“Enegrecendo o… coronavírus?”

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Em artigo publicado em 2003, Sueli Carneiro brilhantemente demonstrou a urgência de “enegrecer o feminismo”, desmascarando a pretensão de um feminismo calcado em um sujeito “único”. Acredito que esse mesmo movimento seja fundamental, acrescentando outros marcadores sociais, quanto aos infectados pelo covid-19. Embora, de fato, o vírus seja universal e não escolha seus alvos, o modo como os alvejados experienciam esse mesmo momento é muito diferente (ARIAS, 2020; MACHADO, 2020; LUPION, 2020).

Maria da Glória Oliveira (2020), neste mesmo portal, recentemente escreveu que: “é inútil dizer que compartilhamos a vulnerabilidade das vidas humanas, enquanto nos assombra perceber o abismo letal dos direitos desiguais ao cuidado e proteção frente à curva acelerada da pandemia”. Proponho pensarmos, então, os diferentes modos de experienciar a crise que estamos vivendo e, também, as humanidades e sua importância neste momento. Para tanto, os artigos de jornal são especialmente necessários para elaboração de um quadro mais geral das experiências distintas da pandemia, por isso recorro a eles em abundância; ainda que não faça parte das minhas intenções uma compreensão exaustiva deste momento.

Neste sentido, as ciências sociais e os estudos das humanidades são importantes de dois modos. O primeiro pelos recursos teóricos e metodológicos que nos oferecem, possibilitando problematizar os diferentes impactos sociais da pandemia mundial a partir de conceitos como raça, gênero, classe e etc. O segundo pelo caráter crítico (por vezes adormecido) desse conhecimento, que ao colocar em discussão o que muitas vezes passaria despercebido nos impele a (re)pensar o mundo e a forma em que vivemos.

Vejamos, então, um caso ilustrativo dessa situação que venho acompanhando.

 

Uma nota sobre São Paulo

Assim que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde curso licenciatura em História, informou a comunidade acadêmica a suspensão das atividades presenciais e a adesão à quarentena, vim para São Paulo passar esse momento em companhia da minha família.

Vendo o desenrolar da crise na minha cidade natal, me parece ilustrativo tê-la como exemplo. Dados recentes em São Paulo, assim como nos Estados Unidos (BERCITO, 2020; CORRÊA, 2020) e na China (ALCOY, 2020), demonstram a falácia de frases-prontas que objetivam mascarar certas desigualdades, como: “estamos todos no mesmo barco”.

Por vezes, reportagens veiculadas nos telejornais locais apontavam algumas diferenças entre as regiões da cidade e o contato com a covid-19. Naturalmente, em uma metrópole com notáveis desigualdades (VILLAÇA, 2011, GOMES, 2019), não me espantou a enorme disparidade entre as regiões mais pobres, sobretudo as comunidades, e as regiões mais abastadas.

Por exemplo, as zonas mais ricas apresentam maior números de contaminação (pelo menos por agora), enquanto as zonas mais pobres o contrário (SOUZA, 2020). Contudo, a maior incidência de óbitos não ocorre nas regiões com mais contaminados, e sim naquelas com menor número – como ilustram os dados obtidos em bairros como Morumbi e Brasilândia (PESCARINI, CARDOSO, 2020; RODRIGUES, BORGES, FIGUEREIDO, 2020). Ademais, a mortalidade entre pessoas com menos de 60 anos é maior em regiões pobres do que nas regiões ricas, evidenciando novamente os diferentes modos de experienciar o covid-19 na cidade de São Paulo (CARDOSO, 2020).

Entretanto, nas mesmas reportagens em que esses dados são expostos pouco se fala sobre suas causas profundas, como o caráter social da produção do espaço urbano. Quanto as remediações dessa situação, mudanças estruturais dão lugar a doações, que parecem ser o caminho mais correto e profícuo a seguirmos.[1]

