidos sonhos com Lamarca?

 

Lamarca e o anônimo das ruas

Em Salvador o anônimo emprestava o isqueiro a um desconhecido e era preso.

Não sabia da grande operação de cerco a Lamarca

Os agentes acreditaram que acender o cigarro era a senha e que a rua era apenas um ponto.

 

 

 


Referências

ARAÚJO, Valdei; PEREIRA, Mateus. Atualismo 1.0. como a ideia de atualização mudou o século XXI. Mariana: editora sbthh, 2018.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. O olho da história, 1. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2017.

FRANCHETTI, Paulo (org.). Haikai. Antologia e História. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.

 

 

 


Créditos na imagem: acervo pessoal do autor.

 

 

SOBRE O AUTOR

Daniel Faria

graduação em História pela Universidade de Brasília (1998), mestrado em História pela Universidade de Brasília (2000) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (2004). Concluiu o pós-doutorado pela mesma universidade em 2008. Atualmente é professor Adjunto I do Departamento de História da Universidade de Brasília.

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