As ‘alegrias da mesa’ no romance O Coronel e o Lobisomem: pesquisa sobre culinária regional fluminense através da literatura

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Por ocasião do anúncio de dois eventos gastronômicos no Rio de Janeiro, no mês de agosto, 13ª edição do RIO GASTRONOMIA[1], maior festival do gênero no país, e o 12º Festival de Cultura e Gastronomia[2], em Macaé, temos a oportunidade de apresentar alguns resultados da pesquisa CULINÁRIA MACAENSE: história, receitas e serviços gastronômicos regionais (PIBIC/UFRJ-2020-4)[3]. Neste trabalho de investigação universitária se buscam as causas das perdas das tradições e enfraquecimento da transmissão de receitas culinárias regionais e locais, num contexto de transformações socioeconômicas aceleradas, isto é, em tempos de globalização e mundialização dos hábitos alimentares em Macaé e Norte Fluminense.

Num cenário de proliferação dos fast food e self service, em variações de cozinha de fusão (fusion food), observa-se na sociedade uma espécie de desorientação em virtude da quebra de tradições que anteriormente davam sentido a gramática dos alimentos e seus efeitos. Assiste-se então como reação sinais de retorno à comida caseira, sustentável, operando um certo distanciamento dos produtos embutidos e altamente processados.

A fim de contribuir com uma visão crítica às ações públicas e privadas empreendidas em nome dos serviços gastronômicos, invocamos as potencialidades da Literatura no trabalho de recuperação de histórias e memórias de hábitos alimentares regionais e locais brasileiros. Uma referência importante da pesquisa encontra-se no Atlas das representações literárias de regiões brasileiras (IBGE, 2006). Nesta obra rastreia-se a dimensão cultural como centro do processo de regionalização, utilizando-se obras da Literatura nacional para redesenhar o mapa culinário brasileiro.

Nesse trabalho pensar a alimentação e seu aspecto cultural no território brasileiro, como salienta a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), é uma tarefa que pode ser apoiada e sedimentada de modo fecundo pelos estudos literários. É possível pensar na Literatura a partir do geoespaço fornecendo uma reflexão aprofundada sobre a alimentação no vasto território brasileiro. Perspectiva que salienta a fecundidade na análise da relação entre território e alimentação em obras da Literatura brasileira e regional. O método seguido tem basicamente três fases: (1) elencar obras para ordená-las no mapa; (2) analisar os textos literários em cada mancha; e, (3) refletir sobre o que este acervo literário expressa com relação a alimentação no território brasileiro[4].

Aqui trata-se tão somente de um breve relato da pesquisa que aprofunda tópicos de sociologia da mesa brasileira através da incursão/imersão na obra do escritor fluminense José Cândido de Carvalho[5], em especial no romance O Coronel e o Lobisomem (1964). Por meio desse trabalho, procuramos abordar “a promoção da alimentação adequada, saudável e sustentável, a soberania e segurança alimentar e nutricional e o cuidado alimentar e nutricional emancipatório” (CSHS, 2023) através do estudo das narrativas literárias dos/as escritores/as representativos/as.

Além disso, subsidiariamente um dos objetivos da investigação é testar a hipótese do sociólogo Carlos Doria, concernente à possibilidade de se identificar vestígios das tradições da cozinha caipira popular tradicional, tanto na região serrana e meio urbano macaense, como na cozinha caiçara da zona litorânea (DORIA, 2021a; 2021b).

Mediante os procedimentos básicos da pesquisa social (BECKER, 1994) realizamos explorações e abordagens mistas no trabalho de campo proposto, tendo em conta dados quantitativos e qualitativos no espaço social da cozinha regional e local, perscrutando vestígios de hábitos e ingredientes presentes na narrativa do romance citado. O trabalho continua aprofundando o levantamento de dados, análise documental, catalogação e classificação por observação e coleta das receitas ou formas de preparo a partir do trabalho de campo, de acordo com seus ingredientes (origem animal, vegetal, especiarias) e região (urbano, rural, litoral caiçara)[6]. Este trabalho segue desenvolvendo as receitas de modo experimental, em padrões e procedimentos laboratoriais, transcrevendo e reproduzindo-as em Laboratório de Técnica Dietética e Análise Sensorial de Alimentos do CM UFRJ-Macaé[7].

Ao investigar heranças histórico-culturais da culinária macaense e regional e o modo de saber/fazer das receitas, elegemos a perspectiva que é fundamental “para a construção de práticas mais justas e equitativas, promotoras de segurança alimentar e nutricional, e que levem em consideração as múltiplas dimensões da alimentação e nutrição das populações” (CSHS, 2023). Considerando que a cozinha e as maneiras à mesa de uma sociedade são uma forma original de regular as relações entre a natureza e a cultura, encontramos na dialética entre os registros narrativos do romance e a realidade contemporânea, os trajetos e rastros dos hábitos e costumes culinários que ainda permanecem ou se transformam.