Não obstante, essa situação pode piorar, posto as múltiplas dificuldades de se enfrentar a pandemia em zonas com pouca infraestrutura (comumente sem saneamento básico), com altos níveis de desemprego ou trabalho informal, baixos números de leitos hospitalares, maior densidade populacional e etc (GORTÁZAR, 2020; PIRES, 2020).[2] Para Hamza Esmili, professor na Universidade de Paris 8, a “ideia de confinamento tem um certo número de pressupostos e não corresponde à realidade”. Esmili, sem deixar de reconhecer a importância da quarentena, acredita que o confinamento é “um conceito burguês. A ideia é que todos tenhamos uma casa separada, […] na qual possamos nos refugiar […]. Mas nos bairros pobres não vejo nada disso. Existe uma realidade rodeada de condições insalubres […] há casas em que vivem quatro, cinco pessoas por cômodo, por exemplo” (PAREDES, 2020). Bairros como Saint Denis, em Paris, ou Brasilândia, em São Paulo, são exemplos dos limites dessa ideia, inclusive o afastamento social entre os jovens paulistanos (sem surpresas) tem variado, em geral, de acordo com a renda, quanto maior mais isolamento e assim o seu oposto (MARIANI, YUKARI, TAKAHASHI, 2020).

Por outro lado, a região denominada por Villaça (2009) de “Quadrante Sudoeste” da cidade de São Paulo, ou seja, “Região de Grande Concentração das Camadas de Mais Alta Renda”, tende a estabilizar os casos e apresentar melhores resultados em relação aos infectados e mortos pelo covid-19, como mostra o exemplo do Morumbi. Entre os super ricos, viagens em jatos particulares ou alugados e acesso a bunkers permitem o pleno isolamento social (NEATE, 2020). Nos Estados Unidos até suas fortunas aumentaram durante a pandemia (COLLINS, 2020).

Soma-se a esse quadro o recorte racial, que nos permite inferir – posto que diferenças raciais biológicas são inexistentes – o caráter social da maior mortandade entre negros, moradores de zonas mais pobres e de menor renda (NUNES, CARDIM, 2020; MENA, 2020).  Ainda sem mencionar os impactos decorrentes da pandemia, que tendem a aumentar a pobreza e a concentração de renda (FARIZA, 2020), a delicada e precária situação dos refugiados (ALLINSON, HUSSEIN, 2020) e a vulnerabilidade de povos indígenas (GUTIERREZ, 2020).

 

Palavras finais

Nesta esteira, o estudo dessas desigualdades ocorre a partir do conhecimento acumulado e dinâmico das ciências sociais e das humanidades que, em um momento mais imediato, podem contribuir ao fomento de ações governamentais específicas. Por outro lado, sob um ponto de vista mais longo, esses conhecimentos podem nos ajudar a compreender as causas profundas e estruturais desses fenômenos.

Concordando com Bombardi e Nepomuceno (2020) quando afirmam que “com a pandemia não é mais possível fingir não ver a desigualdade”, uma vez exposto o caso ilustrativo da capital paulista, tratemos de refletir criticamente, lembrando o título, munidos dos conceitos necessários e indispensáveis, os impactos desse momento de crise que revela, com maior clareza, as desigualdades e opressões que estruturam a sociedade e seu funcionamento.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ALCOY, Philippe. China: os pobres são os mais expostos ao coronavírus e às medidas autoritárias do regime. Esquerda Diário, 03 fev. 2020.

ALLINSON, Tom; HUSSEIN, Mehyeddin. Campos de refugiados estão preparados para o coronavírus?. Deutsche Welle, 13 abr. 2020.

ARIAS, Juan. O coronavírus dos ricos e o coronavírus dos pobres. El País, 21 abr. 2020.

BERCITO, Diogo. Coronavírus mata negros e pobres de forma desproporcional nos EUA. Folha de São Paulo, 15 abr. 2020.

BOMBARDI, Larissa; NEPOMUCENO, Pablo. Covid-19, desigualdade social e tragédia no Brasil. Le Monde diplomatique Brasil, 29 abr. 2020.

CARDOSO, William. Coronavírus mata mais jovens na periferia de SP do que em bairro rico. São Paulo, Agora. 29 abr. 2020.

CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, n.17, v.49, p. 117-133, 2003.

COLLINS, Chuck. Os bilionários estão ficando ainda mais ricos com a pandemia. CNN Brasil, 01 maio. 2020.

CORRÊA, Alessandra. Coronavírus: por que a população negra é desproporcionalmente afetada nos EUA?. BBC News Brasil, 13 abr. 2020.

