Machine: A máquina do samba, o síndico da Sapucaí.

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Certa vez, durante uma viagem à França, com a escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, um passista chamado José Carlos Farias Caetano, subiu ao palco para se apresentar junto à deusa da passarela e deu um show de samba no pé. Um francês, que assistia à apresentação, ficou encantado com a performance desse passista e ficou apontando pra ele dizendo: “La machine”, “la machine du samba”. Sem saber o que aquilo significava, o que aquele francês queria dizer, o brilhante passista perguntou ao carnavalesco Joãozinho Trinta, que à época integrava a Beija-Flor, o que aquele cara queria. O gênio João lhe respondeu que significava a máquina de sambar, máquina do samba. O passista, envaidecido e orgulhoso da sua arte, acabou tomando para si a palavra francesa, como apelido, e desde então se tornou Machine, o Machine, figura tão importante para a realização do maior espetáculo do mundo, a céu aberto, que é o carnaval da Marquês de Sapucaí.

José Carlos Caetano, mais conhecido no mundo do samba como Machine, nasceu em Jacarepaguá/RJ, mais especificamente no Tanque, e foi criado em Éden, São João de Meriti/RJ. Seu pai, José Caetano, já dominava a arte de sambar, era passista da Portela. Sua mãe, Helena Faria Caetano, era baiana e costureira da Unidos da Ponte. Sua família era toda de sambistas. Para além de seus pais. Tios e outros parentes também eram do samba. O samba foi seu berço. Seu berço, sua primeira escola de samba, onde aprendeu a sambar.

Sua história no samba começou quando ele tinha 8 anos de idade. Foi num concurso de passista mirim da Beija-Flor de Nilópolis. Um dia, quando estava no ensaio de quadra da azul e branca de Nilópolis, ficou num cantinho sambando, tão somente curtindo o samba. Foi quando a esposa do presidente da agremiação o viu e o convidou para participar do concurso de passista mirim. Convite aceito, vitória certa. O menino ganhou o concurso! E não parou mais. Nascia a máquina.

Após esse concurso, se afastou da Beija-Flor, pois morava em Éden. Assim, ficou na Unidos da Ponte, agremiação de São João de Meriti, que também é sua escola do coração. Voltou anos depois, já integrando o corpo de passistas da maravilhosa e soberana da Baixada Fluminense, exibindo sua arte em desfiles clássicos como o primeiro campeonato Sonhar com rei dá leão (1976) e os subsequentes desfiles também campeões, Vovó e o Rei da Saturnália na corte egipciana (1977) e A criação do mundo na tradição nagô (1978). A máquina de sambar foi tricampeão desfilando com seu samba no pé, contribuindo garbosamente para “o festival de prata em plena pista” e exibindo “o sorriso alegre do sambista” da agremiação de Nilópolis.

Gosto de dizer, e sempre reafirmo isso, que o samba é uma escola onde muito se aprende, os professores estão à disposição de todos aqueles que querem, de coração, aprender. Machine faz parte do que realmente significa Escola de Samba, é também um professor. Explico. Junto com Xangô da Mangueira, foi um dos fundadores da escola de samba Mirim Corações Unidos do Ciepe, seguindo, assim, os passos da escola de samba mirim pioneira, Império do futuro. Machine ficou responsável por ensinar para as crianças a arte da dança do passista, do mestre sala, a arte de sambar. Consagrados mestres-salas de hoje começaram na Corações Unidos do Ciep e muito aprenderam com a Máquina de sambar, como o mestre-sala Julinho, atualmente da Viradouro e Sidicley, atualmente do Salgueiro.

Ajudou a fundar também a Inocentes da Caprichosos, escola de samba mirim de onde veio o mestre sala Fabrício, 1º mestre sala da Acadêmicos do Sossego, atualmente. Ajudou ainda na fundação da escola de samba mirim Miúda da Cabuçu. Por onde ele passava ensinando a arte de sambar para as crianças, acabava fundando uma escola de samba mirim, demonstrando assim todo seu cuidado para que a arte do samba e de sambar se perpetue nas gerações vindouras.

Mas a importância dessa figura do nosso carnaval não para por aí. Se a nossa MPB tem um síndico, o nosso samba também tem e ele se chama Machine, o síndico da Marquês de Sapucaí, palco maior do nosso carnaval.

Tudo começou quando ele foi contratado por uma empresa que prestava serviços para a Riotur, pelos idos de 1985, para ser servente do sambódromo, tendo como uma das suas funções varrer o lugar. Nessa época o sambódromo não era usado para ensaios, era fechado, aberto apenas nos dias dos desfiles.  Um dia surgiu a necessidade de usar o sambódromo para ensaios dos seguimentos das escolas de samba e pediram que o Machine tomasse conta. Pedido aceito com a contrapartida de que tivesse lá um lugar para ele dormir, uma vez que morava longe.

