A literatura enquanto história, por Hans Magnus Enzensberger

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Tradução de Fabio Luciano Iachtechen

 

A literatura enquanto história. Se trata de um ponto de partida, de um ponto de vista tão geral, tão antigo e, sem dúvida, tão vago e pouco explorado, que se pode esperar que suscite mais dificuldades do que as consiga resolver. Nos lança a um verdadeiro labirinto conceitual e metodológico, cuja entrada pelo menos queremos apontar. Para fazê-lo tomaremos como exemplo dois livros e os abriremos. Ambos oferecem duas imagens de um mesmo momento histórico, definido precisamente no tempo e no espaço. Se trata da Alemanha do ano de 1928

 

Bares, restaurantes, frutas e legumes, pintores decoradores, confecções para damas, farinhas e especiarias, garagens, companhias de seguros. As vantagens das minibombas de gasolina: construção simples, fácil manejo, volume mínimo, leveza. – Cidadãos alemães, jamais nenhum povo foi mais odiosamente estafado, jamais nação alguma foi mais odiosamente, mais injustamente enganada que o povo alemão. Vocês recordam do 9 de novembro de 1918 em que Schneidermann prometeu do alto dos balcões do Reichstag a Paz, o Pan, a Liberdade? Se manteve satisfatoriamente a promessa! – Conforto moderno, salas de banho –. Vamos limpar as suas janelas: informes aqui. – A saúde através do sonho: fábrica de colchões ‘La Marselleuse’ […] Mas por cima dos armazéns e atrás deles existem apartamentos, e ao entrarmos atravessamos pátios, jardins, tem habitações que dão para os pátios, para os jardins, e algumas que ficam entre o pátio e o jardim. Adiante, existe uma boa loja de calçados, em quatro pisos esplendidos seis vendedoras atendem os clientes, quer dizer, quando elas podem fazê-lo, e isso lhes proporciona 80 marcos mensais por cabeça, 100 marcos quando muito, quando os seus cabelos começam a branquear-se. Esta bela loja de calçados pertence a uma velha dama que se casou com o gerente, e desde esse tempo mora na capital, mas agora não se encontra bem… No piso de cima um açougueiro, sempre bêbado, com um monte de filhos. Por fim, ao lado, um ajudante de padaria e sua mulher, que trabalha em uma prensa de papel e sofre uma inflamação crônica nos ovários. O que têm eles na vida? Bem, em primeiro lugar, eles têm um ao outro e, ademais, no domingo passado, revistas e cinema, sessões do clube por aqui, visita do sogro por lá. É tudo? (Alfred Döblin. Berlin-Alexanderplatz. Berlim, 1929, p. 138-140)

 

Esta é a forma como o escritor Alfred Döblin enxergava Berlim em 1928. Que contornos toma a mesma realidade sob a pena de um historiador de ofício? Cito a Deutsche Geschichte des 19 und 20. Jahrunderts de Golo Mann.

 

Os capitais estrangeiros eram raros. O número de desocupados aumentava e com ele os encargos financeiros que representavam os auxílios por desemprego; as regras fiscais decaíam cada vez mais. Na siderurgia logo ocorreu um lockout e se precipitaram os conflitos salariais que arbitragem estatal apenas conseguiu resolver no último momento, depois de longas e difíceis negociações. Os patrões começaram a atacar abertamente os “salários políticos”, a arbitragem e as convenções coletivas de trabalho garantidas pelo Estado: o taxaram de sistema impossível de defender em uma economia sã e o fizeram responsável pela ruína que se avizinhava. (Golo Mann. Deutsche Geschichte des 19 und 20. Jahrunderts, Frankfurt am Main, 1958, p. 731)

 

Temos aqui dois exemplos eleitos entre muitos outros, mas cuja comparação nos ensina muito, pois nos autoriza uma série de conclusões.

Primeira. O relato do historiador é singularmente desumanizado. O quadro que pinta parece morto, resulta semelhante a qualquer uma das paisagens de Chirico. Nos mostra uma história privada de seu sujeito. Pessoas cuja história só aparece como um pano de fundo decorado, uma massa obscura no fundo do quadro: “os desocupados” e “os patrões”. Quando as figuras aparecem em primeiro plano, se chamam Hinderburg, Stresemann, Schleicher; são os pretendidos makers of history, mas tampouco têm rosto, resultam contaminados pela ausência de vida que caracteriza todo o quadro. O destino desses de quem não se fala vem deles mesmos e os define; os converte em marionetes semelhantes aos manequins de madeira que substituem os homens nos quadros de Chirico.