FARIZA, Ignacio. Coronavírus ameaça elevar em até 22 milhões as pessoas em pobreza extrema na América Latina. El País, 04 abr. 2020.

GORTÁZAR, Naiara Galarraga. Coronavírus chega às favelas brasileiras com impacto mais incerto que nas grandes cidades. El País, 05 abr. 2020.

GOMES, Rodrigo. Mapa da Desigualdade: morador de bairro rico vive até 23 anos mais que na periferia paulistana. Rede Brasil Atual, 05 nov. 2019.

GUTIERREZ, Felipe. 81 mil indígenas estão em situação de vulnerabilidade crítica em caso de exposição a Covid-19, diz estudo. G1, 23 abr. 2020.

LUPIEN, Bruno. Como o novo coronavírus acentua a desigualdade no Brasil. Deutsche Welle, 27 abr. 2020.

MACHADO, Rosana. Coronavírus não é democrático: pobres, precarizados e mulheres vão sofrer mais. The Intercept Brasil, 17 mar. 2020.

MARIANI, Daniel; YUKARI, Diana; TAKAHASHI, Fábio. Quarentena de jovens em áreas ricas é 7 vezes maior do que nas pobres mais pobres em SP. Folha de São Paulo, 01 mai. 2020.

MENA, Fernanda. Entre casos identificados, covid-19 se mostra mais mortífera entre negros no Brasil, apontam dados. Folha de São Paulo, 11 abr.

NEATE, Rupert. Super-rich jet off to disaster bunkers amid coronavirus outbreak. The Guardian, 11 mar. 2020.

NERY, Marcelo; SOUZA, Altay; ADORNO, Sergio. Os padrões urbano-demográficos da capital paulista. Estudos Avançados, São Paulo, v. 33, n. 97, p. 7-36, 2019.

NUNES, Maíra; CARDIM, Maria Eduarda. Coronavírus é mais letal para pacientes pretos e pardos. Correio Braziliense, 13 abr. 2020.

OLIVEIRA, Maria G. À espera da curva. HH Magazine: humanidades em rede, 29 abr. 2020.

PAREDES, Norberto. Coronavírus: confinamento é um luxo inviável para os mais pobres, afirma sociólogo francês. BBC News Brasil, 13 abr. 2020.

PESCARINI, Fábio; CARDOSO, William. Mortes na Brasilândia, na zona norte de SP, crescem 50% em uma semana. São Paulo, Agora, 27 abr.

PIRES, Carol. Favelas no Brasil podem ser a maior tragédia do coronavírus. The New York Times, 31 mar. 2020.

RODRIGUES, Rodrigo; BORGES, Beatriz; FIGUEREIDO, Patrícia. Morumbi tem mais casos de coronavírus e Brasilândia mais mortes; óbitos crescem 60% em uma semana em SP. G1, 18 abr. 2020.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Livro vira-vira 2. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011.

SOUZA, Cleber. Covid-19 na periferia de SP expõe faceta da desigualdade, dizem médicos. UOL, 26 abr. 2020.

VILLAÇA, Flávio. São Paulo: Segregação Urbana e Desigualdade. Estudos Avançados, São Paulo, n. 25, v. 71, p. 37-58, 2011.

 

 

 


NOTAS

[1] Inevitavelmente lembro do seguinte trecho: “Mas é uma pobreza produzida politicamente pelas empresas e instituições globais. Estas, de um lado, pagam para criar soluções localizadas, parcializadas, segmentadas, como é o caso do Banco Mundial, que, em diferentes partes do mundo, financia programas de atenção aos pobres querendo passar a impressão de se interessar pelos desvalidos, quando, estruturalmente, é o grande produtor de pobreza” (SANTOS, 2011, p. 57).

[2] No caso de São Paulo, imaginemos as dificuldades específicas do covid-19 em situações como a da “Zona H”, a maioria do espaço da cidade, que possui “os piores índices de atendimento de água, esgoto e coleta de lixo (96,6%, 99,9% e 99,3%, respectivamente)” (NERY, SOUZA, ADORNO, 2019, p. 27).

 

 

 


Créditos na imagem: Leonardo Mareco. Intervenção urbana, lambe-lambe” 2020.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Arthur Harder Reis

Graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Licenciando em Pedagogia pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP). Professor de história do Ensino Fundamental II.

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