Do romance recolhemos diversos registros de ingredientes e produtos que descrevem o que a personagem principal, Ponciano de Azereco Furtado, chama de “as alegrias da mesa” fluminense da época (início do séc. XX), com referências a diversidade da flora como as citações de pitangueiras, guriris, mangueiras, abricós, jaqueiras, fruta-de-condes, samburás, etc.; as delícias dos frutos do mar como robalo e badejo; carnes de cabrito, capivara, jacaré, galinha ensopada e variadas caças; farinhas de milho, mandioca, paçoca, etc.; além outras diversas referências divertidas narrando almoços e “ajantarados” com muito café, doces, fumo, aguardente, licores, etc., muito presentes na narrativa. Todo esse acervo compõe um museu culinário que está em risco de perda iminente, devido ao processo de transformação em curso pela ação da indústria do petróleo e gás na região.

Destarte, o romance O Coronel e o Lobisomem ao narrar acontecimentos que remetem às primeiras décadas do século XX na região de Campos dos Goytacazes, Macaé, até Niterói e Rio de Janeiro, preserva a história e a memória da culinária local e regional, remontando a hábitos alimentares regionais e locais hoje em risco de desaparecimento. Tendo em conta que “a cozinha e as maneiras à mesa de uma sociedade são uma maneira original de regular as relações entre a natureza e a cultura.” (POULAIN, 2004, p. 53), descobrimos uma fonte infindável de registros literários que servem como mananciais. E desse trabalho aflora com assertividade a máxima: “As maneiras à mesa são uma representação concreta dos valores fundamentais de uma cultura.” (Idem, p. 45).

Podemos sublinhar em poucas citações o quanto a obra em tela nos oferece de representações significativas. Nas páginas do romance registramos dezenove (19) aparições da palavra “alegria” associada à mesa, tais como: “Rebati a cortesia com morte de carneiro e outras alegrias de mesa.” (CARVALHO, 1976, p. 14). Referente as refeições cotidianas, sobressai: “jantar cabrito especial no Taco de Ouro” (Idem, p. 102). Ou ainda: “Jantar na mesa, ataquei a parte central de um robalo que esperava, em bandeja bonita, a minha fome atrasada. Estalei a língua: — Veio como aprecio, seu Lorena, em ponto de molho.” (Idem, p. 46). Vê-se nessas citações três pratos distintos: cabrito, carneiro e robalo, ao “ponto de molho”. Especiarias que atualmente não se encontram com frequência em nossas mesas, mas realçam a variedade. Sobre as palavras associadas à descrição dos jantares, encontramos quarenta e nove (49) referências variantes: “Jantar; jantei; jantando; jantada; jantado; com jantarado(s), aparecendo dezesseis (16) vezes na obra. Poderíamos recolher outras tantas citações referentes a alimentação no decorrer do romance: ervas, plantas, cereais, farinhas, bebidas, caças, pescados…

Porém, cabe frisar aqui, constatamos felizmente que se confirma a percepção de que “as tradições da mesa resistem ao fast-food” (POULAIN, 2004, p. 86). Nossa pesquisa dedica-se a reforçar a tendência de se afastar dos self services e dos alimentos ultraprocessados, e é notável como a Literatura pode nos ajudar nesse esforço de estancar os processos gastro-anômicos (FISCHLER, 1979) recuperando tradições e hábitos a mesa, num retorno saudável para a comida caseira, sustentável, operando um distanciamento concreto dos produtos embutidos e altamente processados. Através de experimentos em laboratório, a partir dos registros literários, a pesquisa tem conseguido realizar um diálogo profícuo com o passado e o presente das receitas e modos de cozinhar, estimulando a preservação do rico patrimônio culinário brasileiro e regional.

Estes resultados preliminares suscitam pontos para serem desenvolvidos no decorrer da pesquisa, tais como: discussão sobre o conceito de comida regional e o quanto os escritores expressam de seu território nas suas produções artísticas. Mas é certo que a produção de novos mapas da Literatura Brasileira, com o tema da culinária e alimentação, buscando espaços inscritos no geoespaço, como também, outros espaços, as heterotopias, e etc., possam auxiliar no estudo da alimentação e cultura no Brasil e na América Latina.