Döblin, por sua vez, nos mostra um primeiro plano vibrante de vida. A coletividade se dissolve em uma multiplicidade de sujeitos que desfilam em todas as poses e vestimentas, capturados em um instante pela câmera em sua personalidade, em sua absoluta individualidade, para que em seguida retorne ao movimento universal: o açougueiro, o ajudante da padaria, sua mulher, empregada de uma prensa. O historiador diz: “o ajuste fiscal decaía cada vez mais”. O romancista descreve uma loja de calçados: “seis vendedoras atendem os clientes, quer dizer, quando podem fazê-lo, e isso lhes proporciona 80 marcos mensais por pessoa, 100 marcos quando muito, quando os cabelos começam a branquear-se”. O homem de Estado recebe um tratamento diferente dado pelo historiador: é só um pôster diante do qual os transeuntes se detém, um nome sobre o papel pregado em uma coluna de anúncios.

Segunda. Golo Mann e Döblin buscam dar uma resposta a seguinte interrogação: “como era?” Mas essa semelhança não vai além disso. Pois o “assim” de sua resposta não tem o mesmo sentido. “Era isso era o que ocorria no fundo”, tal é a atitude do historiador, e essa atitude determina todos os aspectos de seu texto: vocabulário abstrato, predileção pelas construções impessoais, perspectiva narrativa (ou melhor, esforço para evitar toda a perspectiva narrativa), tudo isso reclama uma objetividade, o melhor que se pretende é um interesse desinteressado. Ele evita assim toda uma perspectiva subjetiva, mas quem assim procede se encerra inevitavelmente em uma perspectiva objetivista que não é outra que a do Poder, o que quer dizer, em nossa época, a de um sistema anônimo. O historiador profissional foi condenado pelo mesmo método a que recorre e pelas fontes que utiliza, pelos personagens que põem em cena e pelas interrogações que apresenta.

Döblin, todavia, responde: “era assim…” com as seis vendedoras do armazém de calçados, o açougueiro e Franz Biberkopf. Tudo o que acontece tem um destinatário. “Como era ou, sobretudo, para quem?” Esta perspectiva determina igualmente o estilo de Döblin e sua atitude narrativa. Sua perspectiva é a de um transeunte de uma grande cidade, o célebre flâneur. Uma perspectiva obviamente política em grau eminente.

Terceira. É a sua escala o que distingue de maneira mais evidente estes dos quadros. Em dez linhas o historiador resume a situação econômica de um país inteiro, e indica as consequências políticas que dela se depreendem. Os conflitos sociais de todo um setor da indústria cabem em uma frase que parece uma abreviatura, uma sigla. Döblin a dedica quatro páginas a uma só esquina de uma rua, e essas quatro páginas estão repletas de detalhes vívidos.  O historiador tem em perspectiva a totalização e trabalha a ponto de raccourcis espetaculares; o escritor escolhe os detalhes.

Quarta. Estes dois quadros não se diferenciam apenas pelos seus temas, escala e perspectiva, mas também pela linguagem. Quem fala na síntese de Golo Mann? O historiador? Não nos apressemos em afirmar. Sua ambição é a de deixar falar as coisas mesmas, quer dizer, as situações institucionalizadas. O texto oferece as provas: na siderúrgica “se precipitaram” os conflitos salariais. A arbitragem os resolveu. Os enfrentamentos “se manifestaram”. Temos aqui uma linguagem que dissimula quem fala, seja quem for. É uma linguagem institucionalizada, tal como aquilo que se trata. Se apresenta como verdadeiro autor e guia a pena de quem o utiliza. O autor só se entrega uma vez, mas não é para tomar a palavra e sim para apenas deixá-la aos patrões.

Por sua vez, quando Döblin delega seu papel de autor é quando permanece mais fiel assim mesmo: é no momento de citar que o seu estilo pessoal aparece com maior claridade. A língua das instituições não é evitada, utiliza-se de sua contribuição e a modulação é feita de mil maneiras, quase sempre sem comentários. Outras línguas resultam contrapostas sem transição de nenhuma espécie. De repente, tal como os personagens, transeuntes ou ajudantes de padaria, surge uma multidão de vozes anônimas. À pergunta: “o que tem eles na vida?”, formulada por alguém, outra voz responde: “bem, em primeiro lugar, eles têm um ou outro”. Misturando-se a essa Torre de Babel, todas essas línguas subjetivas e objetivas se criticam e se desmistificam mutuamente: avisos, propaganda, jargões, o alemão de Lutero, vocabulário jurídico, etc. Frente a ele, o texto do historiador, bem como seus sujeitos, resulta desprovido de vida. Assim como se fala de natureza morta, poderíamos falar de uma história morta: a do historiador parece efetivamente morta.

