A difícil arte de Palear

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Escavar a memória em direção à infância pode fazer com que muita gente se lembre de como era diferente o passar do tempo. Sim, pode ter passado “voando”, como a maioria diria, mas àquela época talvez os dias demorassem mais a acabar. E como era gostoso! A expectativa por um brinquedo que chegaria no aniversário, por um fim de semana na casa da avó, por uma tarde na casa de um amigo. E se fossem alguns dias na roça, então? Cada movimento, cada barulho e cada aroma em sua própria hora do dia, em um ciclo tão natural quanto a eminência da vida no alvorecer e o silêncio barulhento no crepúsculo. Uma contagem de tempo tão ímpar para uma criança “urbana” e, ao mesmo tempo, tão cotidiana para crianças nascidas e crescidas no ambiente rural! É quase um poema de Manoel de Barros, um diálogo bakhtiniano entre infância, espaço e tempo, em um cronotopo (BRAIT, 2014), uma produção de história que se materializa na indissociabilidade entre o ser humano e o mundo onde ele se insere.

E nessa estrada preenchida pelo tempo, o qual passa, transforma, atravessa o espaço, essa autora que vos escreve encontrou na Paleontologia uma forma de (re)significar a própria paixão e as inquietações sobre as questões cronológicas. Em uma aventura bio-geo-cronológica, a ciência dos fósseis permite um olhar à história da Terra e dos seres que nela habitam ou habitaram, em um “tempo profundo”, como diria James Hutton, conhecido como o pai da geologia moderna (GROTZINGER; JORDAN, 2013).

É tão fantástico e singular conhecer mais sobre os seres que andaram, voaram ou nadaram por este planeta, em uma sucessão de novidades e catástrofes, que o pensamento sobre tais questões frequentemente nos leva para outras eras e, muitas vezes, acabamos não nos perguntando sobre onde e com quem estão os testemunhos dessa aventura épica. Ou, quando procuramos saber em que museus os mais assustadores e gigantescos fósseis estão, geralmente nos esquecemos de perguntar sobre quem os encontrou, para quem eles foram importantes, quais histórias fantásticas foram contadas através das gerações, dentre várias outras questões.

Tomemos como exemplo os sítios paleontológicos ou simplesmente os sítios de importância paleontológica brasileiros. Comumente associados ao turismo mercadológico, esses locais costumam receber grandes fluxos de visitantes, que contam com museus interativos e altamente tecnológicos, visitas guiadas, infraestrutura para estacionamento, compra de souvenirs e até mesmo lanches com temáticas paleontológicas. Mas onde estão os moradores locais nessa história moderna?

Muitas vezes excluídos dos benefícios (financeiros, de infraestrutura e de visibilidade) do turismo, esses moradores são geralmente invisibilizados quanto ao seu pertencimento em relação a esse rico patrimônio que é, inclusive, patrimônio cultural, segundo a legislação brasileira. Tendo sua relevância histórica relegada a um passado distante, os integrantes das comunidades dos arredores de sítios paleontológicos ficam à parte dos processos decisórios relacionados aos seus próprios territórios, frequentemente tendo de lidar com disputas territoriais com os gestores das áreas destinadas ao turismo e à conservação dos recursos naturais, tais como as Unidades de Conservação – UCs (esse é o caso, por exemplo, da UC Parque Estadual do Sumidouro, no sítio espeleológico Carste de Lagoa Santa, em Minas Gerais). Ademais, podem se encontrar também em disputa territorial com os geocientistas, os quais, por meio da prospecção de restos ou vestígios de seres pretéritos, podem levar (ainda que indiretamente) à interrupção de algumas das atividades cotidianas da comunidade local, a exemplo da agricultura, da pecuária e da utilização de algumas áreas para lazer.

Em especial, as empresas mineradoras, as quais comumente extraem seus recursos minerais das mesmas rochas onde ocorrem os fósseis, tomam parte de muitos dos conflitos territoriais nesses sítios. Deixando um rastro de destruição do ambiente natural, dos modos de vida dos moradores locais, que passam a lidar com tráfego intenso de caminhões, poluição sonora, atmosférica e contaminação de corpos, a atividade mineradora mecanizada acarreta, ainda, grande impacto no que tange à destruição do testemunho geo-histórico dos paleoterritórios locais (PADOAN; SOUZA, 2013).

Em um tempo que se modificou de modos desiguais para grupos sociais diferentes, os fósseis de milhares ou até mesmo milhões de anos, estão presentes no dia a dia daqueles que trabalham diariamente ou diretamente nos pontos turísticos. Mas quando o turismo não é de base comunitária, em que temporalidade se insere a comunidade local? Será que as descobertas paleontológicas ficaram fossilizadas em suas histórias, em um passado que a modernidade soterrou?

Chamando os mortos (inclusive pretéritos moradores desses sítios de importância paleontológica, sejam eles humanos, animais ou vegetais), lembro-me das preocupações já antecipadas por Walter Benjamin na primeira metade do século XX, para com a relação entre ser humano e natureza. Sonhando com um novo pacto entre ambos, o filósofo alemão alertou-nos dos perigos de uma modernidade desgovernada, que nos empurra na direção de um “progresso” no qual cada vez mais o valor de exposição sobrepõe-se ao valor de culto, e os destroços do passado são amontoados sob nossos pés a serviço de um discurso “oficial” da história (BENJAMIN, 1985; 2012).

