Há tempos estava com vontade de escrever esse texto. Acredito que minha vontade apareceu em função da demanda por posicionamento dos historiadores em momentos críticos que, inicialmente, são noticiados nos veículos de comunicação que tentem explicar, dar forma e produzir um acontecimento a ser assimilado pela sociedade. Como disse François Dosse (2013), o historiador fica investido da função de decifrar as construções de sentido das mensagens midiáticas em dupla relação com a própria fatualidade e os seus suportes. Em tempos cada vez mais midiatizados, acontece a inversão da própria noção de acontecimento, que é pré-construído pelos meios de comunicação antes mesmo de qualquer forma de “decantação histórica”, por assim dizer. Então existe a necessidade de se inserir no debate público de uma sociedade que demanda análises imediatas que são esquecidas com a mesma velocidade que são produzidas pelos peritos mais precoces. Henry Rousso (2016) comparou essas análises apressadas ao café solúvel: podem ser consumidas imediatamente sem grandes preocupações com o preparo e com o esforço. Boa parte do nosso mundo não consegue mais lidar com incertezas, com o vazio, com a espera, com a lentidão e principalmente com a falta, como bem sabem os psicanalistas.
É muito difícil para mim, como historiadora, professora e pesquisadora, me adaptar a esse ritmo acelerado das circulações das ideias e admiro muito os colegas que conseguem acompanhar essa velocidade toda sem perder a qualidade de suas análises. Respeito muito os profissionais que se aventuram nas redes sociais e em diferentes plataformas na internet para a divulgação de conteúdo de qualidade e espero que eles alcancem um público cada vez maior com o passar do tempo. Nunca antes isso foi tão necessário. Eu, por outro lado, leio, assisto, penso, leio mais um pouco, escuto os colegas, penso que no fim das contas talvez eu nada tenha mais a acrescentar sobre a discussão – o que muitas vezes é verdade, de forma que prefiro apenas endossar um conteúdo produzido por algum colega mais ligeiro – e acabo deixando para lá.
No entanto, uma coisa tem martelado na minha cabeça desde a morte de George Floyd nos Estados Unidos e a sequência sem fim de violências raciais em diferentes lugares do mundo. É uma coisa que ocorre também em razão da minha pesquisa do doutorado que acaba por me colocar diante de teorias e métodos que, em momentos como esse, retornam para mim como um dispositivo de interpretação. A dor, a revolta e a sensação de impotência diante de violências também servem como propulsão para que se produza algo a partir disso, como sabem os artistas e intelectuais negros melhor do que ninguém. É a ideia de “escrevivência” genialmente criada por Conceição Evaristo (2008) para explicar esse processo de sublimação.
Longe de querer comparar minha experiência com a de pessoas negras diante dessas situações de horror. São apenas algumas colocações para dizer que acredito que nós, historiadores e cientistas das humanidades em geral, precisamos dar vazão a essas questões para lidarmos com nossas inquietudes e angústias, não apenas para atender a uma demanda do mundo capitalista sedento por informações todos os dias, o tempo todo. Acredito que é uma forma interessante de não só nos posicionarmos no mundo, mas de amadurecermos como profissionais e como humanos.
Dito isso, tenho pensando muito nas imagens dos protestos ocorridos nos Estados Unidos a partir do assassinato de Floyd e na forma como elas foram, direta ou indiretamente, relacionadas com imagens passadas de lutas da população negra pela manutenção de suas próprias vidas. Parece-me, porém, que houve uma profusão muito maior de comparações entre a terrível cena do policial assassinando Floyd com o peso do seu corpo branco e as imagens de tortura e assassinato de pessoas negras em diferentes tempos: pinturas que retratavam a relação senhor-escravo até fotografias de corpos negros pendurados em árvores para diversão sádica dos brancos. Tal comparação, defendo, não é anacrônica, visto que a continuidade da violência racial cria, consequentemente, imagens desse tipo, que chegam até nós cada vez mais. Falarei do anacronismo próprio das imagens mais adiante.
Queria focar, no entanto, no que penso ser uma potência que, para mim e acredito que para muitas outras pessoas, foi um alento e fonte de coragem para muitos corações, que são as imagens dos protestos como dito anteriormente. Ver tantos punhos erguidos, cartazes e corpos em movimento no espaço público acionou em muitos de nós a lembrança das imagens das marchas pelos direitos civis de Selma a Montgomery na década de 1960, nos discursos de Martin Luther King, de Malcolm X, e em todo o legado dos mais próximos a nós: Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Zumbi, e tantos outros que a história branca faz questão de apagar.
