As intelectualidades negras como um espaço de cura e potência

 

O racismo epistêmico invalida consciente ou inconscientemente qualquer perspectiva de conhecimento que não seja ocidental e branca, tendo como base o pressuposto que considera a si mesmo como universal, isento e neutro, não compreendendo a sua própria especificidade/particularidade. Define o branco, o ocidental, especialmente o homem, como sinônimo da humanidade completa, assim sendo, o que não é branco é visto como incompleto e/ou não humano. (Lélia Gonzalez, Uma intérprete do Brasil, por Raquel Barreto)[1]

 

Recebi a notícia da minha aprovação no vestibular de história da Universidade Federal de Ouro Preto numa tarde ensolarada de janeiro de 2008. Na época trabalhava como digitador, era o meu primeiro emprego de carteira assinada. Antes disso, havia estudado por um semestre num cursinho popular da periferia de Belo Horizonte. Porém, tive que abandonar os estudos e trabalhar para ajudar na renda de casa. Ao longo do segundo semestre de 2007, eu conciliava o trabalho com a rotina de estudos, e com o apoio da assistência social da Associação onde trabalhava, consegui pagar a taxa de inscrição no vestibular.

No dia 15 de março de 2008 cheguei à cidade de Mariana e à Universidade Federal de Ouro Preto. O Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) era um espaço majoritariamente branco, havia poucos/as estudantes negros/as. O debate racial era bastante tímido, limitavam-se as disciplinas ofertadas pelo Departamento de Educação interessadas em discutir a Lei 10.639/2003[2]. Em relação às disciplinas do Departamento de História, o debate racial era completamente inexistente, e a única narrativa presente relacionava pessoas negras ao contexto da escravidão. Importante ressaltar que eu vinha de um ambiente familiar majoritariamente negro, porém não havia conversas ou discussões a respeito da questão racial. Portanto, eu cheguei à universidade sem compreender criticamente o racismo à brasileira.

Bem, hoje doze anos depois da minha primeira na aula na universidade, eu consigo perceber os impactos que o racismo causou na minha trajetória acadêmica. O não acesso aos/as autores/as negros/as produziu danos não só do ponto vista acadêmico, mas, sobretudo na minha autoestima como estudante. Ao longo da graduação eu fui assimilando que pessoas como eu não poderiam ser grandes acadêmicos ou grandes intelectuais, fui assimilando também que para ser um/a grande pensador/a você deveria escrever “bem”, difícil, numa linguagem quase inacessível. Além disso, era preciso dominar outros idiomas, etc. Passei a minha graduação sem ter acesso à iniciação científica.

A primeira professora que me disse que eu poderia me tornar um intelectual foi à querida Janaína Damasceno, na época professora substituta do Departamento de Educação. Num belo dia, nos encontramos no corredor, eu já estava no sétimo período, e ela me disse: “passa na minha sala depois, precisamos conversar sobre a sua resenha”. Logo pensei: “pronto vai dizer que eu não sei escrever”. Conforme combinado, fui lá na sala da Janaína, e para a minha surpresa ela veio elogiar uma resenha que havia feito sobre o texto do Kant. Foi a primeira vez que eu recebi um elogio de um professor/a. Logo pensei, ela deve estar me sacaneando, por que além de dizer que eu escrevia bem, me pediu autorização pra incluir a resenha como texto-referência no próximo semestre. Ah, esqueci de comentar que Janaína foi a primeira professora negra com quem tive contato na universidade. Bom, foi muito importante pra mim saber que eu escrevia “bem”, inclusive ela me incentivou a tentar o mestrado.

Em janeiro de 2012 foi a minha colação de grau e na época eu já estava trabalhando numa empresa de telemarketing em Belo Horizonte. Em 2013 eu passei no mestrado da UFOP, como não tive bolsa trabalhei durante os dois anos de curso no programa de Educação em Tempo Integral da Prefeitura de Mariana, lecionei em diversas comunidades, Bento Rodrigues, Cabanas, Santo Antônio (Prainha), Morro Santana  (Gogô). No final de 2015 eu fui aprovado no doutorado. Porém, no início de 2016 tive problemas familiares e financeiros que inicialmente me fizeram desistir do curso. Aqui eu preciso fazer um agradecimento especial ao meu amigo/orientador Mateus Pereira que me incentivou a continuar os estudos. No segundo semestre de 2016 eu fui aprovado no processo seletivo para professor substituto do Departamento de História. Foi um divisor de águas na minha vida pessoal, acadêmica e profissional. Tive a oportunidade de lecionar nos cursos de história, direito, arquitetura e urbanismo e turismo. No início pensei em desistir, o medo e a insegurança me acompanharam por um bom tempo.