Talvez precisemos nos perguntar o que quase oito décadas a pós a morte de Benjamin nos trouxeram de mudança (ou não). Sendo empurrados em direção a um progresso científico e histórico, precisamos nos precaver contra a crença de que o “desenvolvimento” solucionará todos os problemas. Embora urgente e necessária, a chegada da vacina contra o novo coronavírus não impedirá o surgimento de sucessivas pandemias advindas do degelo que é fruto da emergência climática. Tampouco é suficiente que foquemos em mudanças comportamentais individuais de economia da água, enquanto o Brasil vê a queima diária de seus biomas, seus povos tradicionais, suas memórias. Enquanto isso, o agro, que não é pop, mata e não poupa ninguém. Ou melhor, não poupa aquele que não é interessante aos olhos do capitalismo.

Em um momento em que parece estarmos saindo da modernidade, rumo ao que vem sendo chamado de Antropoceno, ou “época do homem” (HARAWAY, 2016), os oprimidos continuam vendo a repetição de suas mazelas frente a discursos que tentam invisibilizar ou maquiar culpados e condenados pela crise ambiental global. Uma crise que é também civilizatória e do conhecimento, convida-nos a refletir sobre o fato de não estarmos todos no mesmo “barco”, ou ainda no mesmo mundo.

Em uma recente entrevista, Bruno Latour (2020) apontou a incompatibilidade de mundos entre aqueles mais afetados pela crise e aqueles que, ao invés de negá-la, consideram-se aptos a escaparem dela. Mas para onde fugir? Onde aterrar?

Seguindo o pensamento de Latour, mas sem desviar-me de Benjamin, proponho uma reflexão sobre a necessidade de clamarmos por uma ciência mais democrática e participativa, em um novo pacto histórico com o tempo, nas passagens por onde ele se faz diferentemente presente e, principalmente, com aqueles que vêm sendo historicamente excluídos dos processos decisórios concernentes ao seu próprio patrimônio, sua riqueza, apartados de seu pertencimento mas hegemonicamente culpabilizados pela destruição do planeta.

O Antropoceno, ou melhor, o Capitaloceno (SATO, 2020), evidencia a necessidade urgente de mudanças de concepções, em um ato de escovar a (geo)história a contrapelo. Ciências Naturais, Humanas e Sociais mais do que nunca precisam se unir em resistência ao negacionismo (e ao escapismo), aos discursos ecocidas e genocidas. Precisam construir junto às comunidades locais educabilidades e saberes outros. Dos oprimidos, com os oprimidos e para os oprimidos.

Deixar levar-se pelos discursos dominantes, pelo que é vendido como beleza natural (apartada do social), é uma atitude arriscada e que reforça a invisibilização e o encobrimento dos problemas locais, os conflitos socioambientais e as nefastas consequências da atividade mineradora. Problematizar é preciso, é urgente.

Para locais onde é possível caminhar sobre terrenos de milhões de anos, os mesmos onde foram encontradas diversas criaturas com milhares a milhões de anos de idade, décadas ou séculos atrás, e que hoje estão expostas em museus localizados em pequenas e históricas cidades, proponho um olhar que parta da descontinuidade histórica. Ressignificar as relações espaço-tempo por meio de uma visão não-linear e heterogênea desse tempo nos permite compreender que em um mesmo espaço, há tempos diferentes convivendo. Em um mesmo tempo, há espaços distintos a serem disputados. Tudo em um mesmo tempo e em um mesmo espaço. Mas tudo, simultaneamente, em espaços-tempos diferenciados.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. Sobre o conceito da História. In: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 222-232.

BENJAMIN, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Zouk, 2012.

BRAIT, B. Análise e teoria do discurso. In: _____ Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2014.

GROTZINGER, J.; JORDAN, T. Para Entender a Terra. Porto Alegre: Bookman, 2013.

HARAWAY, D. Staying with the Trouble. Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.

LATOUR, B. Onde aterrar? Conversa com Bruno Latour sobre colapso climático e pandemia. [Entrevista concedida à] Alyne Costa. Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ e Colégio Brasileiro de Altos Estudos, 22 jun. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LCqpoRNanMM>. Acesso em: 17 set. 2020.

PADOAN, L. de L.F.; SOUZA, L. V. de. Contexto Socioambiental do Parque Estadual do Sumidouro, APA Carste de Lagoa Santa, MG. Uso Público em Unidades de Conservação, n. 1, v. 1, 2013.

SATO, M. (Coord.). Os condenados da pandemia (livro eletrônico). GPEA-UFMT & Editora Sustentável, 2020a. Disponível em: <https://editorasustentavel.com.br/os-condenados-dapandemia/> Acesso em: 20 set. 2020.

 

 

 


NOTAS

* Palear: Além de remeter a “escavar”, pois palear significa revolver a terra (ou a areia) com a pá, a palavra também tem como significado “dar publicidade,” tornar conhecida alguma coisa.

 

 

 


Créditos na imagem: Foto: Divulgação/Juliana Sayão/Museu Nacional.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Camila Neves Silva

Sou bióloga, professora do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora -UFJF e doutoranda em Educação pela mesma instituição. Pesquiso a Paleontologia em conexão com a Educação Ambiental em sua vertente crítica, e sou integrante do Laboratório de Geologia e Pedologia (GEOPED) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Ambiental (GEA), ambos da UFJF. Apaixonada pela vida em todas as suas formas e em todos os seus tempos, sou defensora de uma maior aproximação entre ciências naturais, ciências humanas e ciências sociais. Bruxa e antifascista.

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