“Minha vida” de Chaplin e o fim da relação entre genialidade e solidão

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No fim de sua vida, Charles Chaplin, famoso ator da era do cinema mudo, publicou sua autobiografia. Nessa obra, o leitor tem acesso a detalhes sobre sua infância pobre, carreira, seus relacionamentos amorosos e amizades com outras estrelas de Hollywood. Porém, além desses aspectos que se relacionam com a vida íntima do artista, alvo de muitas polêmicas, também é possível compreender, minimamente, como Chaplin produzia seus filmes. De forma solitária, o ator escrevia seus roteiros, selecionava o elenco, dirigia as cenas, e, após a gravação, ainda se preocupava em realizar os cortes nas fitas utilizadas e montar o que seria, finalmente, uma película completa.

Muitas passagens de sua autobiografia relacionam-se com esses momentos de solidão, como uma em que Chaplin revela a necessidade de interromper os trabalhos no decorrer das gravações e se sentar durante horas no fundo do cenário, lutando contra problemas no roteiro, e outra em que comenta o tamanho de seu cansaço após passar três dias e três noites editando o filme “Vida de Cachorro” (1918). Além dessas questões relacionadas a sua profissão, o artista também confessa que, apesar da fama e do sucesso, a solidão fez parte de sua vida. “Parecia-me que todos me conheciam, mas eu não conhecia ninguém. Tornei-me introspectivo, cheio de autocomiseração, e um acesso de melancolia me dominou” (Chaplin, 2015, p. 217).

Dessa forma, segundo o mito que relaciona a solidão com a genialidade, Chaplin, ao preferir possuir o total controle de cada etapa do processo de produção cinematográfica e apresentar momentos de introspecção, poderia ser classificado como um gênio. Essa narrativa, presente nas produções cinematográficas de forma marcante, acabou criando certos estereótipos ao redor da figura do cientista, dos indivíduos criativos e geniais apresentados em tela. Vistos como pessoas antissociais, solitárias e melancólicas, muitos personagens, como o Dr. Emmett Brown de “De Volta para o Futuro” (1985), pesquisador apresentado como um homem que vive sozinho, contando apenas com a companhia de seu cachorro, e Godwin Baxter de “Pobres Criaturas” (2023), homem reservado que dedica sua vida a realizar experiências científicas, acabam ficando presos a essas características, sendo incapazes de revelar outros aspectos de suas personalidades.

Segundo uma pesquisa realizada pelos psicólogos evolucionistas Satoshi Kanazawa, da London School of Economics, na Grã-Bretanha, e Norman Li, da Universidade de Administração de Singapura, em Singapura, os gênios, realmente, são indivíduos solitários. Após realizarem perguntas a 15.000 pessoas, com idade entre 18 e 28 anos, sobre a felicidade, descobriu-se que a maioria dos entrevistados relata sentir-se mais feliz vivendo em lugares com menor densidade demográfica e encontrando-se de forma frequente com amigos e familiares. As pessoas com QI muito alto, porém, não se sentiam dessa forma, já que a questão demográfica não aumentava sua sensação de felicidade e a constante socialização, ao contrário, tornava-as menos satisfeitas com a vida (Pessoas […], 2016, Online).

Apesar desses dados, a imagem do gênio solitário não corresponde mais à realidade. Na atualidade, as pessoas que se destacam em suas áreas não trabalham trancafiadas em suas casas, concentradas por horas no desenvolvimento de alguma invenção. Inseridos dentro do sistema capitalista das primeiras décadas do século XXI, os gênios fazem parte do quadro de funcionários das grandes empresas tecnológicas e trabalham em equipe. A Tesla, companhia norte-americana especializada no ramo automotivo, é um grande exemplo de corporação que prioriza a contratação de mentes brilhantes e utiliza esse talento humano de forma estratégica, priorizando os propósitos da empresa: “A força de trabalho de Tesla é compartilhada entre outras criações de Musk (SolarCity e SpaceX) e o fluxo de conhecimento é constante” (Dias, 2018, p. 363).

O Vale do Silício, localizado na parte do sul da Califórnia, EUA, e responsável por abrigar muitas start-ups e algumas empresas globais de tecnologia, inclusive, a própria Tesla, também reforça essa nova lógica de produção do conhecimento. Concentrados em um lugar específico, os gênios trabalham de forma coletiva e produzem inovações, consequentemente, estas, não mais, são creditadas a um único homem, mas, nesse caso, a uma empresa. Dessa forma, a lista de grandes inventores, composta, em sua maioria, por indivíduos que desenvolveram, sozinhos, tecnologias inovadoras, muito provavelmente, na atualidade, não se ampliará graças aos nomes de novos cientistas de destaque, mas sim, devido a inserção de grandes empresários, homens responsáveis por financiar o desenvolvimento de grandes invenções.

Portanto, o comportamento adotado por Chaplin, sua atuação em todas os estágios de produção de um filme, não é mais comum atualmente. Tanto com relação à indústria cinematográfica, com seus milhares de profissionais especializados que desempenham diversos papéis em uma produção, quanto ao desenvolvimento de novas tecnologias, as inovações, no mundo atual, não são mais obras dos homens solitários, mas sim, como vimos, de equipes financiadas por grandes empresas. Saem de cena os gênios, cientistas preocupados em desenvolverem, sozinhos, grandes invenções, e entram no mundo científico os grandes empresários, responsáveis por viabilizar inovações. Resta uma pergunta: estes homens estariam preocupados em melhorar o bem-estar da humanidade ou em satisfazer seus próprios desejos, se tornando poderosos? Somente o futuro saberá.

 

 


 Referências 

CHAPLIN, Charles. Minha vida. 17ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

DIAS, Júlio Rosa. Inovação e estratégia no modelo de negócio da Tesla motors/Innovation and strategy in the tesla motors business model. Brazilian Journal of Development, v.5, n. 1, p. 351-369, 2018.

PESSOAS inteligentes tendem a ter menos amigos. Veja, 22 de mar. de 2016. Saúde. Disponível em: < https://veja.abril.com.br/saude/pessoas-inteligentes-tendem-a-ter-menos-amigos >. Acesso em: 11 de mar. de 2024.

 

 

 


Créditos na imagem: PINTEREST. Chaplin is “For The Ages”: Photo. Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/912893786954277139/. Acesso em: 23 mar. 2023.

 

 

 


SOBRE A AUTORA

Tainara Aparecida de Carvalho

Graduada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Possui interesse pelas áreas de Historiografia Brasileira, Teoria da História e Brasil República.

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