Pra retomar a pergunta inicial, eu só fui ler autores/as negros/as em 2017, após frequentar o grupo de estudos (GELCI) coordenado pela professora Kassandra Muniz do Departamento de Letras. No GELCI que tive acesso a intelectuais como Angela Davis e Neusa Santos Souza. Foi um momento especial, pela primeira vez eu li textos que dialogava com as minhas experiências. Ao mesmo tempo, fui tomado pela raiva, por que havia passado todos esses anos nos cursos de história, graduação e pós-graduação, sem ler autores negros/as. Desde 2017, quando eu fui correr atrás do prejuízo causado pelo racismo, decidi ler apenas autores/as negro/as. Mudei meu projeto de pesquisa e hoje estudo o Movimento Negro no contexto da Experiência Democrática (1945-1964).

No início de 2018, em parceira com os/as amigo/as, professor Luciano Roza (o primeiro professor negro efetivo do Departamento de História), Thiago Borges, Bruna Carvalho e Floriza Sena fundamos o Grupo de Estudos sobre Intelectualidades Pretas – Lélia Gonzalez (GESIP). A primeira reunião aconteceu em abril daquele ano, na sala do Laboratório de Ensino de História, na ocasião discutimos o texto “Intelectuais Negras” da Bell Hooks. O grupo foi importante, pois ali, eu tive a possibilidade de conhecer e aprofundar minhas leituras a respeito da questão racial.    Respondendo objetivamente à pergunta do dossiê, eu diria que a importância de ler autores/as vai muito além de uma questão meramente acadêmica, diz respeito a necessidade de reumanizar pessoas negras, de modo que possam falar em primeira pessoa, ou seja, que se tornam sujeitos de sua própria história. Como denunciou Lélia Gonzalez no artigo “Racismo e sexismo na cultura brasileria” de 1980 “temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que é não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos)”[3].

A academia ainda marcadamente racista, não compreende que quando reivindicamos a presença de autores/as negros nas disciplinas e nos processos seletivos da pós-graduação, não estamos reivindicando a mera inclusão de pensadores/as acadêmicos/as burocráticas. Estamos falando de intelectuais que pensaram outros modelos de sociedade, que imaginaram futuros sem opressões. Por fim, digo que a coisa mais importante que aprendi lendo autores/as negros/as foi que o trabalho intelectual precisa ser um trabalho transgressor, ou seja, compromissado em desmantelar as fronteiras discursivas. Aprendi também que o trabalho deve ser acessível e capaz de dialogar com todos/as, acadêmicos ou não. Eu espero que a universidade se comprometa efetivamente no combate ao racismo estrutural, pois até aqui ela tem sido só mais instituição a corroborar com as assimetrias raciais. Pra encerrar, eu gostaria de dizer que para mim, ler autores/as negros/as tem me ajudado a curar as feridas abertas pelo racismo, e ao mesmo tempo, compreender que é preciso continuar lutando, como disse José Correia Leite, um grande intelectual negro do século XX, “o lema é lutar. A nossa luta é um imperativo histórico”[4].

 

 

 


NOTAS

[1] Gonzalez, Lélia. Primavera para as rosas negras – Lélia Gonzalez em primeira pessoa. Coletânea organizada e editada pela União dos Coletivos Pan-Africanistas. São Paulo. Ed. Diáspora Africana, 2018. p.27

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm

[3] Gonzalez, Lélia. Primavera para as rosas negras – Lélia Gonzalez em primeira pessoa. Coletânea organizada e editada pela União dos Coletivos Pan-Africanistas. São Paulo. Ed. Diáspora Africana, 2018, p.193

[4] Leite, José Correia. E disse o velho militante José Correia Leite: depoimentos e artigos. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p.40

 

 

 


Créditos na imagem: “hand play” by Lawrence Agyei.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Felipe Alves de Oliveira

Doutorando em história pela Universidade Federal de Ouro Preto e membro Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI/UFOP). Iniciei minha carreira docente em 2012, lecionando na rede pública de ensino do Estado de Minas Gerais. De 2013 a 2015, atuei como professor no Programa de Educação em Tempo Integral na cidade de Mariana. Em 2016 ocupei a mesma função na rede estadual de educação de Minas Gerais na cidade de Belo Horizonte. Em 2017 e 2018, exerci a função de professor substituto pelo Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Atualmente sou professor da rede privada de educação Possuo interesse nas áreas que versam sobre a História do Movimento Negro no Brasil, Intelectuais Negros(as), Educação e Relações étnicos-raciais (Lei.10.639), Imprensa Negra.

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