José Alves de Oliveira Júnior examina, em seu mestrado, a retórica e a introdução da crítica documental na escrita biográfica da Academia Real das Ciências de Lisboa. Identifica no programa da Academia a escrita de Vidas, Elogios Históricos e Memórias Históricas que serviam para narrar a vida de personagens históricos do reino e dos sócios falecidos da instituição. Define o que chama de escritos biográficos como enaltecedores da história dos grandes homens. A eficácia moralizante deles, segundo o autor, incorporava-se ao regime Ilustrado de escrita da história na passagem do século XVIII para o XIX. Tem o texto historiográfico como objeto de sua pesquisa, a escrita da história em seus aspectos conceituais e metodológicos. A ênfase em seu trabalho é de se debruçar sobre a construção textual e sobre as formas de validação do discurso historiográfico. Júnior verifica a incorporação dos escritos biográficos da Academia ao regime de historicidade erudito, evidenciando de que modo a retórica e a erudição incidiam na construção de determinadas noções de evidência histórica.

A relação entre os escritos biográficos e o projeto de História Filosófica elaborado pelos membros da Academia Real das Ciências de Lisboa, indicam, na hipótese do autor, a coexistência de distintas noções de história na escrita biográfica. A história estaria condicionada por distintas tradições e movimentos, podendo ser entendida ao mesmo tempo como gênero, ciência e experiência do tempo. Ao ler a dissertação de José Alves de Oliveira, defendida em 2018, junto ao Programa de Pós-graduação em História (FH) da Universidade Federal de Goiás (UFG), ocorreu-me fazer algumas notas no sentido de dialogar com o autor e de refinar, guardadas todas as proporções de pretensão, noções de retórica, gênero e história, segundo a forma mentis setecentista, principalmente ibérica, mesmo que o recorte de José Alves de Oliveira Júnior vá para além do Setecentos português.

Antes é preciso que diga quem orientou o trabalho e qual foi a banca. Júnior Alves contou com a orientação da Professora Raquel Machado Gonçalves Campos (UFG), tendo na banca examinadora a Professora Maria da Glória de Oliveira (UFRRJ) e o Professor Marlon Jeison Salomon (UFG).

Convém que diga também que o trabalho conta com uma documentação ótima e uma excelente bibliografia, atualizada e pertinente, cujos itens são inúmeros para que destaque apenas alguns.

Júnior Alves estabelece, com méritos, dois eixos em seu trabalho. Um é a pesquisa sobre gênero (os textos biográficos), outro sobre a tratadística que doutrina esses (entre outros) gêneros. Lê, portanto, objetos que preceituam formas textuais biográficas e objetos que performatizam essas formas textuais biográficas, noticiando os dois tipos de textos.

Lembro que para objetos ibéricos setecentistas propaganda é propagação. Propagação de valores, propagação da fé católica e propagação de fides estilística, fé retórica. Não se trata de propaganda no sentido publicitário, embora publicidade, circulação haja, e muita. Também penso que os gêneros do discurso são gêneros retóricos, das letras. São práticas discursivas e não “gêneros literários”, como Júnior muita vez lança mão do termo. Às páginas 139-140, essa questão da fides também se apresenta. Um discurso adequado (decoroso) “verdadeiro” deve respeitar o estilo de seu gênero, deve ser composto com fides retórica. “Fidelidade” é fé estilística, demanda a escrita conforme o gênero.

Literatura é uma invenção muito recente em relação ao recorte de seu estudo. Ainda que a cronologia dos objetos se estenda, essa etiqueta “literatura” não unifica as práticas observadas. Ainda que se pense literatura no sentido textual, dos aspectos textuais, penso ser mais preciso dizer discurso, no limite discursividade. Neste sentido, termos como “gênero literário”, da página 149, mais precisos seriam se chamados os objetos de pertencentes a gêneros das letras ou a gêneros retóricos, panegíricos, elogios, vida, biografia, história. Epidíticos (ou demonstrativos) encomiásticos, demonstrativo-deliberativos. Mistos, pois também judiciais, cujo predomínio no recorte, penso, é do gênero demonstrativo-deliberativo.