Quando ficamos diante da imagem, nosso presente é capturado na experiência do olhar. Reconfiguramos incessantemente nosso presente diante de uma imagem, por mais remota que ela seja. Isso porque a imagem só pode ser pensada a partir da construção e da mobilização da memória. Para Didi-Huberman (1999), é preciso reconhecer que a imagem nos sobreviverá, pois diante dela estamos apenas de passagem, e ela é, diante de nós, o elemento da duração. Assim, a imagem geralmente possui mais memória e mais futuro que o ser que a olha. Nesse sentido, estar perante uma imagem não nos leva somente a questionar o objeto de nossos olhares, pois também estamos diante do tempo. Questionamos não somente o objeto retratado, mas a própria história da arte e sua historicidade, temporalizando o tempo todo. Além disso, a ideia defendida por muitos historiadores, de que é necessário evitar o anacronismo, acaba por corroborar com a ideia, já bastante criticada, da existência de um “espírito do tempo”, do chamado Zeitgeist, como se todas as coisas contemporâneas compartilhassem com coerência o mesmo sistema de valores. Essa premissa já foi descartada há bastante tempo pela teoria da história por ser considerada essencialista, limitadora e insuficiente para entender as multiplicidades próprias que os tempos históricos possuem, mas, às vezes, ela aparece como um mandamento a ser seguido à risca por historiadores: não seja anacrônico. No entanto, um sujeito pode ser anacrônico em relação ao seu contemporâneo se for constatado que esse último estaria, supostamente, em maior concordância com o seu tempo. Seriam, portanto, pessoas que não pensam “num mesmo tempo”. Segundo Didi-Hubermann, nessa lógica, o anacronismo atravessa todas as contemporaneidades. A concordância dos tempos – quase – não existe. Não significa dizer, contudo, que determinados tempos históricos não possuam características que os diferenciam de outros, mas essas características não devem ser tomadas como um fator homogeneizante. Por isso, é profícuo reconhecer o anacronismo das fotografias dos protestos e das imagens em geral, pelo menos quando estamos diante delas. O anacronismo é, a princípio, uma forma temporal de manifestação da complexidade e da sobredeterminação das imagens, de forma que é possível visualizar, num mesmo tempo, diferentes temporalidades, todas anacrônicas em relação às outras. Sontag (2003) resume bem: fotos ecoam fotos.
Eu acredito ainda que isso não significa cair em relativizações absurdas e aceitar anacronismos crassos como a já bastante discutida afirmação burra do vice-presidente Hamilton Mourão, que comparou as capitanias hereditárias com o empreendedorismo que supostamente explicaria a força econômica do Brasil. Não que se pudesse esperar algo de diferente partindo dessas figuras que já provaram há muito não entender absolutamente nada de História, do tempo, da memória e que demonstraram habitar um mundo de delírio coletivo que melhor justifica seus projetos fascistas.
Voltemos ao que interessa. Em sua conferência Imagens e sons como forma de luta, Didi-Huberman trata da impossibilidade de dar fim à história, de delimitar começos e fins, de dividi-la de forma demasiadamente cronológica e evitar a todo custo os anacronismos. Portanto, muitos aspectos das histórias da humanidade não podem ser apreendidos, e os levantes, tema principal da conferência, são também sem-fim. Recomeçam de forma infinita, de forma que não existe um apaziguamento final. Os levantes, para o autor, formam a grande arte política do não finito, ao mesmo tempo que explicam a fragilidade dos sujeitos de se indefinir em relação ao poder.
É a partir dos eternos recomeços dos levantes que Didi-Huberman salienta certa continuidade dos gestos e dos sons próprios das movimentações populares, como braços e punhos levantados, gritos, canções de guerra, faixas, aglomerações, embates com as forças policiais e com o monopólio da violência do Estado. Para tanto, o autor faz referência a diferentes imagens e sons de diferentes materialidades e tempos: desde os marinheiros do filme Encouraçado Potemkin, do cineasta Serguei Eisenstein, até a Liberdade guiando o povo, no famosíssimo quadro de Eugène Delacroix.