Aconteceu dessa empresa demiti-lo. Foi quando a Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba), pediu para ele continuar coordenando os ensaios que estavam acontecendo na Sapucaí. Para isso, o então prefeito do Rio de Janeiro, Cesár Maia, bem como o presidente da Liesa, à época Luizinho Drummond, lhe deram uma sala na passarela do samba, onde ficou sendo seu escritório, bem como sua residência durante boa parte do ano. Feito isso, Luizinho Drummund lhe disse: – “a partir de agora você será o Síndico da Sapucaí! ” Mais um título pra esse grande sambista.

A partir de então o Machine ficou sendo o responsável pelo sambódromo. O síndico da Sapucaí. O guardião dos portões da Avenida, aquele que guarda as chaves do palco maior do nosso carnaval, tal qual Exú. Ele assume a passarela do samba dia 5 de novembro e permanece lá até o dia 10 de maio. De lá ele coordena a montagem e a desmontagem do palco do maior espetáculo a céu aberto do mundo. Sua responsabilidade com toda a organização é antes, durante e depois do carnaval. Para dar conta de tudo isso, ele é auxiliado por uma equipe escolhida a dedo – 21 pessoas coordenando todo sambódromo, mais 10 pessoas como apoio operacional –  pois além de toda montagem e desmontagem de toda estrutura para o carnaval, é de sua responsabilidade também a coordenação dos ensaios secretos, que ocorrem diariamente, de novembro até o carnaval, das 18h às 6h da manhã, bem como os demais ensaios de alas, e outros seguimentos, e ensaios técnicos.

Diante de tamanha responsabilidade parece até que o nosso Síndico não tem vida além da Sapucaí. Mas tem! Apesar de no seu primeiro casamento ter sido intimado a escolher entre a esposa e a Sapucaí (ele optou pela Sapucaí, claro!), no segundo e atual casamento ele vive em harmonia e em parceria com sua esposa, que inclusive faz parte de sua equipe, e juntos dão exemplo de tolerância religiosa. Ela, evangélica. Ele, filho de Ogum, Ogã de Candomblé. Os dois levam ao pé da letra o trecho do samba enredo da Acadêmicos do Grande Rio do carnaval 2020 “eu respeito o seu amém, você respeita o meu axé! ”.

Para o Machine carnaval é vida, é o ar que ele respira. Ele vive para o carnaval e vive de carnaval. Carnaval é o seu ganha pão, assim como o de tantos outros trabalhadores dessa grande festa que vai muito além dos dias de folia na passarela do samba. É preciso valorizar todos esses profissionais, assim como o samba enredo da Vila Isabel de 1984 que diz “glória a quem trabalha o ano inteiro em mutirão/são escultores, são pintores, bordadeiras / são carpinteiros, vidraceiros, costureiras / figurinista, desenhista e artesão / gente empenhada em construir a ilusão…”. Glória a todo esse povo que trabalha nos bastidores desse espetáculo. Glória ao Síndico da Sapucaí! Peça fundamental da engrenagem do carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro.

Esse pequeno texto onde minha intenção foi apresentar para todos de fora da “bolha” carnavalesca essa grande e importante figura do carnaval carioca da Marquês de Sapucaí, e que merece muito esse reconhecimento, é fruto de um encontro que tivemos numa manhã ensolarada do dia 02 de dezembro de 2021 – dia nacional do samba –, no seu escritório, em plena Sapucaí, e que nos rendeu um agradável bate-papo. Ao final da conversa, pedi que ele deixasse uma mensagem para as futuras gerações de sambistas, pelas quais ele tem tanto apreço, carinho e cuidado. A mensagem: “Sambista é amor. É paixão. Mas também é dedicação. Estuda, trabalha, é honesto. Pelo dia de hoje (dia do samba), o sambista é profissional na sua arte. Vamos respeitar as escolas mirins que é o nosso amanhã! ”.

Valeu, Machine! Valeu, Síndico! Que os portões da Marquês de Sapucaí estejam sempre abertos para todos nós amantes do carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro! Evoé!

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Foto: Juliana Dias/SRzd.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Tadeu Goes

Poeta, advogado, licenciado em História pela Universidade Estácio de Sá, com especialização em História Antiga e Medieval pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. Autor do livro de poesia Nascente (2018) e integrante da Liga Universitária de Pesquisadores e Artistas de Carnaval da UFRJ (LUPA Carnaval).

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