Lembro também que panegírico é um pequeno encomio, um elogiozinho, que a dissertação não explica, a não ser em seus aspectos epidíticos altos. Ou seja, categorias iniciais que o texto de Júnior trabalha com mais ou menos precisão. Outra categoria, mas essa em falta na discussão dos textos, ao menos os datados até o início do século XIX, é a de discreto, aplicável aos letrados (enunciadores e receptores dos textos). Ela fornece a relação de interlocução envolvida. Penso-a fundamental na escrita acadêmica em questão, para além dos gêneros estudados. Termo, aliás, mobilizado à página 133, quando Júnior Alves se refere à crítica “discreta”. Poderia ter explicado o conceito, cuja bibliografia a respeito é vasta e acessível, principalmente os estudos do Professor João Adolfo Hansen. Ao conceito de discreto junta-se o de herói, da página 146. Ou seja, o varão, ou barão, excelente em armas e letras.

Feitas essas considerações, passo as notas propriamente, como anunciei no início.

Há necessidade, a meu ver, de que se façam diferenças entre gênero elogio e oração fúnebre, à página 50. Não diria, à página 54, “narração dos fatos”, nem usaria o termo “moralista”, mas prosa, ou escrita, ou prática moralizadora ou moral.

Não há “tratadística literária”, página 62, como formula Júnior. Em trabalhos futuros, reveria esse uso.

Até a página 72, senti falta de trechos de elogios, de alguma análise do modo de composição dos textos (ou de alguns textos exemplares) do corpus da pesquisa. Fica-se muito na “moldura” e não se entra no “quadro” que se descreve. Sinto falta de mais detalhamento e descrição dos objetos.

Lembro que a dispositio, a disposição das matérias de um discurso, retoricamente pensada, no século XVIII, referida à página 86, não é preceituada apenas por Padre Antônio Vieira (já falecido à altura), mas por ele e por outros. Vieira é um dos que preceitua.

À página 97, não aconselho, no sentido deliberativo do termo, usar “emocionar o público”, mas afetar, mover com paixões, sendo que público é categoria não naturalizada, que deve ser conceituada segundo forma mentis setecentista, ainda que o recorte ultrapasse os Setecentos. Público entendido como corpo místico do Estado, composto dos vários estamentos sociais hierarquizados.

Pensaria clareza, à página 110, como qualidade estilística do médio didático, categoria preceituada por Horácio, por exemplo, de muito uso setecentista, em oposição às agudezas seiscentistas. Debate que a dissertação não necessita se deter em demasia, mas não pode desprezar, sobre tudo em relação a seus usos, o da clareza, nas práticas estudadas, uma vez que tanto a escrita da história, sua modalidade biográfica, em seus subgêneros, pressupõem-se didáticas, exemplares, cuja função principal é ensinar.

À página 125, há uma formulação de Carlo Ginzburg que considero problemática. No mínimo merece debate. É ela: “ilusão de realidade”. Proponho trocá-la por construção de realidade, ou “efeito de real”. A enargeia não ilude o leitor, ou o vedor / ouvinte. A enargeia é expediente retórico constituidor de realidades no e por meio do discurso. Não seria tão cabal, citando e naturalizando o pensamento de Ginzburg.