Quinta. Sem dúvida, não me parece que se possa sempre criticar o historiador por isso. É impossível fazê-lo responsável pelo estado social que descreve e em cujas mãos põe a sua linguagem. Döblin diz: farinha e especiarias, limpeza de janelas, imprensa. Golo Mann diz: o capital, os sindicatos. Em Golo Mann se compreende o ano de 1928, ainda que sem vê-lo. Em Döblin o vemos, mas não compreendemos.

O balanço de nossa comparação merece que nos detenhamos a examiná-la, mesmo que ela nada tenha de estranho. O surpreendente é que se trata de fazer tábua rasa de um problema que tem, sem dúvida, uma importância capital, o da diferença epistemológica entre a obra do historiador e a do escritor. Quando o Golo Mann escreve que “o número de desocupados aumentava”, comprova um fato e se apressa a apresentar provas que corroborem a sua afirmação. Pode ser, porém, que o açougueiro de Döblin jamais tenha existido, ou não tinha filhos e nunca tenha provado uma gota de álcool. É algo fictício. Neste ponto residia para Voltaire a diferença fundamental entre a história e a literatura. “A história”, disse no dicionário filosófico, “é o relato dos fatos considerados verdadeiros, enquanto a fábula” (quer dizer, a obra literária), “é o relato dos fatos considerados imaginários”. Não há ninguém hoje que possa aceitar uma distinção tão simplista. Basta perguntarmos qual relato, se o de Döblin ou o de Golo Mann, nos parece mais digno de fé, para que imediatamente – mesmo considerando a pouca importância que concedamos a esta interrogação – surjam as maiores dificuldades.

Podemos arguir inclusive que a língua mesmo se nega a estabelecer uma distinção estrita entre o fictício e o não fictício. O campo semântico da palavra “história” engloba indissoluvelmente o fictício e o fático. O objeto não se distingue da forma expressiva que lhe damos: a palavra “história” batiza indiferentemente com um mesmo nome o fenômeno e o relato que se faz dele.

Esta imprecisão semântica é uma prova de que “a história” – a consciência que temos dela – é sempre, desde o princípio, enquanto um produto social, uma ficção e, por conseguinte, algo que inventamos. É notável que saibamos tão pouco sobre sua gênese. Até onde sei, o problema jamais foi estudado in extenso, recorrendo, por exemplo, aos métodos da sociologia empírica. Os psicólogos mesmo até hoje se ocuparam apenas da gênese da consciência histórica. De forma que uma questão de tantos alcances continuou dentro do campo da chamada história das ideias. No sentido restrito do problema se converte em objeto de uma história da história, quer dizer, de uma disciplina cuja denominação revela o fato de que se move de acordo com um método prisioneiro de um círculo vicioso.

Em todo caso, é impossível confundir a história que consideramos e aceitamos como nossa com um conjunto de fatos. Os fatos que ela carrega parecem cifrados, e só tem sentido para quem é capaz de decifrá-los, quer dizer, já se sabe de antemão do que se trata. Sobre a gênesis desse saber prévio, nós o encontramos reduzido por ora a simples suposições. É possível que a partir do modelo da memória, da experiência que cada um tem de sua própria história individual, se constitua uma estrutura de base. Tal estrutura é modulada e extrapolada com a ajuda da tradição, cujo processo extremamente complexo é experimentado e exercitado igualmente na infância. Se trata, é claro, de fenômenos devidamente produtivos e não apenas receptivos. Unicamente a partir dessas experiências precoces se pode apreender a projeção da história sobre esse passado anterior.

De tudo isso poderíamos deduzir que a ciência histórica toma um lugar muito mais reduzido do que geralmente se pensa na gênese das imagens da história. Em todo o caso é possível afirmar que só toca tardiamente a consciência individual, por intermédio de um ensino que se limita a lhe fornecer, quando mais, um marco de referências cujas coordenadas parecem cifradas. Disso resulta uma imagem abstrata desprovida de toda a densidade material. A visão dos imóveis construídos no final do século passado nos convence mais da existência de outros anteriores a nós que os oito anos de ensino de história que recebemos na escola. Essa credibilidade buscada pela história, que gostaria de monopolizá-la, é incapaz de ser produzida por si só.