E, considerando o ensejo dos eventos referidos no início do texto, compreende-se que ainda temos lacunas importantes a preencher nesse trabalho de salvaguarda. Pois ao se contemplar as listas de receitas e cardápios apresentados percebe-se a dificuldade de remeter e valorizar a história cultural da alimentação brasileira, seja nacional e regional. Mantém-se a hegemonia da fusion food para o consumo turístico, sem pesquisa mais aprofundada e qualificada. De tal sorte que a referida lei do Marco Referencial da Gastronomia como Cultura[8] (Rio de Janeiro, 2015) é totalmente negligenciada e ignorada pelos agentes públicos envolvidos; quando deveriam agir no sentido da Promoção da Alimentação Adequada e Saudável (PAAS)[9]. É preciso aguardar ainda o despertar de uma nova consciência política e cultural que favoreça a preservação, conservação e promoção da culinária brasileira.


REFERÊNCIAS

Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN). Brasília: Ministério da Saúde; 2012: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_alimentacao_nutricao.pdf>.

Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2012. <http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/seguranca_alimentar/marco_EAN.pdf>.

BECKER, H. S. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Hucitec, 1994.

Atlas das representações literárias de regiões brasileiras. Rio de Janeiro: IBGE. 2006

CARVALHO, José C. de. O Coronel e o Lobisomem. 20ª. ed. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1976.

CSHS. 9º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde. 2023. <https://www.cshs.org.br/index.php#topo>.

DOMENE, S. M. Á. Técnica dietética. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2014.

DORIA, Carlos Alberto. A formação da culinária brasileira. São Paulo: Fósforo, 2021a. ___. A culinária caipira da Paulistânia. São Paulo: Ed. Fósforo. 2021b.

PHILIPPI, Sonia T. Nutrição e técnica dietética. Barueri, SP: Manole, 2014.

POULAIN, Jean-Pierre. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2004.

FISCHLER, Claude. Gastro-nomía y gastro-anomía. La sabiduría del cuerpo y la crisis biocultural de la alimentación moderna. Gazeta de Antropología, 2010· <http://hdl.handle.net/10481/6789>.

GARCIA RWD. Representações sociais da alimentação e saúde e suas repercussões no comportamento alimentar. Physis: Rev. Saúde Coletiva. 1997; 7(2): 51-68.

GOLDENBERG, M. Cultura e gastro-anomia: psicopatologia da alimentação cotidiana. Horizontes antropológicos, v. 17, n. 36, p. 235-256, 2011. <http://www.scielo.br/pdf/ha/v17n36/v17n36a10.pdf> Acesso em 18 ago 2023.

LEI Nº 7180 DE 28 DE DEZEMBRO 2015. Estabelece, no âmbito do estado do rio de janeiro, o Marco Referencial da Gastronomia como Cultura e dá outras providências. Rio de Janeiro. <Lei Ordinária 7180 2015 de Rio de Janeiro RJ (leisestaduais.com.br)>.

 

 

 


NOTAS

[1] Cultura do Estado no Rio Gastronomia 2023 | SECEC-RJ

[2] Prefeitura Municipal de Macaé (macae.rj.gov.br)

[3] Pesquisa realizada com apoio do PIBIC/ UFRJ e âmbito das atividades do Grupo de Pesquisa NESPERA (IAN CM UFRJ-Macaé): dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/354773

[4] Atlas culinário da literatura brasileira: alimentação e cultura. Michelle Medeiros et alli. Revista Ciência Plural. 2016;2(3):72-81

[5] José Cândido de Carvalho (Campos dos Goytacazes 1914) foi advogadojornalista e escritor brasileiro, mais conhecido como o autor da obra O coronel e o lobisomem. https://www.academia.org.br/academicos/jose-candido-de-carvalho

[6] O trabalho de investigação dietético se desenvolve com apoio nos autores referenciados (DOMENE, 2014; PHILIPPI, 2014).

[7] Polo Ajuda – Instituto de Alimentação e Nutrição do Centro Multidisciplinar UFRJ-Macaé.

[8] No âmbito estadual e regional estabelecido na Lei n° 7180/2015, no Art. 4: I – A identificação e valorização das culturas tradicionais e das identidades regionais que constituem os 92 municípios que compõe o Estado; II – Incentivo à criação e a implementação de programas de difusão, valorização e preservação das práticas, modo de preparo e consumo, saberes e fazeres culinários.

[9] PAAS – Promoção da Saúde e da Alimentação Adequada e Saudável — Ministério da Saúde (www.gov.br)

 

 

 


Créditos na imagem: Fábio Rossi / Reprodução: EXTRA Globo

 

 

SOBRE O AUTOR

Alexandre Fernandes Correa

Sociólogo com formação pós-graduada em Antropologia Cultural. Professor Associado na UFRJ-Macaé.

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