Roland Barthes pode sugerir outra interpretação para isso. Sugiro a leitura de “O efeito de real”. (BARTHES, Roland. [e outros]. Literatura e realidade. O que é o realismo? Tradução de Tereza Coelho. Lisboa: D. Quixote, 1984). Embora termos como “estética” e “literária” mobilizados por Barthes possam ser discutidos, cito: “É preciso lembrar que a cultura ocidental, no interior de uma das suas mais importantes correntes, não colocou a descrição fora do sentido e atribuiu-lhe uma finalidade perfeitamente reconhecida pela instituição literária. Esta corrente é a retórica e esta finalidade é a do ‘belo’. A antiguidade reuniu muito cedo, aos dois gêneros expressamente funcionais do discurso, o judicial e o político, um terceiro gênero , o epidítico, o discurso do aparato, destinado à admiração do auditório (e já não á persuasão) , que continha em embrião – fosse quais fossem as regras rituais da sua utilização: elogio de um herói ou necrologia – a própria ideia de uma finalidade estética da linguagem ; na neo-retórica alexandrina (a do século II d.C.) surgiu um grande entusiasmo pela ekphrasis, extracto brilhante , destacável (portanto , com um objetivo em si, indenpendente de qualquer função de conjunto) que tinha como finalidade descrever os lugares, os tempos, as pessoas ou as obras de arte, tradição essa que se manteve através da Idade Média”.

Quando Júnior Alves se refere aos usos da nota de rodapé nos discursos acadêmicos que estuda, pode haver outra interpretação que a dele para esses usos no século XVIII, avançando ao XIX. Podem ser recursos retóricos e não tão “documentais”. Seria o caso de debater e, mais uma vez, não ser tão taxativo na análise. A leitura de Grafton é ótima, mas é uma hipótese. Há outras, como o estudo de Luciana Gama (2001) sobre Caramuru (Santa Rita Durão) e as notas de rodapé da épica. Gama faz um levantamento exaustivo e análise das fontes citadas no prefácio e nas notas do Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia, editado em 1781 por Frei José de Santa Rita Durão. Em particular, na análise, trata de descrever o emprego argumentativo das ”fontes” citadas, no interior da concepção global do gênero épico, no século XVIII. Mestrado defendido, no IEL/UNICAMP, sob orientação do Professor Alcir Pécora.

A preocupação em não ser fastidioso, em não causar fastio, é retórica. Ela vem do estilo, da elocutio, da elocução do discurso. Ela é antídoto do tédio, pois o discurso além de ensinar tem que deleitar o ouvinte/leitor/vedor. Aspectos pertinentes que, à página 128 da dissertação, julgo devam ser considerados.

A partir da página 129 há uma questão a ser feita. É de escrita biográfica (biografia) que se trata à dissertação? No século XVIII (e seus costumes, no sentido retórico, em seus hábitos textuais alargados até início do XIX) é biografia como se pensa depois, e até hoje? Essa teoria da história (e teoria historiográfica) aplica-se aos objetos da dissertação que examino e escreveu Júnior Alves? O trabalho de Júnior Alves se esforça em mostrar que sim, porém isso é discutível, pois elogios, elogio de vida, vidas, nada disso (nenhum desses gêneros) é (são) biografia estrito senso.

Antes de encerrar minhas notas, há três coisas (res) pontuais que gostaria de mencionar. Dialética, mobilizada à página 130, deve ser pensada (e a categoria é ótima) no sentido de divisão e análise, como anatomia dos objetos. Monumento, termo presente à página 144, deve ser conceituado, não pode ser naturalizado. Se o elogio funciona como monumento, como é monumento? Tem utilidade? Qual? Memorialista, histórica? Figuração / retrato, à página 146 (estendendo-se à página 148), deve ser noção discutida, pois pintar, retratar, indicam mimese, verossimilhança, arte e não ciência.

Contudo, o maior mérito da dissertação de José Alves de Oliveira Júnior, para além de trabalhar com os dois eixos aludidos no início destas notas, e de ter uma bibliografia ótima, é o de fazer pensar. Nisso, creio, cumpre perfeitamente sua função. Não à toa foi uma dissertação aprovada. As críticas e sugestões, impõem-se como comentário e diálogo.

 

 

 


Créditos na imagem: Academia das Ciências de Lisboa, salão nobre da Academia (c. 1900). Fotografo não identificado.

 

 

 

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