O único sistema de signos coerentes no qual se pode ler a história como uma realidade material e concreta parece ser – e não se trata de uma ironia – o mesmo que rechaçava e criticava Hecateu de Mileto: a literatura. Cada um pode convencer-se disso recorrendo a sua própria experiência pessoal. Se temos pelo menos uma imagem da Guerra dos Trinta Anos, é graças às novelas de Grimmelshausen e aos poemas de Andreas Gryphius. O que pode nos dizer a história universal sobre os primórdios do capitalismo nas cidades italianas é indubitável, mas quase não vale a pena ser sabido: para compreender melhor este período devemos nos dirigir aos discursos e às cartas de Maquiavel e Guicciardini. Nem falamos da Inglaterra vitoriana nem da França do século XIX, cujas imagens, desde a superfície dos fenômenos até suas mais profundas raízes, estão firmadas por grandes escritores. A contraprova é fácil de se produzir: as épocas e países que não deixaram literatura, como é o caso, por exemplo, das grandes invasões e dominação merovíngias, são qualificadas de obscuras, e sua história, apesar de todos os fatos que possamos juntar a seu respeito, permanecerá sempre difusa e informe. É nesse sentido que Herder pôde dizer que a literatura é a verdadeira história da humanidade.

Frase de um tom venerável, mas cujas consequências são atuais. Sua supervivência constitui uma tradição alemã que, passando por autores como Lenz e Klinger, Lang e Weerth, Büchner, Börne e Heine, nos conduz até Brecht. A estética de Weimar não quis saber nada sobre ela, e depois do veredito de Goethe sobre a história (“tumulto de erros e violência”), a frase idealista de Herder, e tudo o que dela se depreende, não foi tomada a sério. Heine a interpreta em um sentido claramente político. Ao comprovar que o povo pode receber a sua história “da mão do poeta e não da mão do historiador”, manifestava uma desconfiança frente à historiografia do século XIX, e essa desconfiança sobreviveu a seu objeto. Brecht tirou consequências desse fato. Desde seu drama juvenil Tambores na noite até As Elegias de Buckow, sua obra é expressamente um traço de história alemã de 1918 até 1953.

Ao mesmo tempo, esta obra põe radicalmente em questão aquilo que os historiadores, em particular, consideram até então a história. A perspectiva do poder, quase não discutida pelos historiadores europeus desde Tucídides, incluindo os marxistas, é recusada por Brecht. O escritor quer invertê-la:

 

Quem construiu Tebas, a das sete portas?

Nos livros vem o nome dos reis,

mas foram os reis que transportaram as pedras?

No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde

foram os seus pedreiros? A grande Roma

está cheia de arcos triunfais. Quem os ergueu? Sobre quem

triunfaram os Césares?…

Em cada década um grande homem.

Quem pagava as despesas?

 

A ideia de uma história em si, defendida pelo historiador Golo Mann é, como se pode apreciar, francamente rejeitada. Não “como era?”, mas como foi isso ou aquilo para os trabalhadores. É isso “o que se pergunta um trabalhador letrado”. A ciência não tem nada a lhe responder. Se ocupa das potências, das nações, dos povos, das alianças, dos grupos de interesse. Não se ocupa jamais das gentes. Todas essas gentes que viveram antes de nós só as encontramos na literatura. A ela também se remete outro poema de Brecht que reflete sobre a história. Se intitula: “Se explorará a literatura”. A literatura por si mesma não podia absorver mais da metade das perguntas do trabalhador, apenas responde a algo universalmente humano. Mas esta universalidade é unicamente exigida, de todas as formas, pelos apaixonados pelo atemporal, os que se preocupam menos do que todos com as lições da história. A perspectiva da literatura raramente foi identificada com a do poder, mas sempre se encontrou limitada de maneira específica por interesses nacionais ou de classe, sempre se viu limitada e determinada a ser feita pela sua existência em si, a existência em si da literatura regular supõe o resto.

Por conseguinte, a riqueza. Por conseguinte, a exploração. A extrema miséria é muda. É por isso que o que hoje chamamos literatura mundial é um fenômeno de países que se encontraram à frente no desenvolvimento industrial. Vietnã ou Camboja não tem nela um papel.