Além de apontar para os gestos e sons, o autor faz uma reflexão da palavra manifestatio, pensando que o ato de manifestar seria o desejo clamar o desejo, desobedecendo por meio de atos e gestos premeditados. As manifestações, embora recorrentes, estão sempre à mercê das aleatoriedades do acontecimento e pelo não finito da história e das relações das forças que fazem parte do evento. Por isso que para o autor as manifestações sempre são encenadas de forma “clássica”, com suas características temporais e espaciais nas quais a rua ou a praça detém a função de palco principal. Aqui ele cita alguns trabalhos de filósofos e historiadores que discutiram a relação entre manifestações populares e as ruas, em que as pessoas ocupavam e transitavam no espaço de forma a lembrar o sangue nas veias. Didi-Huberman não o inclui na discussão, mas lembrei de um livro bastante pertinente que tem muita relação com esse momento do ensaio, “Carne e pedra” de Richard Sennet, que aborda justamente a relação dos corpos com o espaço urbano em diferentes momentos da história.
Como as manifestações ocupam um espaço não apenas visível, mas também sensível, Didi-Huberman afirma que elas não podem ser compreendidas sem uma observação antropológica a partir de análise táctil, sonora e visual desse espaço sensível como um todo. Esse espaço sensível torna-se visível a partir das diferentes formas de resistência da representatividade política, revelando uma expressão política. O autor atenta para o fato que não é possível falarmos em representação “direta” pois ela é sempre intermediada por suas escolhas de percurso, como palavras de ordem, iconografias, de comportamentos mais ou menos frequentes — contestação das representações políticas. É a partir de diferentes artes de fazer – e aqui ele não cita, mas é uma referência a Michel de Certeau – que os manifestantes encontram diferentes maneiras de se representar politicamente. Por isso a importância de atentar para a enorme variedade de encenações dos movimentos populares e seus possíveis significados para diferentes grupos: braços erguidos, punhos cerrados, coreografias, músicas, gestos que significam a “vagina”, – no caso de alguns movimentos feministas – roupas, máscaras, etc.
Nem toda manifestação política possui a mesma finalidade, de tomada de poder político nos moldes da colonialidade. Isso seria olhar os levantes de uma perspectiva ocidentalizada. No caso de contextos de colonização, por exemplo, a resistência acontece mais como forma de narrativas de memórias ancestrais e manutenção de certas tradições anteriores à chegada da violência do homem branco. Podemos pensar nos trabalhos de Majmurek, Mikurda, Sowaas e Du Bois a respeito das resistências de povos indígenas e das populações negras, que entoavam cantos que demonstram o desejo de sair da situação de colonizado.
Por fim, o autor defende a importância de produzirmos imagens livres para representarmos a nós mesmos, nossas memórias, desejos e destinos — ao invés de nos assujeitarmos ao ponto de vista dos opressores, que são em grande parte senhores das imagens — para nos constituirmos como sujeitos políticos no espaço público. Para tanto, é importante ousarmos utilizar diferentes materialidades para a construção das nossas representações imagéticas, desde o texto até a fotografia, música, e assim por diante. Lembremos a posição de Walter Benjamin a respeito de uma postura politécnica utilizada para romper barreiras e acabar de uma vez por todas com as falsas oposições e hierarquizações, como as que opõem escrita e imagem. Devemos ousar inclusive fazer uso de diferentes temporalidades e sermos acusados de anacrônicos, se isso nos possibilitar uma construção mais livre das nossas autorepresentações. Penso que essas são as potências das imagens dos protestos que tomaram as ruas pelo fim do racismo e sua interpenetração com o passado. A luta continua e continuará: sem justiça, sem paz.
REFERÊNCIAS
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens e sons como forma de luta. 2018. Disponível em:<https://www.sescsp.org.br/online/artigo/12580_IMAGENS+E+SONS+COMO+FORMA+DE+LUTA+ENSAIO+DE+GEORGES+DIDIHUBERMAN>.
DIDI-HUBERMAN, Georges. “El punto de vista anacrónico”. Tradução Crispin Salvatierra. Revista de Occidente, Madrid, n. 213, marzo 1999.
DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. Um desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
EVARISTO, Conceição. Escrevivências da Afro-brasilidade: História e Memória. In: Releitura, Belo Horizonte, Fundação Municipal de Cultura, nº 23, novembro 2008.
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Editora FGV, 2016.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2003.
Créditos na imagem: Hannah McKay/Reuters. Disponível em: https://www.pri.org/stories/2020-06-03/no-justice-no-peace-thousands-london-protest-death-floyd.
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Isadora Muniz Vieira
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