Não se sabe então, em todas as ocasiões, para onde foram os trabalhadores. Quando se explora a literatura em busca dos esquecidos – quer dizer, da maioria – os encontramos na penumbra das obras, entre os personagens secundários. Esse é o caso do proletário parisiense em L’education sentimentale de Flaubert; mas sua existência aparece de uma forma ainda mais acabada no rosto da burguesia vitoriosa e em sua linguagem, nas deformações e distorções que a vitória lhes impôs. A literatura também fala daquilo que ela cala.

Tudo isso nos esclarece, como é possível apreciar, mais sobre a crítica da história do que sobre a crítica da literatura. As perguntas de Brecht, erguidas sob critérios, nos conduzem diretamente a uma rua sem saída que tem mais ou menos cem anos. Pois, se a tomamos ao pé da letra, se conclui necessariamente que a literatura enquanto história é Thyde Monier e não Marcel Proust, Theodor Dreiser e não Faulkner, Hans Fallada e não Kafka.

Não era isso que Brecht desejava, mas é o que afirma esse marxismo vulgar em vigência em mais de um país, ainda que não seja possível defendê-lo teoricamente. Ele converte “o que se perguntava a um trabalhador letrado” em um interrogatório incessante, e faz da crítica literária um método de instrução criminal aplicável não somente aos autores, mas também às obras. Na verdade, o erro de princípio sobre o qual repousa esta questão não é uma invenção marxista, é a herança de uma estética radicalmente burguesa.

Na segunda metade do século XIX, na época em que conseguiu se afirmar mais fortemente, a ciência burguesa não via no elemento historiográfico da literatura um problema nenhuma espécie, senão que o considerava uma evidência absolutamente óbvia. Críticos como Taine o elegeram como um princípio absoluto. Certamente não se preocuparam com os trabalhadores, mas é desta época uma concepção da literatura que utiliza as noções de monumento e documento. Desde então as bibliografias incluem títulos como estes: Monumentos da literatura alemã do século XVIII, Coleção de monumentos da literatura e da arte, Monumenti antichi etc. A noção mesma de documento, que vingou posteriormente e que necessita ser submetida com urgência a uma análise crítica, data da mesma época. As obras mestras, disse Taine, constituem documentos pelo mesmo motivo que são monumentos.

Teses semelhantes reduzem a literatura ao estado de simples fonte de informações concretas e escamoteiam o que constitui precisamente uma literatura. Do ponto de vista do documento uma fatura de aduana vale tanto quanto o Conto de inverno de Heine, e poderíamos afirmar que os relatos triviais de Benedikte Naubert oferecem uma melhor reunião dos fatos sociológicos que As afinidades eletivas de Goethe, pois são mais “representativas” no sentido demoscópico do termo. Lendo ambos jamais será possível estabelecer relações lineares e unívocas entre a literatura e a sociedade, como entre um modelo e sua cópia. Se raspa na superfície das obras um conteúdo manifesto e se deixa o essencial, seu conteúdo histórico objetivo, infinitamente transposto e, por conseguinte, impossível de se fixar. Heine e Engels sabiam disso perfeitamente, mas Taine e Plekhanov ignoravam. Ainda que esses últimos foram, no seu tempo, irreconciliáveis inimigos, estavam absolutamente de acordo em ler a literatura não como uma história sui generis, mas como um anexo da historiografia tradicional. Em lugar de revisá-la, de pôr suas premissas em questão, quiseram submetê-la a literatura.

 

 

 


NOTAS:

Texto originalmente publicado em: ENZENSBERGER, Hans Magnus. La literatura en cuanto historia. Eco: revista de la cultura de Occidente. Bogotá, n. 201, pp. 937- 46, jul. 1978.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Disponível em: https://cartacampinas.com.br/2014/09/1-poema-de-hans-magnus-enzensberger/

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Hans Magnus Enzensberger

Hans Magnus Enzensberger é um poeta, ensaísta, tradutor, escritor e editor alemão. É também escritor sob os pseudônimos de Andreas Thalmayr, Linda Quilt, Elisabeth Ambras e Serenus M. Brezengang.

SOBRE O TRADUTOR

Fabio Luciano Iachtechen

Professor da Estácio Curitiba e do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná. Editor da Revista Escrita da História.

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